quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

"O Coração das Trevas", de Joseph Conrad

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Termino o ano com a leitura de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Ao longo das páginas desta curta novela, fui sentindo - com a saudável ingenuidade de quem está a "descobrir" algo (parti, pois, para a leitura sem quaisquer ideias ou informações prévias) - que a história de Conrad se assemelhava bastante à desse clássico do cinema chamado Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (desconhecia, assim, que o realizador americano se inspirara no presente livro).
Em O Coração das Trevas, o narrador - o marinheiro Marlow - relata aos seus companheiros a sua experiência como comandante de uma embarcação fluvial ao serviço de uma companhia colonial no coração de África (para esta história, Conrad ter-se-á inspirado nas suas próprias vivências).
O autor consegue criar com muito sucesso um crescendo de intensidade (angustiante e opressiva, poder-se-ia acrescentar) ao longo do percurso de subida de um rio, por entre uma densa, ameaçadora, hostil e opressiva floresta, em direção a essa carismática mas simultaneamente enigmática figura chamada Kurtz (que corresponde, no filme de Coppola, ao coronel Walter E. Kurtz, personagem magistralmente interpretado por Marlon Brando), que é suposto fazer regressar à "civilização". A violência - a possibilidade (mas simultaneamente a legitimidade) da violência - bem como o medo pairam sobre o ambiente criado por Conrad através da sua escrita psicologicamente penetrante.
Há nesta novela uma clara crítica ao caráter depredatório do colonialismo, ao focar a avidez dos "superiores" e "civilizados" europeus na obtenção (independentemente do custo humano e moral) de marfim das entranhas africanas.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

(2014: balanço de um ano de leituras)

Os finais de ano são pródigos no que diz respeito a listas. Também eu, enquanto dinamizador de um blogue de leituras, faço a minha lista - não dos melhores livros publicados no ano que finda, mas dos livros que li este ano que me merecem destaque.

Assim, na ficção destaco:
1. A Consciência de Zeno, de Italo Svevo (este autor foi uma das minhas descobertas do ano);
2. Ulisses, de James Joyce (releitura... desta obra na excelente tradução de Jorge Vaz de Carvalho);
3. Gente Pobre, de Fedor Dostoievski (um dos autores que nunca desilude);
4. O Espelho que Foge, de Giovanni Papini (outra descoberta recente, absolutamente viciante);
(5. Uma série de obras relidas e redescobertas, da autoria de Thomas Bernhard, Torrente Ballester, Jorge Luis Borges, Gil Vicente, etc..)

No ensaio (incluo aqui as biografias e os volumes de História) refiro:
1. O Sistema Totalitário [ou As Origens do Totalitarismo], de Hannah Arendt;
2. Poderes Invisíveis, de José Mattoso;
3. A Inquisição, de Toby Green;
4. A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm.

Na poesia aponto três livros:
1. A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça;
2. A Misericórdia dos Mercados, de Luís Filipe Castro Mendes;
3. Todas as Palavras. Poesia Reunida, de Manuel António Pina;
4. Era uma Vez o Branco, de Rui Tinoco.
 

"O Espelho Que Foge", de Giovanni Papini

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Uma das melhores coisas que me pode acontecer enquanto leitor é tropeçar num livro ou num autor e descobrir algo surpreendente. Eu já conhecia Papini de nome, mas de forma muito vaga, sem qualquer ideia sobre a sua peculiaridade literária. Por isso, quando este livro, O Espelho Que Foge, me chegou às mãos, não sabia o que ia encontrar. Certo: este livro pertence a uma famosa coleção dirigida por Jorge Luis Borges, nome incontornável da literatura do século vinte; mas tal, só por si, não garante nada - afinal, Borges considerou excecional Pedro Páramo, de Juan Rulfo, uma novela que não me encantou especialmente...
Com este O Espelho Que Foge, porém, outra coisa aconteceu: não apenas fiquei fascinado com a intensidade dos contos de Papini, como em certas passagens cheguei a entender o destaque dado pelo autor de Ficções - há qualquer coisa (o quê, não sei bem precisar) em comum entre os dois autores (pesem embora as devidas distâncias).
Os dez contos deste volume partilham uma mesma ambiência (e daí haver, na minha opinião, um certo equilíbrio e congruência entre as várias histórias): não apenas todos são escritos na primeira pessoa (narrador esse que explícita ou implicitamente é um literato), como os temas dominantes se vão repetindo: a passagem do tempo e a decadência (o amadurecimento, o envelhecimento, a aproximação da morte), a desesperança, o tédio e a angústia de viver (há, claramente, em Papini uma perturbadora inquietude existencial), a procura da identidade e a solidão de cada indivíduo, a possibilidade do suicídio como via aceitável e higiénica para sair de cena. O pessimismo é, pois, quase omnipresente neste conjunto de contos; a escrita de Papini, dura e incisiva (frases curtas, sem floreados), acompanha esse tom desolado e sombrio.
Seguramente que regressarei a este livro, uma das descobertas deste ano. Papini, embora só lhe conheça esta obra, passou a ter um ou outro contorno, suficientes para o reconhecer e ambicionar conhecer melhor.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Um Cântico de Natal", de Charles Dickens

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O conto Um Cântico de Natal, de Dickens, faz parte do imaginário natalício. A sua história e o seu personagem principal, o detestável Senhor Scrooge, são-nos familiares à conta das múltiplas vezes que a vimos ser interpretada na televisão, fosse em filmes de animação, telefilmes ou outros géneros. Daí que, apesar de se tratar de Dickens (autor apelativo q.b., e de quem li há não muito tempo Os Cadernos de Pickwick), este pequeno livro haja ficado "esquecido" na minha biblioteca, à espera de um momento mais propício para ser lido.
Quando finalmente decidi pegar nesta obra, fi-lo sem quaisquer especial predisposição natalícia. O conto de Dickens é assumidamente moral (dentro do quadro cristão, evidentemente), funcionando como um inspirador convite à alegria, à humildade, à bondade, à partilha, à amizade, enfim, aos mais elementares laços humanos.
Scrooge é caracterizado como um sujeito ganancioso, avaro, mesquinho, falso, invejoso, cínico, indiferente aos que o rodeiam. Na véspera de Natal, período festivo que Scrooge rejeita como inútil (uma vez que lhe interrompe os negócios) e piegas (com os alegres e ocos votos festivos e com as suas súbitas e questionáveis manifestações de preocupação pelos mais desfavorecidos), este recebe surpreendentemente a visita do fantasma do seu falecido sócio, Marley, que o avisa dos perigos de na vida seguir um caminho focado no egoísmo dos negócios. Após esta primeira aparição fantasmática, Scrooge será visitado pelos três Espíritos Natalícios (do passado, do presente e do futuro), que lhe mostrarão o quanto o espírito natalício alegra os corações que se lhe abrem (mesmo os dos mais humildes). No fim, como expectável, dá-se a redenção do personagem principal - esta é, portanto, uma história com um final feliz.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"Pantagruel, Rei dos Dípsodos", de François Rabelais

