terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

"Do Outro Lado do Canal", de Julian Barnes

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Após a relativamente recente leitura de O Ruído do Tempo, propus-me ler mais livros de Julian Barnes; este Do Outro Lado do Canal terá sido o primeiro gesto nesse sentido (para breve ficará Uma História do Mundo em Dez Capítulos e Meio).
Como o próprio nome sugere, o tal "outro lado do canal" (da Mancha) refere-se a França, esse país com quem Inglaterra ao longo da história manteve relações ora de rejeição/antagonismo (visível em múltiplas guerras), ora de fascínio (sobretudo cultural).
Nesta sua obra Barnes apresenta um conjunto de dez histórias curtas sobre essa relação, em vários momentos dos últimos três ou quatro séculos; o modo (desconfiado, defensivo, mas simultaneamente respeitador, admirador) como ingleses e franceses se olham, e as diferenças de caráter são exploradas com algum humor pelo autor. Há aqui, de certo modo, alguma relação com O Papagaio de Flaubert: também aí um inglês atravessa o canal para se dedicar aos seus estudos sobre Flaubert...
Embora Do Outro Lado do Canal não tenha sido um dos livros mais interessantes que li de Barnes, ainda assim li-o com agrado; as histórias presentes neste volume, para além de partilharem um mesmo tipo de humor subtil, são muito bem escritas e, a meu ver, cruzam bem a parte ficcional com a contextual. Como se trata de histórias curtas, a leitura acaba por ocorrer de forma leve, descontraída.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus

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É verdade que entrei desconfiado nesta edição incompleta (de um modo geral, não gosto de ler obras truncadas - sinto invariavelmente um desconforto por não conhecer o valor daquilo que me furtam): afinal, neste caso incluem-se (ainda que integralmente) somente 115 das 209 cenas do texto dramático original (considerando aqui o texto de 1926, revisto e aumentado sucessivamente pelo autor) - ou seja, praticamente metade. É certo que se pode assumir que o tradutor selecionou criteriosamente o que havia de melhor na volumosa obra; mas como "selecionar" é sinónimo de "excluir", há sempre o risco de se perderem boas passagens em detrimento de outras menores, de acordo com o critério pessoalíssimo de cada leitor. Dito isto, e apesar dessa incompletude, cedo percebi estar perante uma obra de muito interesse: nada mais que um manifesto (indignado) contra a guerra, escrito durante aquele que se considerou ser a primeira de caráter mundial.
Os Últimos Dias da Humanidade é uma obra satírica que se centra sobretudo no modo como a Áustria, território natal de Kraus, viveu a guerra; daí que o autor utilize colagens da vox populi - e assim se entende a presença muito constante da linguagem coloquial, com várias tiques de oralidade (que, aliás, o tradutor , António Sousa Ribeiro, considera bastante difíceis de traduzir, pela especificidade dos dialetos alemães), da imprensa (sobretudo da que fazia apologia da guerra), bem como de alguma das figuras principais do seu tempo (políticos, militares, fazedores de opinião, etc. - personagens históricos que, através das notas de fim, é possível reconhecer). O texto é, desta forma, uma sucessão de vozes (farrapos de conversas, pregões de jornais, discursos, cartas, documentos oficiais, canções), quadro após quadro, com tudo o que isso implica de contrastes, contradições, incompreensões, deturpações, enfim, de ridículos. Kraus, efetivamente, utiliza o ridículo (ou talvez, melhor, o absurdo) como arma contra o belicismo triunfalista e as formas de nacionalismo primário (associado, quase sempre, ao ódio), expondo a mentira, a mesquinhez, a injustiça, a indiferença pela vida humana e o decadentismo em que mergulhou toda a sociedade austríaca.
Um dos alvos principais (a par dos dirigentes políticos e militares) da pena de Kraus é a imprensa: assim, vemos, por exemplo, os jornalistas a empolar o entusiasmo popular (ou mesmo a inventar notícias) com a entrada na guerra, apenas com o fito de vender jornais (Ato 1, Cena 1*); a deturpação da informação e a manipulação da opinião pública, denegrindo-se os inimigos e exaltando-se os sentimentos patrióticos (Ato 1, Cena 9); a produção de relatos do que se passa na frente de batalha escritos bem longe dela (Ato 1, Cena 13). Logo a seguir, o autor fulmina a cúpula das Forças Armadas: vemo-los indignados por lhes apontarem as elevadas perdas humanas - 70 mil, 100 mil  -, e a decidir ataques, levianamente, nos cafés da retaguarda (Ato 1, Cena 10); vemo-los também preocupados (e vaidosos) com a pose a assumir para a posteridade numa fotografia para os jornais (Ato 1, Cena 15); vemo-los, por fim, participar na última cena num banquete orgiástico, apesar da derrocada militar eminente (Ato 5, Cena 27; nesta cena, Kraus carrega no contraste entre o banquete galhofeiro e alcoolizado com descrições de crueldade, de civis fugindo, enfim, dos horrores da guerra).
Simultaneamente, em várias cenas somos confrontados com as vozes de cidadãos anónimos: que, apesar de acérrimos defensores da guerra, procuraram ficar livres do serviço militar (Ato 1, Cena 1); a censura aos inimigos por atos que as tropas austríacas  e alemãs também realizaram (Ato 2, Cena 12). Mas também escutamos os líderes espirituais: um defende que na guerra deixa se de aplicar o princípio cristão de amor ao próximo, e que matar o inimigo não só não é pecado, como é um serviço à pátria e a Deus (Ato 3, Cena 8); outro (um pároco) faz a apologia da violência e da matança (Ato 3, Cena 18). Nem a família imperial escapa: no Ato 3, Cena 13, por exemplo, satiriza com o efeito moralizador de uma visita aos soldados de um elemento da família real, ou com a honra que era morrer pela dinastia reinante.
Numa das últimas cenas, o autor coloca na fala de um dos seus personagens (O Eterno Descontente) um discurso frontalmente antiguerra, em acusa em especial os responsáveis pela guerra (que se sujeitaram ao belicismo alemão), os que ganharam com ela (os que fizeram lucro com a perda de vidas, portanto), os que a defenderam (nomeadamente a atitude impudica da imprensa ao aderir entusiasticamente ao belicismo).
Pelo que se expôs, e apesar do caráter parcial da seleção, é um texto que vale mesmo a pena ler, pelo que tem de eminentemente ético.

