terça-feira, 9 de maio de 2017

"D. Afonso IV" de Bernardo Vasconcelos e Sousa

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Após a leitura da biografia de D. Dinis, urgia, até para encerrar a primeira dinastia, avançar para a biografia de seu filho e sucessor, D. Afonso IV.
O livro da autoria de Bernardo Vasconcelos e Sousa está dividido em 12 capítulos relativamente equilibrados (de dez a quarenta páginas), cronologicamente organizados; é, tanto em termos de linguagem, como em termos estruturais, um texto escorreito, claro, objetivo e, assim, agradável de ler.
Como é comum nos trabalhos historiográficos atuais, a obra inicia-se com uma revisão sobre o que se escreveu sobre o biografado, chamando a atenção para o facto do reinado afonsino ter ficado um pouco ofuscado pelos dos prestigiado D. Dinis e carismático D. Pedro, e talvez excessivamente marcado pelo episódio relativo à execução de D. Inês de Castro. Refere ainda que, apesar dos vários estudos concernentes a D. Afonso IV e ao seu longo reinado de 32 anos, não existir qualquer biografia (no sentido moderno do tempo) dedicada a este rei.
Nos vários capítulos da obra, Vasconcelos e Sousa aborda a infância, juventude e casamento de D. Afonso, além dos seus conflitos com os seus meios-irmãos, bastardos de D. Dinis; o conflito que o opôs a seu pai e que levou à guerra civil (ressalta aqui o espírito truculento do ainda infante; curiosamente, o seu reinado conhecerá igualmente um período de guerra civil, envolvendo de igual modo o herdeiro da coroa); a ascensão ao trono e o ajuste de contas com os seus meios-irmãos (um deles justiçado como traidor); a sua ação legislativa e administrativa (interferindo, por exemplo, em questões da administração concelhia ou de moral); a sua atuação (de enfrentamento) face ao poder senhorial e sua prerrogativas (no sentido da afirmação da supremacia régia); a conjuntura de crise em que decorre o seu reinado (maus anos agrícolas e fomes, Peste Negra, guerras com Castela, escassez de metais preciosos, falta de mão-de-obra, conflitualidade social, etc.); o papel político dos Castros no xadrez político peninsular, a execução de D. Inês de Castro (dama com quem D. Pedro mantinha uma relação extraconjugal, da qual haviam resultado vários filhos) e a consequente guerra civil; as relações diplomáticas com os reinos vizinhos (e em especial com Castela); a sua participação na Batalha do Salado contra os muçulmanos; as relações comerciais do reino e o interesse pelo mar; e finalmente, as determinações constantes no seu testamento e a sua morte.
Considerando as biografias régias que me faltam ler, tenho para mim que as próximas leituras serão sequenciais; assim sendo, a próxima a ler - muito brevemente - é a dedicada a D. Afonso V.

terça-feira, 18 de abril de 2017

"O Gosto Solitário do Orvalho seguido de O Caminho Estreito", de Matsuo Bashô

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Preparando-me para entrar na obra completa (no que se refere a haikus) de Matsuo Bashô (nas versões portuguesas de Joaquim M. Palma - O Eremita viajante), decidi revisitar o pequeno volume O Gosto Solitário do Orvalho seguido de O Caminho Estreito (versões de Jorge Sousa Braga). Há muitos anos já que aprecio a forma poética do haiku, na sua brevidade, depuração, simplicidade e subtileza, pelo que retiro muito prazer de cada regresso à leitura de Issa ou Bashô.
Parti para este livro sobretudo pelos haikus (a primeira parte, O Gosto Solitário do Orvalho, é uma seleta de alguns poemas que têm como pano de fundo as quatro estações), mas, na verdade, acabei por ser surpreendido pelo relato de viagem O Caminho Estreito: este constituiu-se por uma relato em prosa, aliás bastante poético e impressivo na sua simplicidade (julgo que não será indiferente a qualidade e sensibilidade da tradução), pontuado aqui e além por poemas, que vão sendo criados (ou citado, porque há poemas de outros) ao longo da viagem. O leitor sente-se (ou pelo menos este leitor sentiu-se) a peregrinar com o autor, ultrapassando as distâncias de tempo, lugar, contexto. No texto de Bashô a Natureza harmoniza-se com o humano, e o leitor (eventualmente) com a espiritualidade nele patente.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