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Porquê ler os clássicos? Existe um livro de Italo Calvino, que nunca tive a oportunidade de ler (mas que espero vir a ler a muito breve trecho), que, ao que julgo, procura responder a tal questão. Sendo os clássicos aqueles livros que nos chegam do passado (por vezes bem afastado) mas que ainda falam, ainda trazem saber, beleza, humanidade aos leitores do presente (ou melhor, dos sucessivos "presentes"), julgo que o livro que acabo de ler, Pantagruel, Rei dos Dípsodos, restituído à verdade com seus factos e proezas espantosos escritos pelo falecido mestre Alcofribas abstractor de quinta-essência, do quinhentista François Rabelais, se enquadra nessa categoria. É, pois, um livro bastante rico no que tem para transmitir.
Pantagruel foi publicado num período (1532) a muitos níveis excecional, pontuado pela redescoberta da cultura clássica e pelo humanismo renascentista, pelos descobrimentos marítimos e por significativas expansões do conhecimento, pelo rápido alargamento do impacto da imprensa e consequente da cultura escrita; simultaneamente, foi um período de cisões e perseguições religiosas, de debate sobre o papel das autoridades terrenas, e ao nível intelectual de repúdio de algumas das fórmulas dogmáticas vindas da Idade Média.
Rabelais foi, a vários títulos, um literato percussor: a sua escrita é humorística, carregada de ironia e sarcasmo, e critica alguns dos vícios do seu tempo - os abusos de poder e a corrupção dos arautos da moral, a ignorância assente na superstição ou nos velhos dogmas perpetuados e tidos (por exemplo nas universidades) por indiscutíveis, etc. A linguagem utilizada por Rabelais, nem sempre bem recebida ao longo da história (os seus livros foram por vezes apodados de obscenos, ao ponto de o próprio Rabelais os ter amenizado nas segundas edições), pode constituir ainda hoje uma lufada de ar fresco, pelo que contém de burlesco ou mesmo de sórdido; assim, o calão, as imagens escatológicas e sexuais andam a par de expressões mimetizadas da liturgia; o absurdo, também, não anda longe (exemplo disso são os capítulos em que a sapiência se confunde com uma pantomima sem sentido); por fim, predomina um tom coloquial (pouco habitual à época), com muitos traços de oralidade (o autor, por exemplo, dirige-se com alguma frequência ao leitor, procurando a sua simpatia ou simulada credulidade). Acima de tudo, a sua linguagem é humorística e sublinha uma imensa alegria de viver.
O presente livro, como aliás o que se lhe seguiu, Gargântua, narra uma história de cariz fantástico - a história de um gigante -, bem ao gosto popular (mesmo que, simultaneamente, rica em referências culturais, apenas ao alcance de uma minoria culta). O exagero e a lógica retorcida, claro está, são aspetos permanentes: ora se diz que Pantagruel encerrava toda uma civilização organizada (com cidades, etc.) no interior da boca, como este mesmo personagem miraculosamente consegue visitar o interior de uma biblioteca parisiense... Panurgo, amigo de Pantagruel, é um dos personagens com maior alcance cómico: entre o astucioso e o aldrabão, o ardiloso e o brejeiro, esta figura tem algumas tiradas simplesmente perfeitas.
Reler este clássico deu-me um imenso prazer. Senti-me, ao longo das páginas, convidado a aprofundar o meu conhecimento da obra deste autor.

domingo, 16 de novembro de 2014

"O Mestre de Esgrima", de Arturo Pérez-Reverte

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Dedico a insignificância deste texto ao meu amigo Filipe, que me fez chegar a este livro.
 
Parti para O Mestre de Esgrima sem saber muito bem o que iria encontrar - sem ideias pré-concebidas, portanto. Li as três páginas que constituem o capítulo introdutório e antevi uma obra de aventuras, assente em intrigas, chantagens, espionagens, conspirações ou algo do género (a capa, ao que julgo, contribui um pouco para essa impressão). Na altura decidi reservar o livro para mais tarde, mas a ele acabei por regressar rapidamente.
Se é certo que este romance tem qualquer coisa de aventuroso, julgo que vai mais além (e simultaneamente, passe o paradoxo, fica mais aquém). A ação desenrola-se nas agitadas vésperas da revolução que deporia a rainha Isabel II de Espanha, e centra-se na figura de Jaime Astarloa, um conceituado mestre de esgrima com um agudo sentido de honra. Paira sobre este personagem uma aura de decadência, mas simultaneamente de genuinidade: afinal, ele vive da esgrima numa época em que o revólver se impôs como arma (nesta nossa sociedade ávida de novidades, as mais recentes tecnologias acabam por tornar antiquadas, obsoletas, desprezíveis aquelas que as precederam), e em que a sua arte - contra sua vontade e apesar da sua resistência - está a ser empurrada para o estatuto de mero entretenimento ou desporto burguês. Ainda que apegado às tradições, Astarloa acaba por aceitar como aluna uma enigmática mulher, após perceber a destreza desta como esgrimista. De repente, sem que nada o fizesse prever, Jaime Astarloa vê-se envolvido num enredo de contornos surpreendentes, que se precipitam com o assassinato de um seu aluno e amigo por, presumivelmente, Adela...
O livro de Pérez-Reverte, não sendo nenhuma obra maior da literatura espanhola, lê-se com agrado; o autor escreve de uma forma interessante, rica, e constrói belissimamente o enredo. A transformação do romance, a cerca de dois terços do volume, num quase policial contribui para prender o leitor; o modo como o livro é fechado é, na minha visão, bastante feliz, dados os limitados recursos (ao nível de personagens, acontecimentos, etc.).

terça-feira, 11 de novembro de 2014

"Memórias", de Voltaire

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Voltaire é o autor de um conjunto de obras que aprecio: Cândido, O Ingénuo, Zadig, Tratado sobre a Tolerância... A sua escrita, ainda que de um modo geral trate de questões de índole filosófica (o papel da religião, a liberdade, etc.), é surpreendentemente simples - mais simples, a avaliar pelas obras que pude ler até hoje, que a do seu contemporâneo Diderot, talvez literariamente mais sofisticada. É também uma escrita pautada pelo humor: a ironia (ou mesmo o sarcasmo) e o ridículo conferem-lhe qualquer coisa de picaresco.
Estas Memórias, ainda que tenham o seu interesse e sejam de leitura agradável, não são a meu ver um dos escritos com mais interesse do autor. Abarcando cerca de trinta anos, nestas "memórias" Voltaire descreve o contacto com algumas figuras do seu tempo, bem como a sua observação e/ou participação em vários acontecimentos da história da Europa. Assim, refere as intrigas e os ciúmes de uns, os desvarios e as vaidades de outros (Voltaire descreve, por exemplo, o rei prussiano Frederico II, em cuja corte viveu, como uma figura quase operática - nos seus gestos despóticos e arrogantes, nas suas pretensões literárias, mas também no seu sentido trágico), as maledicências do mundo político e intelectual, as ambições e os perigos da diplomacia europeia... Voltaire não faz qualquer esforço (que seria, de resto, inútil) para ser imparcial: conta as coisas a seu modo, defendendo ou justificando a sua posição (por exemplo, a sua intermediação diplomática entre Frederico II e Luís XV, rei de França, em pleno contexto da Guerra dos Sete Anos), ajustando contas com um ou outro inimigo...
Falta, porém, a este texto a graça de outros já mencionados. O relato, ainda que escorreito, pode não ser muito óbvio (ainda que a edição conte com duas cronologias anexas, uma referente ao percurso de vida de Voltaire e outra aos acontecimentos históricos), por lhe faltarem notas explicativas - estas possibilitariam num entendimento mais profundo do discurso e suas intenções. Por outro lado, o texto não sublinha a linha cronológica que o subentende, havendo longos períodos de tempo tratados em pouquíssimas páginas e outros, de caráter quase anedótico, mais aprofundados... Não sendo esta uma obra claramente literária, julgo "perdoáveis" tais características. O texto, longe de ser inocente, é um relato para a posteridade; a nós, leitores posteriores, resta-nos a tarefa de o pesarmos com a balança cultural de que dispomos...