* A indicação das cenas segue a ordem dada na edição lida, não correspondendo à numeração do texto original.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

"A Pérola", de John Steinbeck

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Steinbeck foi um autor importante na minha vida; no início do meu percurso como leitor, vários foram as obras lidas: Ratos e Homens, A um Deus Desconhecido, A Leste do Paraíso, A Pérola, e o marcante As Vinhas da Ira. Entretanto, há quase dez anos que não voltava ao autor americano.
Este regresso faz-se quase por acidente: estando a arrumar a parca biblioteca, "tropecei" no curto volume de A Pérola e acabei por colocá-lo de lado para releitura. Na verdade, não passaram muitas semanas até começar a relê-lo.
Seguramente que A Pérola não é um das obras de maior vulto do autor, não sendo igualmente muito profunda em termos filosóficos; trata-se de uma curta novela, com um enredo simples escrito (também) com grande simplicidade (o que a torna muito adequada e acessível a jovens leitores). Focando-se na família de Kino, um pobre pescador de pérolas que tem a felicidade de encontrar uma de avultada dimensão, esta narrativa aborda as temáticas da ganância, da injustiça (nomeadamente social), da corrupção, enfim, da maldade dos homens. O "bem" acontecido àquela família rapidamente se transforma em mal... Particularmente lírica é a forma como se descreve a família - espaço de segurança e amor confiado - e os perigos que a rodeiam e que facilmente podem quebrar a harmonia - todo o episódio da picada do escorpião ao bebé ilustra a fragilidade daquilo que se considera mais sólido na vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

"Viagem à Volta do Meu Quarto", de Xavier de Maistre

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«Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo - entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.» (in Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra)
Se Garrett inicia a sua paradigmática obra citando (com refinado humor, assinale-se) Xavier de Maistre, é porque a obra Viagem à Volta do Meu Quarto (publicada originalmente em 1794) era, em meados do século XIX, tida como uma referência literária, pela sua graça e caráter original.
Efetivamente, e como destaca Pedro Mexia no prefácio deste volume, Maistre constrói o "paradoxo da viagem imóvel" - mas até que ponto será possível viajar no confinamento de quatro paredes (neste caso, o narrador/autor encontra-se em prisão domiciliária, num quarto em Turim, situação que se prolongará por cerca de 40 dias)? O narrador defende e recomenda o seu modelo de viagem, por não implicar custos, riscos ou esforços; além disso, transforma o seu impedimento (em sair daquele espaço) em oportunidade - a prisão torna-se um refúgio que permite enveredar por uma viagem interior. O discurso é, assim, deambulatório, reflexivo, ainda que não muito profundo.
Expedição Noturna à Volta do meu Quarto foi escrito anos mais tarde, ainda que publicado apenas em 1825. Ainda que seja um texto independente, é uma continuação do anterior. Desta vez, porém, a viagem é voluntária e limitada a quatro horas (das oito da noite à meia-noite), o quarto (alugado) é efetivamente um refúgio, um eremitério, um local para se isolar do mundo. O tom acaba por ser um tanto diferente, por vezes mais melancólico, outras mais fantasioso.
Esta obra acaba por ter alguns pontos de contacto com, por exemplo, a obra de Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, nomeadamente na forma como dialoga provocadoramente com o leitor; há ainda uma certa afinidade no humor. Por tudo isto, era difícil não me agradar. 