"As Cruzadas vistas pelos Árabes", de Amin Maalouf

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Há uns meses recomendaram-me a leitura de Amin Maalouf; numa biblioteca familiar descobri um ou outro livro, e trouxe para casa o romance Samarcanda. Mais recentemente, porém, sem ter lido aquele, interessei-me por um outro livro do autor: As Cruzadas vistas pelos Árabes.
Este ensaio histórico (apesar de abordar o passado está, a meu ver, longe de ser um livro de História - é pobre no que se refere à contextualização, não é incisivo na crítica às fontes que lhe servem de base, faz alguns juízos de valor, toma algumas liberdades literárias) aborda, como se indica no título, a perspetiva muçulmana do movimento das Cruzadas, que levou vários cristãos ao Oriente num esforço de recuperação dos Lugares Santos. O relato é fundamentalmente cronológico e centrado na realidade política vivida no Mediterrâneo Oriental - as lutas pelo poder no interior do mundo árabe, os conflitos com outros poderes vizinhos (o Império Bizantino, por exemplo) -, sem grande preocupação em refletir sobre as motivações do movimento cruzadístico.
Segundo o autor (que escreveu a obra em 1983, antes, portanto, do reacender do fundamentalismo islâmico nos últimos anos do século XX), o sentimento existente no Oriente de desconfiança ou confronto com os ocidentais deriva ainda das Cruzadas; julgo que, mesmo que se faça uma leitura atenuada de tal juízo, que é valorizar excessivamente um momento da história que ligou (colocando em conflito) Ocidente e Oriente, e desvalorizar muitos outros aspetos.
As Cruzadas vistas pelos Árabes, se bem que de leitura fácil, peca de algumas debilidades que, a meu ver, lhe retiram interesse e profundidade. Não me sabendo fácil definir o que esperava do livro, certo é que o mesmo não correspondeu às minhas expetativas. Espero ler em breve Samarcanda, e assim conhecer a faceta romanesca do autor.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

"Maigret e o Condenado à Morte", de Georges Simenon

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Maigret e o Condenado à Morte arranca com a fuga de Joseph Heurtin da cadeia aonde aguarda a execução. Espantosamente, a fuga é proporcionada pela própria polícia, sob orientação de Maigret, que, apesar das provas acusatórias, não está convencido da culpabilidade de Heurtin no assassínio violento de duas mulheres, uma senhora idosa, viúva de um diplomata, e sua criada. Maigret arrisca assim a sua carreira na esperança de não ser executado um potencial inocente.
Assim arranca a presente narrativa, que, à conta de algumas curvas e contracurvas, consegue surpreender o leitor. Quanto a este leitor em particular (e quase me apetecia acrescentar, dado o caráter desafrontadamente pessoal deste blogue, «que é o que de facto interessa»), apenas se reitera que a leitura da série "Maigret", nada exigente e literariamente muito simples, constituiu um prazer que se concilia bastante bem com outras leituras eventualmente mais densas. A reincidir brevemente.

sábado, 1 de abril de 2017

"A Literatura Nazi nas Américas", de Roberto Bolaño

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Bolaño conseguiu tornar-se um dos meus autores. Recentemente li o seu monumental 2666, e de novo pude confirmar a impressão dos dois primeiros lidos livros: Os Detetives Selvagens e Estrela Distante. Este é um escritor original, o seu universo é surpreendente, original, fresco e estimulante intelectualmente; tem ainda uma característica que o aproxima do meu gosto: a literatura prevalece sobre a narrativa (neste caso, sem a anular ou sequer minimizar).
Ao longo da leitura de A Literatura Nazi nas Américas várias vezes me interroguei sobre a que género ficcional pertence essa obra de Bolaño. Certamente que não corresponde ao romance - numa definição mais ou menos conservadora de romance -, nem se trata exatamente de uma reunião de contos, pese embora serem histórias curtas, breves biografias; por outro lado, dado o seu caráter ficcional é impossível considerá-la ensaística, ainda que seja esse o tom narrativo. Será qualquer coisa (Mas para que raio precisamos de rótulos?, podem questionar-me, justamente indignadas, algumas mentes. Somente para nos entendermos melhor, reduzindo o irredutível, traduzindo o intraduzível, sabendo de antemão o caráter redutor deste exercício.)  como um "ensaio ficcional"? Sem dúvida que um dos aspetos que me agrada neste título é, precisamente, a sua heterogeneidade formal.
A Literatura Nazi nas Américas é uma coletânea de biografia de personalidades literárias pan-americanas ficcionais; uma dela, aliás, vai aparecer desenvolvida (ainda que com outro nome) no j+a referido Estrela Distante. Parece-me que nesta confabulação bibliográfica (as dezenas de obras citadas, totalmente imaginárias, aparecem listadas numa bibliografia final) é possível reconhecer algum contacto com a obra de Borges, esse mago confabulador.