sábado, 8 de novembro de 2014

"Churchill", de François Bédarida

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Poucas semanas de ter lido uma biografia relativa à juventude de Estaline, lancei-me na leitura deste Churchill, do historiador francês François Bédarida. Por curiosidade, é a segunda investida literária que faço no percurso deste personagem histórico.
O livro de Bédarida é menos profundo (no sentido de não ser tão exaustivo na relato de episódios e na descrição de alguns aspetos da vida do biografado - por exemplo, o biógrafo não destaca no seu texto o recebimento do Nobel da Literatura por Churchill, ainda que tal aspeto figure na cronologia anexa) que outras biografias de personalidade do século XX que li nos últimos anos (evoco, por exemplo, a biografia de Hitler, de Ian Kershaw, a de Estaline, de Simon Montefiore, ou a de Mussolini, de Pierre Milza); porém, esta acaba por se revelar uma biografia que, a meu ver, toca os pontos essenciais do percurso de vida e da personalidade (tão particular e cheia de contradições) de Winston Churchill, de uma forma fundamentada, rigorosa, clara e bem estruturada. A leitura de outras obras - penso nomeadamente em Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente, do jornalista-documentarista britânico Laurence Rees - permite-me afirmar que há pontos apenas superficialmente tocados, como seja a atuação negocial de Churchill com Estaline e Roosevelt durante a Segunda Guerra Mundial (o período de maior protagonismo do político inglês). Mas, repito, a obra de Bédarida como visão de conjunto, sem pretensões de maior erudição, é bastante conseguida e recomendável.
Churchill ocupa merecidamente um papel relevante na galeria das figuras de maior relevo do século XX. Não o digo partindo de qualquer juízo de valor prévio, mas crente que o seu papel moldou de alguma forma a segunda metade do século. É certo que o seu papel na Segunda Guerra Mundial à frente da resistente Grã-Bretanha e a sua rejeição do que o nazismo representavam a faceta eventualmente mais nobre de Churchill; mas a sua biografia é bastante mais rica. A obra de Bédarida começa por descrever as suas origens aristocráticas, a sua educação e a sua juventude aventureira (enquadrada pela ação militar no espaço imperial britânico e tendo como finalidade a busca de uma certa glória pessoal); mostra a sua entrada na política e a passagem por diversos cargos governamentais (nas pastas das colónias, do comércio, do interior, da marinha, das finanças, da guerra, etc.); a sua passagem pela Primeira Guerra Mundial e a queda na impopularidade (nos anos trinta esteve afastado da governação mas, para além de muito ativo ao nível da escrita, muito atento aos ventos nacionalistas e agressivos que varriam a Europa); a sua chefia governamental de 1940 a 1945 e as suas inegáveis capacidades de diplomacia e de liderança (Churchill é descrito como um homem aguerrido, afincado trabalhador, convicto na vitória); o seu ocaso político - que passa por um segundo mandato como primeiro-ministro sem muito brilho - até à sua retirada de cena.
É inegável o carisma de Churchill. Parte desse carisma advém, segundo o biógrafo, da imensa ambição, autoconfiança e vontade de glória pessoal de Winston. Desde cedo, Churchill revela o desejo de ser conhecido (ou reconhecido) seja pelos seus feitos militares (que ele próprio imortaliza nas reportagens que vende à imprensa), pelos seus escritos (inicialmente envereda pela escrita romanesca, além da escrita das suas reportagens), pelas suas iniciativas políticas (por vezes mais progressivas do que o espírito reinante nas fileiras conservadoras, onde se inseria) - segundo as suas próprias ideias, ele havia sido talhado para grandes feitos. O seu carisma bebe muito da determinação que revelou durante a Segunda Guerra Mundial (especialmente durante o período em que Inglaterra estava isolada) e da sua capacidade de insuflar energia e coragem à nação; sendo um excelente orador, conseguiu colocar nos seus discursos (muito burilados) várias fórmulas que ficaram para a História e que tiveram o efeito de emocionar e inspirar o seu público-alvo. Porém, longe de ser perfeito, Churchill revelou ao longo da sua vida vários aspetos menos positivos: por vezes, tendia a ser algo demagógico e mesmo calculista; ao longo da sua vida foi imperialista e colonialista (lutou até onde lhe foi possível para travar o processo de descolonização), acreditava na superioridade racial britânica, era machista e chauvinista, em certos momentos (nas suas opiniões e posições) mostrou-se instável...
Uma biografia historiográfica nunca pode ser confundida com uma hagiografia monocromática - se o é, significa que o autor fez uma mau trabalho historiograficamente falando (ainda que isso não invalide que possa ter feito um excelente trabalho hagiográfico); a obra de Bédarida é, na minha opinião, um trabalho equilibrado, sem exageros de tom ou patéticos rasgos de admiração. Cinge-se aos factos e pinta com tons moderados as características da personalidade churchilliana. Julgo ser um bom trabalho.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

"O Romance de Pepe Ansúrez", Gonzalo Torrente Ballester

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Após terminar D. Juan, decidi reler, também de Gonzalo Torrente Ballester, O Romance de Pepe Ansúrez. Mesmo que eventualmente possa não ser uma das melhores obras do autor, esta curta novela acaba por ser - na minha opinião, claro está - uma preciosidade (além do mais, foi através dela que descobri o autor).
Escrita por um octogenário Ballester, esta obra conta uma história simples - de pequenas invejas e mesquinhas intrigas, de maledicências e reputações mas também de literatura... e calcinhas comprometedoramente esquecidas debaixo de poltronas. Quando o poeta e funcionário bancário Pepe Ansúrez comunica renunciar por algum tempo à poesia para se dedicar à escrita de uma romance, a povoação mais que curiosa fica em polvorosa. De que falará o romance do poeta? Promoverá e honrará o autor certos grupos sociais da localidade em detrimento de outros? Meterá o nariz onde não era chamado? Por sua vez, Pedro López, o rival literário de Pepe Ansúrez, decide lançar-se igualmente na escrita romanesca para mostrar como é que um romance se faz...
Um livro tremendamente agradável de ler, com algo de antiquado mas simultaneamente de intemporal...

domingo, 19 de outubro de 2014

"Don Juan", de Gonzalo Torrente Ballester

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Não acho estranho que o senhor ande um pouco aparvalhado; mais ainda, é até razoável. Como se caminhasse por uma estrada e desse de caras, de repente, com dom Quixote. (in Gonzalo Torrente Ballester, Don Juan)
De uma maneira geral, não sou muito adepto da revisitação de personagens ou histórias "clássicas" por autores modernos. Sendo eventualmente uma opção "fácil" para iniciar um romance, o resultado nem sempre é feliz (na maioria dos casos que conheço fica aquém das versões originais). Porém, neste D. Juan, personagem carismática da literatura espanhola (a par de D. Quixote), não posso fazer qualquer juízo comparativo por não te lido a obra de Tirso de Molina (1579-1648), criador do mito don juanino.
O que quanto muito posso dizer é que Ballester escreve de um modo que acho delicioso, pautado por um humor muito característico - algo como uma ironia com qualquer coisa de pícaro (quando, por exemplo, Ballester descreve a vida no Paraíso, Eva desculpa-se com uma dor de cabeça para não fazer amor com Adão...).
Don Juan não é um mero revisitar da história desse personagem, mas antes uma quase brincadeira literária. O narrador, um literato espanhol numa Paris em tempos de devoção a Sartre, tropeça com Leporello, criado de D. Juan - ou talvez com alguém que se faz passar por tal -, que lhe pretende contar a "verdadeira" história do seu amo, ou seja, uma versão que nem os escritores nem os estudiosos e académicos haviam conseguido captar em toda a sua subtileza. O narrador, no entanto, revela ser um cético - tratar-se-á Leporello de um mero farsante?, os seus estranhos procedimentos não serão uma impostura? Tal como Ballester nos "avisa" no prólogo, esta é uma história de contornos fantásticos, em que até entra o diabo. Misturando diversos estilos narrativos, Ballester transporta-nos ao "Siglo de Oro" num divertido (repito a ideia acima escrita) jogo literário.
Havia lido este livro há muitos anos, já mal me lembrando do conteúdo e da forma. A releitura foi uma aposta ganha e a par dela ficou a vontade de, a muito breve prazo, me lançar noutros obras do mestre Ballester.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

