domingo, 5 de fevereiro de 2017

"2666", de Roberto Bolaño

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Lembro-me quando, há pouco menos de dez anos, apareceu por terras portuguesas o volumoso (são mais de mil páginas) 2666: quase de imediato se transformou num fenómeno mediático, isto é, numa daqueles casos em que as vendas iam a par dos elogios da crítica. De imediato, o último e inacabado (ainda que praticamente pronto a publicar) livro de Bolaño foi por alguns apodado de obra-prima, uma das primeiras do novo século/milénio; julgo não estar a faltar à verdade ou ser injusto afirmar que se transformou num "livro da moda" (pelo menos de certos meios leitores). Ora eu, não sendo propriamente muito amigo de epifenómenos literários (quantos ratos têm parido as montanhas), deixei a poeira assentar; aliás, só por uma casualidade - o empréstimo amigo de Os Detetives Selvagens - entrei finalmente em contacto com o autor chileno. Perante a descoberta desse livro, que até ao momento será o que mais aprecio do autor, impunha-se a leitura próxima de 2666: eis que finalmente aconteceu.
Na verdade é um livro excelente, mesmo muito bom - sim, a minha voz não se distancia do coro de "laudamus te". É uma obra a muitos títulos fantástica, pela inteligência minuciosa da escrita, que se perde em detalhes sem muitas vezes enfrentar o quadro mais geral, mas também pelo seu caráter aberto no que respeita ao enredo: este não apenas não responde inequivocamente a todas as "dúvidas" razoáveis do leitor, como nem sempre apresenta claramente o nexo entre as várias peças do puzzle.
A obra divide-se em cinco partes, que, apesar de conexas (e julgo que a piada é mesmo a teia de conexões, nem sempre imediatas e que por vezes extravasa para outros livros do autor), têm um certo grau de independência; aliás, o autor, compreendo estar próximo da morte, terá dado instruções para se publicarem as partes separadamente, para assim se garantir melhor o sustento da família.
A primeira parte desenvolve-se em torno de um grupo de académicos europeus, estudiosos da obra de Benno von Archimboldi, escritor obscuro, de biografia incerta, propositadamente omissa; após algumas tentativas pouco frutíferas para saberem mais sobre o escritor, recebem a dica que o mesmo poderá estar no México, em Sonora, local onde têm ocorrido assassinatos em série de mulheres; para lá se dirigem e aí conseguem, sem ir mais longe, chegar ao nome de um alemão, provavelmente o tão procurado autor. A segunda parte segue a vida de um académico mexicano, igualmente estudioso de Archimboldi, e que na primeira parte ajuda os companheiros europeus. A terceira parte segue um jornalista negro destacado para Sonora para cobrir um combate de boxe; aí conhece alguns estranhos personagens, acaba por se interessar pelo caso das mulheres assassinadas e visita na cadeia o potencial autor (um alemão). Uma grande travessia do deserto: talvez possa sintetizar assim a quarta parte, a mais longa. Trata-se de um minucioso arrolamento da descoberta das mulheres assassinadas de Sonora desde 1993, e investigações desenvolvidas, que conduzirão à prisão de uma empresário alemão. Por fim, a quinta e última parte segue a vida de Hans Reiter (nomeadamente o seu percurso militar durante a Segunda Guerra Mundial) e o seu início como escritor.
O livro é rico, a escrita de Bolaño convidativa. Talvez não chamasse a esta uma obra-prima, pelo simples facto de a achar algo imperfeita (ainda que se pudesse contrapor o argumento - em todo o caso válido - que toda e qualquer obra é por inerência imperfeita, que a perfeição é um ideal ou uma miragem); mas talvez não seja correto encontrar imperfeição nesse caráter aberto que referi acima - afinal, parece ser um pouco característico do universo do autor chileno, que, aliás, tenciono continuar a explorar.

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