domingo, 26 de março de 2017

"D. Dinis", de José Augusto de Sotto Mayor Pizarro

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Com a leitura deste D. Dinis retomei o projeto de calcorrear as trinta e quatro biografias régias da coleção "Reis de Portugal", ensejo esse iniciado há quase oito anos. O presente volume foi o décimo sétimo lido, pelo que me encontro a meio do caminho (Demorarei - é a pergunta que me faço - outros oito anos a chegar à meta?).
José Augusto de Sotto Mayor Pizarro é um historiador conhecido deste que estas linhas vai tecendo, porém, se não estou em erro, nunca havia lido nada do autor - talvez por associá-lo a uma historiografia mais assente na genealogia, que nem sempre me fascina. Em todo o caso, a sua biografia dionisina corresponde bem aos propósitos de conjugar o rigor científico com a divulgação a um público não especialista. A linguagem utilizada é clara, objetiva, rigorosa, o que não obsta a alguns quase-àpartes de caráter pessoal (o biógrafo admite-se culpado na sua admiração pelo biografado, faz um ou outro comentário rementendo para a sua própria biografia, etc.), o que, julgo, contribui para aproximar o leitor (se não do biografado, pelo menos) do caráter humano das ciências históricas.
A estrutura do texto é bastante simpática: abre com uma panorâmica sobre a forma como D. Dinis (ou talvez, melhor, o seu longo reinado de 46 anos - apenas suplantado pelos de D. Afonso Henriques e de D. João I) foi sendo apropriado pela cronística, historiografia e imaginário popular (aspetos retomados no fim, em jeito de balanço); num segundo momento, faz-se um enquadramento do reinado, considerando as várias realidades políticas europeias, o reinado antecedente (de D. Afonso III - a sua chegada ao poder, a conquista do Algarve e luta pela sua jurisdição, as suas reformas administrativas, os conflitos com as autoridades religiosas derivadas do seu esforço de centralização do poder).
O grosso de livro analisa o seu reinado a partir de cinco cortes cronológicos: os anos de iniciação ao trono (1277-79), de afirmação (1279-87), de apogeu (1288-1304), de maturidade (1305-18) e de guerra e morte (1319-25). Dentro de cada um destes cortes, o biógrafo mantém uma estrutura de análise mais ou menos semelhante: aborda a política internacional (relação com os reinos peninsulares, ligações matrimoniais, conflitos e ganhos territoriais, tratados  - como o de Alcanices -, etc.), as tensões internas (conflitos com o seu irmão, o Infante D. Afonso, o choque do processo de centralização régias com os interesses dos senhores da nobreza e do clero, a guerra civil que o opõe ao filho), a administração e legislação (gestão do património régio, reforço do poder do rei, afirmação da sua autoridade fiscalizadora - através de inquirições sucessivas), a economia, defesa e povoamento (criação de feiras, cuidados defensivos e de povoamento nas regiões fronteiriças, desenvolvimento de marinha de guerra), entre outros aspetos (destaco, por exemplo, a criação da universidade ou da Ordem de Cristo). O volume encerra-se com um olhar sobre o homem: procura-se inferir traços de personalidade, abordar os anos de juventude, reconstituir os seus laços familiares (focando-se nomeadamente a rainha, irmão, filhos legítimos e bastardos), o seu quotidiano (o pouco que é possível conhecer) e colocar em evidência alguns elementos da sua produção literária.
Projeto ler em breve a biografia de D. Afonso IV, esgotando assim os textos dedicados nesta coleção aos reis da primeira dinastia; futuramente, conto esgotar os três volumes que me faltam ler relativos aos monarcas da denominada dinastia de Avis, e os consagrados aos Filipes segundo e terceiro de Portugal.

sábado, 25 de março de 2017

"A Maldição do Louva-a-Deus", de Miguel Miranda

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Não posso dizer que A Maldição do Louva-a-Deus, de Miguel Miranda, seja um livro imprescindível; é, como o anteriormente lido do autor - Sem Coração -, um livro ligeiro, bem disposto e, dentro do género, bem escrito.
O enredo entrelaça o percurso de vários personagens, todos com qualquer coisa de caricato, de que destaco: o escritor medíocre em crise de produção e com uma enorme necessidade de reconhecimento (ao ponto de encenar conversas telefónicas com escritores consagrados - Saramago, Mia Couto, Lobo Antunes, Tabucchi, Lídia Jorge, etc. - em cafés portuenses, ou comprar em massa os seus próprios livros para interferir com os números das vendas); e o vigarista (acabado de sair da prisão) especializado em aliciar mulheres, fazendo-se passar por um personagem algo misterioso, e sacar-lhes as economias. Existem ainda a esposa desiludida com a sua vida conjugal com o escritor, uma vidente algo sinistra, a filha lunática de um empresário têxtil, ou o traficante com pretensões a revolucionário. A ação desenrola-se em vários locais carismáticos de Gaia e Porto: Serra do Pilar, Avenida da República, Cabedelo, Passeio Alegre, Granja, Café Mucaba, livrarias Lello e Leitura, Petúnia...
Comparativamente ao já referido Sem Coração, julgo que este livro é um pouco menos interessante, sendo o seu enredo mais vago, sem grande direção, e demasiado assente no aspeto caricatural dos personagens (alguns, aliás, nem sequer têm grande relevância ou interesse).