"O Herói Discreto", Mario Vargas Llosa

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O Herói Discreto é o último livro publicado por Mario Vargas Llosa. Não sendo um dos romances de Llosa que mais gostei, ainda assim julgo que é um livro muito bem escrito e com uma trama narrativa bem montada.
Nesta obra, o leitor acompanha duas histórias distintas que, perto da conclusão, se cruzam. Por um lado seguimos o percurso de Felícito Yanaqué, um homem de cinquenta anos, dono de uma empresa de transportes, que, de um momento para o outro, vê o curso da sua pacífica vida ser perturbado pela receção de cartas anónimas de extorsão. No entanto, mesmo perante as ameaças de represálias, a perturbadora certeza de lhe conhecerem os passos ou face ao primeiro gesto de violência, Felícito decide não ceder às ameaças e resistir, cumprindo a promessa feita ao seu pai de nunca se deixar pisar... A segunda linha narrativa concentra-se em torno de Rigoberto (sei que o autor escreveu um livro intitulado Os Cadernos De Dom Rigoberto - tratar-se-á do mesmo personagem?), gerente de uma seguradora em vias de se reformar, que se vê envolvido num dédalo judicial referente ao casamento do seu chefe (que entrava a ambição gananciosa dos seus dois filhos); simultaneamente tem que enfrentar a angustiante situação do seu filho Fonchito, que relata ter contacto com um estranho personagem (real?, imaginário?)...
Achei curioso o facto de Llosa ter recorrido uma vez mais ao sargento Lituma, protagonista do seu Lituma nos Andes. Não me espantaram as variadas referências culturais presentes nesta obra, mas também achei interessante (e senti como um convite à leitura) a referência a Doutor Fausto, de Thomas Mann.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

"O Jovem Estaline", de Simon Sebag Montefiore

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Quando há uns anos atrás li Estaline - A Corte do Czar Vermelho, de Simon Sebag Montefiore (obra que retrata o período enquanto líder da União Soviética), fiquei com imensa vontade de ler o livro que o autor dedicou à juventude de Estaline. Os livros do jornalista e historiador não académico Simon Montefiore, dirigidos ao público em geral (interessado mas não especializado), têm a vantagem de ser claros (mesmo que nem sempre chamando a atenção para os espaços em branco não resolvidos), bem escritos e razoavelmente fidedignos (pesem embora, aqui e além, alguns juízos de valor e ideias pré-concebidas - felizmente, na minha leitura não suficientes para desvalorizar-lhe o esforço).
Este livro em particular, premiados várias vezes e bastante bem recebido pela crítica (literária mas também especializada; esta sublinhou que o autor conseguiu trazer à luz do dia alguns aspetos desconhecidos do percurso do ditador), aborda a juventude de Estaline - num conceito alargado de "juventude", porque, de modo mais concreto, este livro aborda aproximadamente os primeiros quarenta anos de vida dessa figura (desde o seu nascimento, em 1878, até à tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, em 1917). Assim, nestas páginas abordam-se os seguintes aspetos: a sua infância na Geórgia (e a questão da sua paternidade duvidosa); a sua entrada na escola e primeiros contactos com o marxismo; a sua passagem pelo seminário e o processo de substituição da fé cristã pelo fervor revolucionário; o seu aprofundamento como revolucionário, as suas primeiras ações junto às massas e a direção de grupos bolcheviques; a passagem à vida subversiva e clandestina e o recurso à ação violenta e mesmo criminosa (participação em assassínios, assaltos a bancos, atos de extorsão, etc.); as várias passagens pela prisão e deportações para a Sibéria e as várias fugas; os contactos com Lenine e o relacionamento (nem sempre pacífico) com vários revolucionários; as ligações amorosas e os filhos legítimos e ilegítimos resultantes dessas relações; a participação na queda do regime czarista e na ascensão dos bolcheviques ao poder.
O "jovem" Estaline é-nos apresentado como uma figura inteligente (com grandes capacidades de organização, bem como de escrita), estudiosa (apaixonado por livros), mas simultaneamente fria, dissimulada, calculista, desconfiada (até à paranoia), conspirativa, vingativa (raramente esqueceu quem o afrontou em algum momento) e, sempre que se lhe afigurava necessário, violenta. A obra de Montefiore permite perceber o contexto em que cresceu aquele que viria a ser Estaline (o "Homem de Aço", traduzido à letra) e o gradual desenvolvimento da sua personalidade e da sua ambição.
Em suma, uma obra que se lê tremendamente bem e bastante informativa; o aspeto menos positivo desta versão "livro de bolso" é, em algumas passagens, a falta das notas bibliográficas, que poderiam ajudar ao esclarecimento da origem de certas citações.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

"Senilidade", de Italo Svevo

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Italo Svevo é, quase certamente, a minha descoberta literária deste ano. Após descobrir a (e me apaixonar pela) novela Um Embuste Perfeito, parti para a leitura do seu romance mais aclamado, A Consciência de Zeno; com esta segunda leitura, descobri uma obra (para mim) maior da literatura (ainda que talvez ensobrada por outras mais afamadas) e confirmei ter encontrado um grande autor. O próprio percurso literário de Svevo (um literato que, depois de escrever dois romances ignorados pela crítica, quase desistiu da escrita, encontrando no seu amigo James Joyce o incentivo para produzir mais) talvez contribua para passar um pouco despercebido - ao que sei, o conjunto da sua obra é relativamente curto.
Este Senilidade, apesar de não uma obra tão refinada quanto A Consciência de Zeno, já contém algumas características que me fazem gostar da escrita de Svevo: a elegância, os aspetos psicológicos dos personagens, a descrição da vida da burguesia (e nomeadamente da moral vigente). Trata da paixão (e na sua dificuldade em geri-la) de Emílio Brentani, um escritor ignorado e funcionário de um seguradora, por Angelina Zarri, uma mulher sedutora e promíscua.
Achei este livro bastante bem escrito e, claro está, pretendo ler mais obras de Svevo.

sábado, 13 de setembro de 2014

"O Duplo", de Fedor Dostoievski

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A leitura deste livro, O Duplo, obra segue-se à recente tentativa (falhada, aliás) de ver o filme nele inspirado recentemente exibido nos cinemas (um aspeto curioso, julgo eu, é quase simultaneidade do aparecimento da versão cinematográfica do romance O Homem Duplicado, de José Saramago, romance que, de certo modo, trata o mesmo tema).
Dostoievski é, inegavelmente, um dos meus romancistas de culto. Sintomaticamente, neste ano e meio de blogue já li e/ou reli uma mão cheia de obras deste autor; a verdade é que sinto com alguma frequência a necessidade de regressar a elas.
Este livro retrata o aparecimento na vida do funcionário Goliádkin de um duplo, isto é, de uma sósia completamente igual a si, até no nome e nas origens. Tal facto, desconcerta bastante o protagonista, apesar de, estranhamente, não afetar os outros do mesmo modo. À medida que o seu duplo lhe vai usurpando a identidade, cresce em Goliádkin a convicção de uma maquinação contra si.
Dostoievski, neste que foi o seu segundo livro, publicado em 1846 logo após Gente Pobre, descreve de forma magistral o mundo altamente hierarquizado e burocratizado do funcionarismo; o autor é igualmente exímio a retratar os tiques psicológicos do protagonista, a sua angústia, desorganização e até mesmo paranoia. Mesmo não sendo uma das suas obras maiores, já se consegue vislumbrar em O Duplo algumas das características da fase mais madura do autor.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes

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Publicado em 1941, Esteiros é comummente apontado como uma das principais obras do chamado neorrealismo português. Muitas vezes apontado como um "romance juvenil" (o exemplar que possuo e li pertence a uma coleção sintomaticamente chamada "Grandes Romances da Literatura Juvenil), talvez por retratar o percurso de uns quantos miúdos e pela sua linguagem simples (ainda que contando com alguns regionalismo e termos mais arcaicos), julgo que Esteiros ultrapassa em muito essa designação.
Tendo-o recebido no meu décimo segundo ou décimo terceiro aniversário, numa idade em que basicamente lia histórias de aventuras e banda desenhada, foi um dos primeiros livros "sérios" que terei lido. Recordo-me de o ler numas férias de Verão, agachado nas frescas escadas de pedra da casa dos meus avós, e de sentir algumas dificuldades no vocabulário, que me obrigaram a algumas viagens até ao dicionário. Recordo-me igualmente de sentir-me algo impressionado com a vida árdua dos miúdos (que, então, tinham mais ou menos a minha idade) retratados naquelas páginas...
O regresso a Esteiros não se fez, pois, sem uma certa nostalgia. Longe de achar este livro infantil, tive grande prazer na releitura desta obra. Hoje talvez o impacto emocional seja menor ou, pelo menos, diferente, mas, por outro lado, valorizei mais a componente estritamente literária da mesma. Desde logo, a história é bastante interessante e muito bem escrita, com inteligência e sensibilidade; os capítulos curtos, a estrutura quadripartida (Outono, Inverno, Primavera, Verão), os muitos diálogos e o timbre rústico de certas falas são características compreensivelmente apelativas para jovens leitores, mas, de novo, julgo que o serão para qualquer leitor.
Soeiro Pereira Gomes retrata o percurso de uns quantos miúdos esfarrapados (Gineto, Gaitinhas, Maquineta, entre outros) de uma vila ribatejana situada nas margens ricas em barro do Tejo, forçados pelas circunstâncias a perder a meninice. As constantes dificuldades, ou mesmo a miséria, pontuam a vida dos populares (miúdos e graúdos) retratados em Esteiros; estes têm que se sujeitar a condições de trabalho árduas, precárias (e sazonais), mal remuneradas. Há, assim, nesta obra um esforço claro de denúncia às desigualdades e injustiças sociais da sociedade portuguesa das décadas de 1930 e 40 (a ação desenrola-se, portanto, em pleno Estado Novo), mas também a descrição do atraso do país em termos produtivos.
A meu ver é, pese embora o seu caráter ideológico, uma obra muito consistente e recomendável da literatura portuguesa.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"A Sentinela", de Richard Zimler

Desta vez, aconteceu-me ler dois policiais de seguida: depois de O Cego de Sevilha, de Robert Wilson, li a última obra de Richard Zimler, A Sentinela, livro que, ao requisitar um outro na biblioteca pública, vi no escaparate dos destaques e decidi (sem grande convicção) levar para casa. A referência que tenho deste autor americano radicado em Portugal provem da leitura de outros dois livros: O Último Cabalista de Lisboa (livro que apreciei) e Os Anagramas de Varsóvia (na altura achei este livro muito parecido com o anterior).
Após a leitura de três livros, julgo poder afirmar que a escrita de Zimler, escorreita e leve, contribui para tornar agradável a leitura. Porém, no que se reporta à história propriamente dita, bem como ao modo de a narrar, nem sempre me parece que Zimler ultrapasse a mediania. Isto é: a meu ver o autor escreve bem, mas nem sempre aquilo que escreve resulta num livro memorável.
Em A Sentinela, o leitor acompanha a investigação, conduzida pelo inspetor da Polícia Judiciária de Lisboa Henrique Monroe, referente ao homicídio de um elemento da elite económica e social do país. A parte policial do romance é, na minha opinião, um pouco pobre, não gerando o suspense de outras obras do mesmo género literário (quando se conhece já o assassino e os seus motivos, Zimler tenta agitar as águas apontando conspirativamente para o pináculo sombrio e corrupto do poder, sem que tal resulte grandemente...); apesar de tudo, achei um pouco mais interessante a maneira como o autor retrata o passado de Monroe (e do seu irmão) e a forma como esse passado definiu a sua identidade.
Provavelmente não será, ao contrário dos outros dois livros citados do autor, objeto de releitura no futuro.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

"O Cego de Sevilha", de Robert Wilson

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Depois da intensidade (mas também da complexidade) de Ulisses, de James Joyce, decidi ler algo mais leve: a minha escolha recaiu n' O Cego de Sevilha, de Robert Wilson.
O que posso dizer acerca deste livro? Simplesmente, que não me encantou... Talvez parte do defeito esteja no meu próprio gosto, que tende a olhar mais criticamente os policiais com maiores pretensões romanescas (nas últimas décadas, ao que julgo saber, houve vários autores a tentar elevar o policial ao estatuto de romance, insistindo na qualidade narrativa, da escrita, a par do interesse e intensidade da história).
Nesta obra, o inspetor-chefe da brigada de homicídios de Sevilha tem que investigar as motivações de um assassino múltiplo que, desde a primeira morte, parece obcecado com a ideia de pôr perante a vista de todos (investigadores incluídos) algumas verdades desconhecidas, inquietantes ou mesmo sórdidas do percurso dos assassinados. Ao longo das páginas, vai ficando claro que estes percursos se cruzam perturbadoramente com o do falecido pai do inspetor-chefe, o qual fora um reputado pintor...
O personagem principal é, a meu ver, um dos pontos menos interessantes do livro: o autor caracteriza-o como um homem solitário, ensombrado por fantasmas do passado e a atravessar um período de desequilíbrios emocionais. Suponho que ao caracterizar desta forma o investigador o autor procurou humaniza-lo (mostrando as suas fraquezas, receios, ansiedades); porém, na minha ótica acabou por retirar-lhe carisma. Outro aspeto que me desagradou no livro foram os excertos do diário do pai do investigador. Apesar de pertinentes para a história, acabam por ser algo enfadonhos e tremendamente inverosímeis e demasiado certeiros (isto é, respondem de forma demasiado perfeita às perguntas que vão sendo levantadas) no que narraram...
É certo que não parti com muitas expetativas para a leitura, mas não esperava chegar aos últimos capítulos com tão pouco interesse no desfecho.
[O próximo livro a ler é, também ele, um policial; apenas desejo que seja um pouco mais interessante.]

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

"Ulisses", de James Joyce

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Ao meu pai

Acabo de reler Ulisses, ao fim de um ano da primeira leitura. O que dizer? Que é, de facto, uma obra-prima. Ao ler o texto que escrevi há um ano atrás (siga-se o link), quase nada há a dizer de novo: é um livro de facto inovador, provocador e (há que assumi-lo) algo difícil - mas, por isso mesmo, desafiante, fascinante, inebriante!
Quando li Ulisses pela primeira vez, senti uma dificuldade adicional na tradução de António Houaiss: a tentativa de traduzir o intraduzível, a adaptação forçada de trocadilhos do inglês para português, a construção algo confusa de algumas frases, até mesmo o tom brasileiro do seu português (tanto ao nível da gramática como do vocabulário), entre outros aspetos, tornaram árdua (em especial em certos capítulos de índole mais experimentais) o meu esforço de compreensão. Na altura, saí do livro com uma sensação de fascínio, mas também de impotência no que toca ao entendimento de certos aspetos - sem ter, no entanto, a noção exata do peso da tradução nessa sensação... Na altura estipulei seguir, numa futura releitura, a tradução de João Palma-Ferreira (a única, à época, em português europeu).
Porém, foi editada no final do ano passado uma nova tradução da obra de Joyce, da autoria de Jorge Vaz de Carvalho. Se já estava motivado a revisitar a obra, apesar de a ter lido há relativamente pouco tempo, o aparecimento desta nova tradução (que recebeu algumas críticas favoráveis) fez-me regressar mais cedo que o previsto a Ulisses.
O que dizer, pois, desta nova leitura? Apenas que a tradução faz toda a diferença! A obra torna-se muito, mas mesmo muito mais inteligível. As dificuldades formais da mesma podem manter-se, bem assim como a obscuridade de algumas das suas referências (culturais, históricas, políticas, literárias, etc.), mas o facto de não termos que lutar contra o português já é uma enorme vantagem. A tradução é, assim, fundamental para a compreensão deste livro, sabendo, claro está (e o próprio tradutor o reconheceu numa entrevista que pude seguir na televisão), que na mesma se perdem sempre aspetos do original (mas o que é que isso interessa, se a obra se torna muito mais agradável de ler?).
Para um dos leitores que mais me influenciou (o meu pai), porém, esta tradução chegou algo tarde. A tradução de Houaiss, que era a tinha na sua biblioteca (foi o seu exemplar que li há um ano atrás), constituiu um entrave demasiado grande para levar a cabo a odisseia da sua leitura até ao fim; a tradução de António Houaiss, ao (como agora tão bem percebi) acrescentar obstáculos à compreensão, dificulta a possibilidade de se retirar prazer da obra.
Porque Ulisses, para quem se deixar envolver, é uma obra deliciosa, cheia de pormenores e cultural e intelectualmente rica! Talvez um dia destes a releia, mas sei de antemão que não preciso duma terceira leitura para descobrir o prazer do livro...!