domingo, 5 de fevereiro de 2017

"2666", de Roberto Bolaño

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Lembro-me quando, há pouco menos de dez anos, apareceu por terras portuguesas o volumoso (são mais de mil páginas) 2666: quase de imediato se transformou num fenómeno mediático, isto é, numa daqueles casos em que as vendas iam a par dos elogios da crítica. De imediato, o último e inacabado (ainda que praticamente pronto a publicar) livro de Bolaño foi por alguns apodado de obra-prima, uma das primeiras do novo século/milénio; julgo não estar a faltar à verdade ou ser injusto afirmar que se transformou num "livro da moda" (pelo menos de certos meios leitores). Ora eu, não sendo propriamente muito amigo de epifenómenos literários (quantos ratos têm parido as montanhas), deixei a poeira assentar; aliás, só por uma casualidade - o empréstimo amigo de Os Detetives Selvagens - entrei finalmente em contacto com o autor chileno. Perante a descoberta desse livro, que até ao momento será o que mais aprecio do autor, impunha-se a leitura próxima de 2666: eis que finalmente aconteceu.
Na verdade é um livro excelente, mesmo muito bom - sim, a minha voz não se distancia do coro de "laudamus te". É uma obra a muitos títulos fantástica, pela inteligência minuciosa da escrita, que se perde em detalhes sem muitas vezes enfrentar o quadro mais geral, mas também pelo seu caráter aberto no que respeita ao enredo: este não apenas não responde inequivocamente a todas as "dúvidas" razoáveis do leitor, como nem sempre apresenta claramente o nexo entre as várias peças do puzzle.
A obra divide-se em cinco partes, que, apesar de conexas (e julgo que a piada é mesmo a teia de conexões, nem sempre imediatas e que por vezes extravasa para outros livros do autor), têm um certo grau de independência; aliás, o autor, compreendo estar próximo da morte, terá dado instruções para se publicarem as partes separadamente, para assim se garantir melhor o sustento da família.
A primeira parte desenvolve-se em torno de um grupo de académicos europeus, estudiosos da obra de Benno von Archimboldi, escritor obscuro, de biografia incerta, propositadamente omissa; após algumas tentativas pouco frutíferas para saberem mais sobre o escritor, recebem a dica que o mesmo poderá estar no México, em Sonora, local onde têm ocorrido assassinatos em série de mulheres; para lá se dirigem e aí conseguem, sem ir mais longe, chegar ao nome de um alemão, provavelmente o tão procurado autor. A segunda parte segue a vida de um académico mexicano, igualmente estudioso de Archimboldi, e que na primeira parte ajuda os companheiros europeus. A terceira parte segue um jornalista negro destacado para Sonora para cobrir um combate de boxe; aí conhece alguns estranhos personagens, acaba por se interessar pelo caso das mulheres assassinadas e visita na cadeia o potencial autor (um alemão). Uma grande travessia do deserto: talvez possa sintetizar assim a quarta parte, a mais longa. Trata-se de um minucioso arrolamento da descoberta das mulheres assassinadas de Sonora desde 1993, e investigações desenvolvidas, que conduzirão à prisão de uma empresário alemão. Por fim, a quinta e última parte segue a vida de Hans Reiter (nomeadamente o seu percurso militar durante a Segunda Guerra Mundial) e o seu início como escritor.
O livro é rico, a escrita de Bolaño convidativa. Talvez não chamasse a esta uma obra-prima, pelo simples facto de a achar algo imperfeita (ainda que se pudesse contrapor o argumento - em todo o caso válido - que toda e qualquer obra é por inerência imperfeita, que a perfeição é um ideal ou uma miragem); mas talvez não seja correto encontrar imperfeição nesse caráter aberto que referi acima - afinal, parece ser um pouco característico do universo do autor chileno, que, aliás, tenciono continuar a explorar.