terça-feira, 7 de março de 2017

"A Lenda do Santo Bebedor", de Joseph Roth

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Segunda novela lida de Joseph Roth: est' A Lenda do Santo Bebedor confirmou a minha primeira impressão (com O Leviatã), bastante positiva, da escrita de Joseph Roth. A escrita simples e o sentido alegórico (ou quase moral) das suas narrativas constituem aspetos que tornam aprazível a leitura.
A Lenda do Santo Bebedor relata as últimas semanas de um sem abrigo alcoólico das ruas de Paris, de seu nome Andreas. Inicialmente, nada sabemos desta figura, mas ao longo da narrativa vamos descobrindo as suas origens e alguns aspetos do seu passado. Entregue à sua sorte e vida errante, sem objetivos, Andreas aceita 200 francos de um estranho, comprometendo-se a, quando possível, devolver essa quantia na capela de S. Teresinha de Lisieux. A partir deste lampejo de sorte, alguns milagres mais lhe vão acontecer: arranja um serviço remunerado numa mudança de casa, encontra dinheiro numa carteira usada que entretanto comprara. Apesar de se dirigir várias vezes à capela para saldar a sua dívida, há sempre algo que o desvia e que resulta em dissipar futilmente o dinheiro prometido... Se, por um lado, Roth parece abordar a possibilidade de regeneração, por outro, acaba por prender Andreas a uma espécie de fatalismo, aliado a alguma falta de caráter e vontade própria (apenas parcialmente justificada pelo consumo de álcool); a meu ver esta novela trata, assim, de oportunidades perdidas.
Lido em pouco mais de uma hora, renovou-me a vontade de continuar a conhecer a obra de Joseph Roth.

sábado, 4 de março de 2017

"Maigret & Os Crimes de Montmartre", de Georges Simenon

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Se os livros anteriormente lidos da série "Maigret" foram escrito e publicados por volta do ano 1930, este Os Crimes de Montmartre data de 1951. Essa diferença temporal é, de certo modo, notória para o leitor: o personagem mantém-se congruentemente o mesmo, bem como as características literárias, mas há pequenas diferenças no desenrolar do enredo - fiquei com a sensação de uma maior maturidade narrativa, da construção mais aberta e arejada da história. Seja o que for - não me é difícil precisar -, este terá sido o livro mais apreciei dos até ao momento lidos.
A história desenvolve-se em torno de dois assassinatos, um dos quais denunciado, antes de ocorrer, à polícia por Arlette, uma bailarina de striptease. Após uma noite de trabalho, a stipper informou a polícia local que ouvira dois indivíduos a planear o assassínio de uma condessa; pressionada a dar mais pormenores na Polícia Judiciária, mostra-se, porém, hesitante e acaba quase por refutar as suas declarações. Alguma horas depois, Arlette aparece estrangulada em casa; pouco tempo depois, uma condessa decadente é efetivamente encontrada assassinada.
O mundo da noite parisiense, feito de cafés e cabarés sórdidos, serve de pano de fundo a esta investigação de Maigret.