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

"Todo-o-Mundo", de Philip Roth

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Todo-o-Mundo é a meu ver um livro excelente, mesmo podendo não ser um dos melhores do americano Philip Roth. Trata-se de um livro curto, com uma história simples, mas ainda assim exemplar no que diz respeito à arte de narrar. A escrita de Roth é irrepreensível, parecendo simples - mas, como é sabido, a simplicidade frequentemente implica mestria.
Neste livro, Roth prenda-nos com uma reflexão sobre a extinção - ou, passe a redundância, sobre a morte -, destino reservado a todo o homem (Everyman é o título desta obra na língua original - julgo que a tradução do título não consegue abranger a acuidade do termo inglês). Significativamente a história inicia-se com o funeral do protagonista que, por coincidência ou não, nasceu no mesmo ano que o autor, 1933 (o que talvez permita extrapolar as preocupações do autor, com setenta e poucos anos à data da escrita do romance).
Ao longo das páginas de Todo-o-Mundo, o leitor segue o percurso de vida do defunto, pontuada (como todas) por doenças, hospitalizações, intervenções cirúrgicas, mortes de pessoas próximas. Alicerçadas nestes episódios, as vicissitudes da biografia do protagonista: a infância, o negócio paterno, a relação com o pai e com o irmão, os vários casamentos e divórcios, a carreira profissional e, finalmente, a reforma... A vida é-nos revelada na sua crueza (e finitude), feita de acasos, perigos e opções; e, à custa de opções eventualmente mal calculadas, o protagonista tem que se confrontar com os seus fracassos (mesmo que isso signifique auto-recriminação), com a sua velhice (com a deterioração física, com a solidão...) e com essa estranha mas fatal tendência de aproximação entre a biografia pessoal e a biografia médica, ao ponto de as doenças, os medicamentos, os tratamentos e os óbitos se tornarem temas frequentes de conversa. Certeiro? Sim, seguramente - mas, sobretudo, humano.
 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

"Contos de São Petersburgo", de Nikolai Gogol

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É sempre para mim um prazer regressar à escrita de Gogol. Neste volume pude reler alguns dos contos que mais aprecio do autor (arriscaria dizer que alguns constam, conjuntamente com o seu romance inacabado Almas Mortas - obra que talvez não tarde a reler -, no conjunto das suas obras mais brilhantes): O Nariz, O Capote ou O Retrato. Como fica explicitado na introdução, apenas A Caleche não é exatamente um "conto de São Petersburgo", uma vez que a ação não se desenrola nessa cidade; por outro lado, em Avenida Névski a cidade é a personagem principal nas primeiras páginas (é delicioso a acuidade com que Gogol descreve a sociedade que frequentava aquela artéria, os seus tiques, indumentárias, penteados e até bigodes, etc.).
Na escrita de Gogol há sempre um toque de fantástico, de estranho, de absurdo (não pude deixar de, ao ler O Nariz, encontrar semelhanças com a ambiência inicial de A Metamorfose, de Kafka - o absurdo da situação chega da mesma forma, inesperadamente, sem razão aparente); há também um inconfundível humor, pleno de sarcasmos e de sátira social (Gogol, por exemplo, não se inibe de apontar os maneirismos e servilismos do funcionarismo russo, mas também a insignificância e a pobreza dos pequenos funcionários), de remoques às modas e estéticas (nomeadamente as literárias - a existência de comentários metaliterários são, aliás, um aspeto extremamente moderno na sua escrita), de sentido de ridículo e de acusação à mesquinhez e à sobranceria, mas também - ainda que não muito marcadamente - às desigualdades sociais.
Agradou-me relembrar O Capote, talvez a primeira coisa que li do autor. O personagem principal deste conto é um pequeno funcionário cujo capote está num estado tão miserável que já não possibilita qualquer remendo; o rigor do inverno de São Petersburgo obriga-o, com muito sacrifício, a comprar um novo agasalho... Relativamente a O Nariz, lembrava-me bem do enredo: o protagonista, caracterizado como uma pessoa com o nariz empinado (neste caso, cioso do seu título hierárquico no funcionalismo e do respetivo estatuto), acorda sem nariz (!), reconhecendo-o na rua, vestido com o uniforme de conselheiro de Estado... O nonsense, como facilmente se percebe, predomina nesta história. Por sua vez, O Retrato é acima de tudo um conto fantástico: o olhar penetrante de um retrato parece ter um estranho e nefasto efeito sobre os seus detentores. O último conto que falta referir é Diário de um Louco - um relato diarístico delirante, pautado pelo humor.
Uma coletânea que merece, pois, ser lida. Gogol é um autor absolutamente delicioso, e a sua escrita única; julgo ser fácil perceber porque é colocado no panteão dos grandes autores russos, ao lado de Dostoievski, Tosltoi, Pushkin...

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

"O fogo e outros utensílios da luz", de José Rui Teixeira

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Acabo de ler O fogo e outros utensílios da luz, livro que, ao longo das suas páginas, me fez refletir (ainda que talvez de uma forma muito primária) sobre as mil possibilidades da poesia. Nem que fosse por isso, valeu a pena a passagem por esta obra.
José Rui Teixeira, poeta que conheço (ainda que não muito profundamente) de outros livros, utiliza uma linguagem carregada, pesada - não num sentido negativo, antes num sentido potencialmente metafísico. Deus, morte, mulher são palavras que se repetem, num livro em que entendo predominar uma tonalidade de desolação, de ruína.
Os contornos da poesia presente nestas páginas são, para mim que não sou um crítico literário (e muito menos um crítico literários de poesia), esquivos, herméticos, o que está longe de constituir menoridade (antes pelo contrário, talvez). Assim, alguns poemas constituem-se de palavras ou expressões fortes, densas, tais como "turbulência teológica" ou "suportes ontológicos subjacentes à perplexidade"...

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"Obra Poética - Vol. 1", de Jorge Luis Borges

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Borges, como tantas vezes concluo, é um autor que me fascina. Será uma das (entre tantas) minhas referências literárias - muito graças às suas Ficções, que de quando em quando tenho que reler.
Há uns bons anos atrás aventurei-me na sua poesia. Requisitei, assim, na biblioteca pública um grosso e pesado volume (o primeiro de uma coleção das obras completas do autor) que pouco ajudava ao recato e prazer deste (muito específico) leitor de poesia. Terei lido, talvez, O Fervor de Buenos Aires de forma completa; depois, tomado pelo desânimo (e, devo admiti-lo, não muito encantado), desisti de continuar.
Este regresso à poesia de Jorge Luis Borges foi mais feliz. O primeiro volume da sua obra poética reúne somente três livros: o já referido O Fervor de Buenos Aires (originalmente publicado em 1923), Lua Defronte (de 1925) e Caderno San Martín (de 1929), que correspondem à primeira fase poética do autor (Borges só regressaria à poesia na década de 1960).
Não arriscarei a escrever uma parágrafo sobre a sua poesia. Apenas direi que Buenos Aires está muito presente nos poemas deste volume, o que, de certa forma, retira alguma graça ao leitor que, como eu, desconhece os cenários que os inspiraram. Mas, ainda assim, esta abordagem à poesia do autor alimentou a minha curiosidade, podendo dizer que esperarei pela oportunidade de ler o segundo volume da obra poética.