quarta-feira, 1 de março de 2017

"Aforismos e Afins" e "A Educação do Estóico", do Barão de Teive

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«Ponho fim a uma vida que me pareceu conter todas as grandezas, e não vi conter senão a incapacidade de as querer.» (in A Educação do Estóico, do Barão de Teive)
E eis-me regressado a Pessoa, uma vez mais; é que este leitor, de quando em quando, sente necessidade de regressar a tal autor - e sendo a sua obra édita tão múltipla, há sempre imensas faces para redescobrir. (Podia acrescentar, em tom de brincadeira, que por mais que percorra a obra pessoa nunca descobri o tal texto - absurdamente medíocre, de autoajuda rasteirinha - que termina da seguinte forma: «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...»).
Porque Pessoa é, sem dúvida, uma das grandes personalidades literárias mundiais - talvez a maior aqui do retângulo, por muito que as décadas de setenta e oitenta, à custa de tantos inéditos e descobertas no espólio, bem como da entrada em força nos currículos escolares, tenham levado a uma espécie de "enjoo pessoano"... (que, aliás, de alguma forma se prolonga, ou não fosse frequente ouvir políticos de carreira e outros personagens anti-culturais a citar, de peito inchado, um "quando a alma não é pequena" ou um "o poeta é um fingidor"); porque a sua obra vale a pena ler e reler, e reler, e reler; porque, por mais que se conheçam de cor pedaços dela, há sempre muito para admirar.
Feita a "hagiografia" - necessária, justa, apesar de não gostar de tais discursos -, resta-me dizer que retirei muito prazer da releitura de A Educação do Estóico (O Único manuscrito do Barão de Teive), uma das muitas obras fragmentadas e incompletas do espólio de Pessoa. Organizada pelo estudioso Richard Zenith (autor, por exemplo, de uma fotobiografia pessoana), a sequência construída do texto pessoano procura aproximar temáticas comuns, para resultar numa certa lógica.
Este "único manuscrito" é, segundo as palavras do Barão, uma "memória intelectual", um testamento da sua vida, prestes a ser terminada pelo suicídio, após ter queimado todos os seus escritos («(...) trechos já completos para obras que nunca escreveria»). Como se vê, Teive partilha com Pessoa esta incapacidade de levar até ao fim os seus escritos, de lhes dar forma definitiva; a justificação dada  pelo aristocrata remete para o seu perfecionismo, que, aliás, lhe toldava todas as outras ações além da escrita. Tal como o seu autor, o Barão de Teive recusa o amor (e a vida sexual) por ter "escrúpulos" em afetar o outro. Vários são, tal como acontece com o Bernardo Soares do Livro do Desassossego, os pontos de contacto com aquilo que é possível apreender da forma de pensar de Pessoa.
Quanto aos Aforismos e Afins, o interesse é mais relativo, pois se trata somente de uma selecta de fragmentos entre as muitas que se poderiam constituir. São, se se quiser, uma via preguiçosa de acesso à obra do autor português.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

"Do Outro Lado do Canal", de Julian Barnes

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Após a relativamente recente leitura de O Ruído do Tempo, propus-me ler mais livros de Julian Barnes; este Do Outro Lado do Canal terá sido o primeiro gesto nesse sentido (para breve ficará Uma História do Mundo em Dez Capítulos e Meio).
Como o próprio nome sugere, o tal "outro lado do canal" (da Mancha) refere-se a França, esse país com quem Inglaterra ao longo da história manteve relações ora de rejeição/antagonismo (visível em múltiplas guerras), ora de fascínio (sobretudo cultural).
Nesta sua obra Barnes apresenta um conjunto de dez histórias curtas sobre essa relação, em vários momentos dos últimos três ou quatro séculos; o modo (desconfiado, defensivo, mas simultaneamente respeitador, admirador) como ingleses e franceses se olham, e as diferenças de caráter são exploradas com algum humor pelo autor. Há aqui, de certo modo, alguma relação com O Papagaio de Flaubert: também aí um inglês atravessa o canal para se dedicar aos seus estudos sobre Flaubert...
Embora Do Outro Lado do Canal não tenha sido um dos livros mais interessantes que li de Barnes, ainda assim li-o com agrado; as histórias presentes neste volume, para além de partilharem um mesmo tipo de humor subtil, são muito bem escritas e, a meu ver, cruzam bem a parte ficcional com a contextual. Como se trata de histórias curtas, a leitura acaba por ocorrer de forma leve, descontraída.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus

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É verdade que entrei desconfiado nesta edição incompleta (de um modo geral, não gosto de ler obras truncadas - sinto invariavelmente um desconforto por não conhecer o valor daquilo que me furtam): afinal, neste caso incluem-se (ainda que integralmente) somente 115 das 209 cenas do texto dramático original (considerando aqui o texto de 1926, revisto e aumentado sucessivamente pelo autor) - ou seja, praticamente metade. É certo que se pode assumir que o tradutor selecionou criteriosamente o que havia de melhor na volumosa obra; mas como "selecionar" é sinónimo de "excluir", há sempre o risco de se perderem boas passagens em detrimento de outras menores, de acordo com o critério pessoalíssimo de cada leitor. Dito isto, e apesar dessa incompletude, cedo percebi estar perante uma obra de muito interesse: nada mais que um manifesto (indignado) contra a guerra, escrito durante aquele que se considerou ser a primeira de caráter mundial.
Os Últimos Dias da Humanidade é uma obra satírica que se centra sobretudo no modo como a Áustria, território natal de Kraus, viveu a guerra; daí que o autor utilize colagens da vox populi - e assim se entende a presença muito constante da linguagem coloquial, com várias tiques de oralidade (que, aliás, o tradutor , António Sousa Ribeiro, considera bastante difíceis de traduzir, pela especificidade dos dialetos alemães), da imprensa (sobretudo da que fazia apologia da guerra), bem como de alguma das figuras principais do seu tempo (políticos, militares, fazedores de opinião, etc. - personagens históricos que, através das notas de fim, é possível reconhecer). O texto é, desta forma, uma sucessão de vozes (farrapos de conversas, pregões de jornais, discursos, cartas, documentos oficiais, canções), quadro após quadro, com tudo o que isso implica de contrastes, contradições, incompreensões, deturpações, enfim, de ridículos. Kraus, efetivamente, utiliza o ridículo (ou talvez, melhor, o absurdo) como arma contra o belicismo triunfalista e as formas de nacionalismo primário (associado, quase sempre, ao ódio), expondo a mentira, a mesquinhez, a injustiça, a indiferença pela vida humana e o decadentismo em que mergulhou toda a sociedade austríaca.
Um dos alvos principais (a par dos dirigentes políticos e militares) da pena de Kraus é a imprensa: assim, vemos, por exemplo, os jornalistas a empolar o entusiasmo popular (ou mesmo a inventar notícias) com a entrada na guerra, apenas com o fito de vender jornais (Ato 1, Cena 1*); a deturpação da informação e a manipulação da opinião pública, denegrindo-se os inimigos e exaltando-se os sentimentos patrióticos (Ato 1, Cena 9); a produção de relatos do que se passa na frente de batalha escritos bem longe dela (Ato 1, Cena 13). Logo a seguir, o autor fulmina a cúpula das Forças Armadas: vemo-los indignados por lhes apontarem as elevadas perdas humanas - 70 mil, 100 mil  -, e a decidir ataques, levianamente, nos cafés da retaguarda (Ato 1, Cena 10); vemo-los também preocupados (e vaidosos) com a pose a assumir para a posteridade numa fotografia para os jornais (Ato 1, Cena 15); vemo-los, por fim, participar na última cena num banquete orgiástico, apesar da derrocada militar eminente (Ato 5, Cena 27; nesta cena, Kraus carrega no contraste entre o banquete galhofeiro e alcoolizado com descrições de crueldade, de civis fugindo, enfim, dos horrores da guerra).
Simultaneamente, em várias cenas somos confrontados com as vozes de cidadãos anónimos: que, apesar de acérrimos defensores da guerra, procuraram ficar livres do serviço militar (Ato 1, Cena 1); a censura aos inimigos por atos que as tropas austríacas  e alemãs também realizaram (Ato 2, Cena 12). Mas também escutamos os líderes espirituais: um defende que na guerra deixa se de aplicar o princípio cristão de amor ao próximo, e que matar o inimigo não só não é pecado, como é um serviço à pátria e a Deus (Ato 3, Cena 8); outro (um pároco) faz a apologia da violência e da matança (Ato 3, Cena 18). Nem a família imperial escapa: no Ato 3, Cena 13, por exemplo, satiriza com o efeito moralizador de uma visita aos soldados de um elemento da família real, ou com a honra que era morrer pela dinastia reinante.
Numa das últimas cenas, o autor coloca na fala de um dos seus personagens (O Eterno Descontente) um discurso frontalmente antiguerra, em acusa em especial os responsáveis pela guerra (que se sujeitaram ao belicismo alemão), os que ganharam com ela (os que fizeram lucro com a perda de vidas, portanto), os que a defenderam (nomeadamente a atitude impudica da imprensa ao aderir entusiasticamente ao belicismo).
Pelo que se expôs, e apesar do caráter parcial da seleção, é um texto que vale mesmo a pena ler, pelo que tem de eminentemente ético.

* A indicação das cenas segue a ordem dada na edição lida, não correspondendo à numeração do texto original.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