terça-feira, 15 de julho de 2014

"A Consciência de Zeno", de Italo Svevo

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Até ao momento, A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, talvez seja a maior surpresa do ano, no que a romances diz respeito. A leitura da novela Um Embuste Perfeito deu-me a conhecer - está agora confirmado - um grande escritor, e a curiosidade pela descoberta das suas obras parece-me ainda mais justificada. Próximo capítulo será, ao que parece, a leitura de Senilidade, que já figura na pilha de livros a ler num futuro próximo.
A Consciência de Zeno é um belíssimo livro, muito bem escrito e, já agora, bastante bem traduzido. A escrita de Svevo é elegante; o relato da vida de Zeno, cativante; o ritmo que imprime à narrativa, bem com a estrutura do romance, inteligentes. Em suma, este foi um daqueles livros em que, não estando a leitura ainda fechada, se impôs a certeza de um regresso.
Nesta obra, Zeno, desafiado pelo seu psicanalista, reflete sobre a sua vida - ou, talvez mais acertadamente, sobre alguns pontos particularmente significativos (e relevantes para a sua "cura") do seu percurso. O seu hábito de fumar e as tentativas falhadas para largar esse vício, a relação com o seu pai na juventude e a vivência da sua morte, o percurso algo truculento até ao casamento, a sua vida conjugal e extraconjugal, ou os seus esforços comerciais no negócio do cunhado são-nos relatados no manuscrito de Zeno (um escrito, aliás, nada inocente...). O humor e a ironia estão constantemente presentes na escrita de Svevo, e não é difícil reconhecer a crítica à sociedade de então ou à própria psicanálise.
Senti em vários momentos estar presente uma obra maior da literatura, absolutamente deliciosa. Independentemente disso, é uma obra que facilmente recomendarei a quem entenda gostar de boa literatura!

sábado, 5 de julho de 2014

"Hollywood", de Charles Bukowski

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Quem é Henry Chinaski, o personagem principal e narrador deste Hollywood (e, de resto, de outros livros de Charles Bukowski)? Bem, aparentemente esse personagem corresponde nos traços gerais (eventualmente polido aqui, aparado acolá - afinal, estamos perante uma obra literária, ou não?) ao seu criador; por sua vez, a história deste livro alude diretamente à experiência de Charles Bukowski na indústria do cinema, podendo talvez considerar-se Hollywood um relato autobiográfico ficcionado...
Em meados da década de 1980, Bukowski - um poeta, romancista e contista consagrado, muito admirado por muitos, mas também bastante repudiado pela sua postura provocatória -  foi convidado a escrever um guião cinematográfico. O resultado foi "Barfly", filme realizado por Barbet Schroeder, e interpretado por Mickey Rourke e Faye Dunaway, e que retrata uma fase da vida do escritor. Em Hollywood, é descrita de uma forma desencantada, irónica, crítica (mas não haverá também uma tentativas de distanciação ou mesmo de autojustificação?) a passagem de Bukowski pelo mundo do cinema, com as suas estrelas, egos desmesurados, excentricidades vazias, vícios de várias tonalidades de sordidez, ódios pessoais, invejas profissionais, mesquinhezes, artimanhas contratuais e festas de aparato...
Os personagens do livro aludem a pessoas do universo cinematográfico: assim, Jack Bledsoe é Mickey Rourke, Francine Bowers é Faye Dunaway, e Barbet Schroeder é Jon Pinchot; no personagem Jon-Luc Modard não é difícil reconhecer o carismático realizador francês Jean-Luc Godard, e o mesmo se passa com Wenner Zergog, que se refere ao realizador Werner Herzog... Isto apesar da indicação inicial: «Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança entre as personagens e pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência, etc.»
O álcool, tão presente na vida e obra de Charles Bukowski, é omnipresente em todos os capítulos - Hollywood é, quase se poderia dizer, um romance "etilizado" - porém, sem grandes censuras ou apologias à alcoolemia: o álcool é mais um personagem.
O estilo de Bukowski é assente em frases curtas, diretas, e as ideias aparecem em bruto, sem grandes artifícios literários. Por isso mesmo, pelo seu humor e pelo facto de se reportar a uma realidade que (para bem e para o mal) fascina tantos milhões de pessoas, a leitura acaba por se tornar viciante... Não sendo considerado um dos melhores romances do autor, este primeiro impacto alimentou a vontade de ler-lhe mais obras...

quarta-feira, 2 de julho de 2014

"O Legado de Wilt", de Tom Sharpe

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O Legado de Wilt, publicado originalmente em 2010, é o quinto e último livro da série dedicada a Wilt. Tal como sentira ao ler Wilt em Parte Incerta, há cerca de meio ano, este episódio final está longe de ter o interesse e a graça do volume original. Ainda assim é um livro que se lê com algum (muito moderado) agrado - quase se poderia dizer, mesmo que não acredite na existência de tal, tratar-se de um livro apropriado para ler na praia (digo-o por ser uma leitura pouco ou nada exigente, leve, embora sem grande assunto) - certo: talvez este epíteto não constitua a melhor referência...
Nesta aventura, Wilt vê-se - graças ao esforços da sua voluntariosa, autoritária e histérica mulher - a braços com a hercúlea tarefa de, durante as férias de verão, dar explicações a um jovem aristocrata, medíocre em tudo exceto na destruição. Durante a sua estadia na propriedade da família Gadsley, as confusões e situações patéticas vão-se sucedendo... O romance desenvolve-se, porém, de uma forma bastante amena, pelo menos até cerca de três quartos do volume; aí o humor degrada-se: de morninho (e por vezes algo infantil) passa a exagerado, incongruente, desastrado... Enfim, julgo que com oitenta anos seja difícil ter-se um humor fresco...
Várias são as referências à aventura anterior (o já referido Wilt em Parte Incerta), mas também a Porterhouse, esse ficcional colégio de Cambridge (cenário de outro livro do autor). Como aspeto positivo ressalto a forma mordaz como Sharpe caracteriza tanto a aristocracia como o casamento, aspetos presentes nos outros livros que conheço...
A capa do livro (e o mesmo se passa com as dos restante volumes publicados pela editora), ainda que eventualmente engraçada e chamativa, acaba por revelar demasiado sobre alguns dos episódios do mesmo, o que era a meu ver evitável...

segunda-feira, 30 de junho de 2014

"O Velho que Lia Romances de Amor", de Luis Sepúlveda

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Quando li O Velho que Lia Romances de Amor pela primeira vez, há já uns bons anos atrás, este era, por assim dizer, um livro da moda: toda a gente lera ou, se não tanto, pelo menos conhecia. Tratava-se, pois, de um bestseller, e cá em Portugal ia conhecendo repetida edições. Na altura foi-me recomendado, e eu - um leitor ainda em formação, sem meu próprio gosto - li-o com agrado apesar de não ter ficado marcado por ele. Andei estes anos todos afastado do livro, que entretanto se tornou objeto de recomendação a jovens e adultos em formação, bem como do autor, que entretanto continuou a publicar outras obras (talvez nenhuma, ao que julgo, com tanto impacto como O Velho...).
Regresso agora a este livro graças a uma conversa - uma das conversas sobre livros que mais me marcou, desde que sou leitor. De um modo apaixonado, foram-me recordados os contornos da história e simplicidade, limpidez e sensibilidade da escrita. E eu, mais do que sintetizar a história ou tentar descrever-lhe as características, confirmo apenas estas impressão: trata-se realmente de um bom livro, simpático, muito bem escrito e, sim, sensível. Não merecerá, por estes atributos, a leitura?