"A Pérola", de John Steinbeck

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Steinbeck foi um autor importante na minha vida; no início do meu percurso como leitor, vários foram as obras lidas: Ratos e Homens, A um Deus Desconhecido, A Leste do Paraíso, A Pérola, e o marcante As Vinhas da Ira. Entretanto, há quase dez anos que não voltava ao autor americano.
Este regresso faz-se quase por acidente: estando a arrumar a parca biblioteca, "tropecei" no curto volume de A Pérola e acabei por colocá-lo de lado para releitura. Na verdade, não passaram muitas semanas até começar a relê-lo.
Seguramente que A Pérola não é um das obras de maior vulto do autor, não sendo igualmente muito profunda em termos filosóficos; trata-se de uma curta novela, com um enredo simples escrito (também) com grande simplicidade (o que a torna muito adequada e acessível a jovens leitores). Focando-se na família de Kino, um pobre pescador de pérolas que tem a felicidade de encontrar uma de avultada dimensão, esta narrativa aborda as temáticas da ganância, da injustiça (nomeadamente social), da corrupção, enfim, da maldade dos homens. O "bem" acontecido àquela família rapidamente se transforma em mal... Particularmente lírica é a forma como se descreve a família - espaço de segurança e amor confiado - e os perigos que a rodeiam e que facilmente podem quebrar a harmonia - todo o episódio da picada do escorpião ao bebé ilustra a fragilidade daquilo que se considera mais sólido na vida.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

"Viagem à Volta do Meu Quarto", de Xavier de Maistre

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«Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo - entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.» (in Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra)
Se Garrett inicia a sua paradigmática obra citando (com refinado humor, assinale-se) Xavier de Maistre, é porque a obra Viagem à Volta do Meu Quarto (publicada originalmente em 1794) era, em meados do século XIX, tida como uma referência literária, pela sua graça e caráter original.
Efetivamente, e como destaca Pedro Mexia no prefácio deste volume, Maistre constrói o "paradoxo da viagem imóvel" - mas até que ponto será possível viajar no confinamento de quatro paredes (neste caso, o narrador/autor encontra-se em prisão domiciliária, num quarto em Turim, situação que se prolongará por cerca de 40 dias)? O narrador defende e recomenda o seu modelo de viagem, por não implicar custos, riscos ou esforços; além disso, transforma o seu impedimento (em sair daquele espaço) em oportunidade - a prisão torna-se um refúgio que permite enveredar por uma viagem interior. O discurso é, assim, deambulatório, reflexivo, ainda que não muito profundo.
Expedição Noturna à Volta do meu Quarto foi escrito anos mais tarde, ainda que publicado apenas em 1825. Ainda que seja um texto independente, é uma continuação do anterior. Desta vez, porém, a viagem é voluntária e limitada a quatro horas (das oito da noite à meia-noite), o quarto (alugado) é efetivamente um refúgio, um eremitério, um local para se isolar do mundo. O tom acaba por ser um tanto diferente, por vezes mais melancólico, outras mais fantasioso.
Esta obra acaba por ter alguns pontos de contacto com, por exemplo, a obra de Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, nomeadamente na forma como dialoga provocadoramente com o leitor; há ainda uma certa afinidade no humor. Por tudo isto, era difícil não me agradar. 

domingo, 5 de fevereiro de 2017

"2666", de Roberto Bolaño

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Lembro-me quando, há pouco menos de dez anos, apareceu por terras portuguesas o volumoso (são mais de mil páginas) 2666: quase de imediato se transformou num fenómeno mediático, isto é, numa daqueles casos em que as vendas iam a par dos elogios da crítica. De imediato, o último e inacabado (ainda que praticamente pronto a publicar) livro de Bolaño foi por alguns apodado de obra-prima, uma das primeiras do novo século/milénio; julgo não estar a faltar à verdade ou ser injusto afirmar que se transformou num "livro da moda" (pelo menos de certos meios leitores). Ora eu, não sendo propriamente muito amigo de epifenómenos literários (quantos ratos têm parido as montanhas), deixei a poeira assentar; aliás, só por uma casualidade - o empréstimo amigo de Os Detetives Selvagens - entrei finalmente em contacto com o autor chileno. Perante a descoberta desse livro, que até ao momento será o que mais aprecio do autor, impunha-se a leitura próxima de 2666: eis que finalmente aconteceu.
Na verdade é um livro excelente, mesmo muito bom - sim, a minha voz não se distancia do coro de "laudamus te". É uma obra a muitos títulos fantástica, pela inteligência minuciosa da escrita, que se perde em detalhes sem muitas vezes enfrentar o quadro mais geral, mas também pelo seu caráter aberto no que respeita ao enredo: este não apenas não responde inequivocamente a todas as "dúvidas" razoáveis do leitor, como nem sempre apresenta claramente o nexo entre as várias peças do puzzle.
A obra divide-se em cinco partes, que, apesar de conexas (e julgo que a piada é mesmo a teia de conexões, nem sempre imediatas e que por vezes extravasa para outros livros do autor), têm um certo grau de independência; aliás, o autor, compreendo estar próximo da morte, terá dado instruções para se publicarem as partes separadamente, para assim se garantir melhor o sustento da família.
A primeira parte desenvolve-se em torno de um grupo de académicos europeus, estudiosos da obra de Benno von Archimboldi, escritor obscuro, de biografia incerta, propositadamente omissa; após algumas tentativas pouco frutíferas para saberem mais sobre o escritor, recebem a dica que o mesmo poderá estar no México, em Sonora, local onde têm ocorrido assassinatos em série de mulheres; para lá se dirigem e aí conseguem, sem ir mais longe, chegar ao nome de um alemão, provavelmente o tão procurado autor. A segunda parte segue a vida de um académico mexicano, igualmente estudioso de Archimboldi, e que na primeira parte ajuda os companheiros europeus. A terceira parte segue um jornalista negro destacado para Sonora para cobrir um combate de boxe; aí conhece alguns estranhos personagens, acaba por se interessar pelo caso das mulheres assassinadas e visita na cadeia o potencial autor (um alemão). Uma grande travessia do deserto: talvez possa sintetizar assim a quarta parte, a mais longa. Trata-se de um minucioso arrolamento da descoberta das mulheres assassinadas de Sonora desde 1993, e investigações desenvolvidas, que conduzirão à prisão de uma empresário alemão. Por fim, a quinta e última parte segue a vida de Hans Reiter (nomeadamente o seu percurso militar durante a Segunda Guerra Mundial) e o seu início como escritor.
O livro é rico, a escrita de Bolaño convidativa. Talvez não chamasse a esta uma obra-prima, pelo simples facto de a achar algo imperfeita (ainda que se pudesse contrapor o argumento - em todo o caso válido - que toda e qualquer obra é por inerência imperfeita, que a perfeição é um ideal ou uma miragem); mas talvez não seja correto encontrar imperfeição nesse caráter aberto que referi acima - afinal, parece ser um pouco característico do universo do autor chileno, que, aliás, tenciono continuar a explorar.