quinta-feira, 26 de junho de 2014

"O viajante do século", de Andrés Neuman

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Embora este O Viajante do Século não seja nenhuma obra maior, é ainda assim um livro que se lê com muito agrado. Andrés Neuman revela-nos neste livro um bom contador de histórias; a sua escrita, por outro lado, é bastante fluída mas com uma certa graça (em certas passagens consegue ser quase poética - ou não estivesse a história também ligada à poesia e à tarefa / necessidade / dificuldade de traduzi-la para outra língua). A tradução de Vasco Gato é muito boa - e quase consigo imaginar o prazer do tradutor a traduzir as páginas que se desenrolam em torno da tradução...
A ação do livro passa-se na cidade imaginária (e de geografia incerta, instável) de Wandernburgo, algures na Alemanha. A este local chega Hans, um tradutor em trânsito que acaba por ficar - contra os seus planos iniciais - ao se relacionar com algumas figuras, como é o caso do tocador de realejo (há aqui, claramente, uma ligação ao ciclo de canções de Schubert, "A Viagem de Inverno", com poemas de Wilhelm Müller), o espanhol Álvaro e Sophie, por quem se apaixona.
É profundamente (e, ao que julgo, propositadamente) anacrónico este romance: os personagens, apesar de se moverem nas primeiras décadas século XIX, têm atitudes, modos de pensar, preocupações muito contemporâneas. Algumas das discussões (políticas, filosóficas, estéticas) ocorridas no salão de Sophie Gottlieb permitem duplas leituras, sendo que uma dela nos transporta para a atualidade (a reflexão, por exemplo, sobre a identidade da Europa - cultural, política, etc. - e a aparente falta de rumo).

sábado, 21 de junho de 2014

"Todas as Palavras. Poesia reunida", de Manuel António Pina

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Há uns bons anos atrás (uma década?), sendo eu então um leitor de poesia menos "viajado", li parte do volume então publicado com a poesia reunida de Manuel António Pina. O poeta era-me conhecido de nome, mas o confronto com a sua poesia não me entusiasmou - desisti da leitura e segui o meu caminho. Entretanto, ao longo dos anos fui lendo, aqui e ali, vários poemas do autor (além de seguir com alguma frequência as suas crónicas no Jornal de Notícias) e o interesse cresceu. Cheguei talvez um pouco tarde à sua poesia, mas o que interessa (neste como noutros casos) é que cheguei.
Durante uns bons meses fui lendo entusiasmado os poemas deste seu último livro. Vários foram os poemas que me impressionaram, especialmente aqueles em que a componente humana (biográfica) é mais vincada - são os casos, por exemplo, dos poemas "Farewell Happy Fields" ou "Cuidados Intensivos". Não pude deixar de me deslumbrar igualmente com os versos que o autor dedicou à poesia, ao amor pelos livros ou mesmo aos gatos.
A meu ver, a poesia de Manuel António Pina é singular e merece, assim, a visita frequente.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

"A Morte sem Mestre", de Herberto Helder

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Eu gosto da poesia de Herberto Helder. Dito isto, posso dizer que abomino o folclore em torno dos seus livros; julgo, porém, que ao autor agradará esta abominação (expectável, aliás), caso contrário não repetia - ou deixava repetir - a graça pela terceira vez: publicitação do livro apenas com uma semana de antecedência, edição única (e com um preço pouco acessível - pelo menos para alguns), número limitado de exemplares (limitado pela dimensão da entusiástica procura, porque no nosso país é uma anormalidade haver uma edição de poesia limitada a cinco, sete ou dez mil exemplares), corrida louca para apanhar um livinho (ou dois ou três, porque há quem compre a pensar exclusivamente na revenda imediata, a preços imoralmente inflacionados), reais interessados na obra do poeta que ficam de mãos a abanar... Herberto Helder é colocado (e eu mesmo lá coloco flores algumas vezes - mea culpa, mea culpa) num altar muito próprio, como se se tratasse de uma qualquer impoluta divindade poética; não retirando valor à sua poesia (que, como comecei por dizer, admiro), dou por mim a imaginar - especialmente após a leitura deste livro - um riso de escárnio vindo lá do "último andar esquerdo".
Tal como acontecera com Servidões, este livro conseguiu surpreender-me (e repare-se que desta vez até estava preparado). Pessoalmente acho A Morte sem Mestre um livro mais desigual, menos equilibrado, mas tem poemas arrebatadores, com um toque de acidez muito próprio... E mais não ouso dizer.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"Guarda-me contigo entre as papoilas", de Carlos Lopes Pires

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Por vezes, o destino toma certas liberdades poéticas. Este livro é, de certa forma, uma dessas liberdades poéticas, na medida em que me foi gentilmente ofertado pelo autor num momento em que o tom dos poemas ali constantes se aproximavam das vivências deste leitor.
Como já tenho dito, não tenho muita facilidade em expressar-me sobre poesia - gosto de ler, sei o que gosto de ler, estou consciente das razões das minhas preferências; dizer mais do que isto é sempre arriscado. Porém, ainda assim, escreverei duas ou três linhas sobre este Guarda-me contigo entre as papoilas, de Carlos Lopes Pires.
Um dos aspetos que apreciei neste conjunto de poemas é a sensibilidade expressiva do autor. Há ao longo das páginas um núcleo de palavras que se vão repetindo, a começar pelas papoilas (que estão não somente no título, como também na bonita ilustração da capa - mas há também as cerejas, os muros, os pássaros, etc.), e que remetem para um tempo passado, para a infância e pelo convívio com a natureza e com o mundo rural (seus lugares, objetos, ritmos). A família (os pais, desde logo - o livro é dedicado à mãe autor), as memórias (de tempos mais simples, inocentes, inconsequentes), o envelhecimento, a perda (e a ausência, a  saudade, a falta), envolvidos numa vivência assumidamente cristã, são os vértices - a meu ver - deste livro.
À sensibilidade da expressão poética, termino, junta-se a simpatia do autor. Não que isto seja importante na estrita apreciação do livro, mas não podia deixar de o expressar, reconhecidamente.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

"O Retrato do Sr. W.H.", de Oscar Wilde

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«Nenhum homem morre por algo que sabe ser verdade. Os homens morrem por aquilo que pretendem ser verdadeiro, pelo que o terror nos seus corações lhes diz não ser verdade.» (in O Retrato do Sr. W.H.)
Neste O Retrato do Sr. W.H, Oscar Wilde mistura, com uma inegável mestria, ficção e ensaio. Pouco tempo depois de ter lido O Crime de Lorde Arthur Savile, de características muito diferentes (nomeadamente no tipo de escrita), consegui encontrar nesta novela mais razões para apreciar este autor.
A história deste livro constrói-se em torno de uma teoria literária - neste caso, uma mera construção intelectual - sobre o misterioso dedicatário (Sr. W.H.) dos sonetos de William Shakespeare... Para mim, o interesse deste livro reside, mais do que as questões relativas à interpretação dos sonetos shakespeareanos (que Wilde trata pormenorizadamente, detendo-se, por exemplo, em extensas citações dos sonetos no segundo capítulo), no modo como Wilde reflete sobre as ideias de falsificação - o tal retrato forjado de um deduzido jovem ator chamado Willie Hughes - e de teorização. Neste caso, o tratamento feito por Oscar Wilde da questão referida fez-me refletir sobre o modo como se edificam as chamadas "teorias da conspiração" e outras similares, que - à falta de provas concretas, racionais, sólidas, verificáveis - se servem de argumentos como "a falta de provas é em si mesma uma prova" (!), forçam a informação (omitindo certos factos, sublinhando aspetos acessórios, etc.) ou forjam dados (quando se chega a este patamar estamos perante o caráter fundamentalista, por vezes fanático, de tais "teses")... Outros aspetos que apreciei foram os câmbios entre crença e descrença dos dois personagens principais (o narrador e o seu amigo Erskine), e o modo como se levaram as conjeturas teóricas até ao limite do aceitável, do verosímil, do sensato e racional...