sábado, 28 de janeiro de 2017

"O Último Dia dum Condenado", de Vítor Hugo

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Vítor Hugo é uma das minhas muitas falhas literárias: deste autor apenas li esta pequena obra - O Último Dia dum Condenado. Pequena e eventualmente menor em termos literários, se atentarmos a outras obras do autor, como sejam Os Miseráveis ou Nossa Senhora de Paris (que tenciono um dia ler), mas nem por isso menor em interesse.
Trata-se de um manifesto contra a pena de morte, publicado anonimamente em 1829, e que viria a gerar alguma polémica - não apenas pela controvérsia do tema, mas sobretudo pela forma algo cirúrgica (como se fosse uma "autópsia intelectual", nas palavras do narrador) como tratou os sentimentos, angústias, sofrimentos, humilhações de um condenado à morte, condenado esse acerca do qual o leitor desconhece o nome ou a sua história (além de que cometeu um crime de sangue, de que se reconhece culpado, e que deixa uma filha de três anos, a mulher e a mãe - que, afinal, também acabam por ser condenadas: à orfandade, à viuvez, à desonra).
Após conhecer a sentença, o condenado é conduzido para o cárcere de Bicêtre (no qual aguarda seis semanas até ser apreciado o seu recurso).  Aí decide escrever um relato das suas emoções, «(...) o único meio de sofrer menos com tais angústias é observá-las, e ao pintá-las distrair-me-ei delas.»; escreve para a posteridade e para fazer refletir os que à morte condenam (ainda que o seu idealismo vacile: «Quando a minha cabeça tiver sido cortada, que me interessa  que cortem outras?»). A morte está sempre presente, por é praticamente inevitável, e apesar de todos os esforços de racionalização - nomeadamente que a guilhotina garante uma morte indolor, que seria pior uma condenação a trabalhos forçados perpétuos, etc. - acaba por não conseguir afastar alguma esperança. Os que o rodeiam neste último dia de vida (os guardas, o padre, etc.) não compreendem a sua angústia - para eles, afinal, a vida continua, e aquele homem condenado pouco lhes diz...
No prefácio à edição de 1832, Hugo é brilhante: argumenta abertamente contra a ignomínia da pena de morte, justificando as razões que o levaram a escrever O Último Dia dum Condenado e porque o fez de uma forma despessoalizada (para abranger todos os condenados). Faz algumas considerações de índole social perfeitamente atuais, nomeadamente quando associa as origens miseráveis e a falta de instrução (sem que isso fosse culpa sua) à queda no crime.
É, pois, um relato espantoso, emocionalmente intenso sem cair no melodramatismo, em muitos aspetos mais realista que romântico. Seguramente uma obra a que conto regressar mais vezes.

domingo, 22 de janeiro de 2017

"Maigret & O Louco de Bergerac", de Georges Simenon

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Continuando na senda das investigações do comissário Maigret, personagem emblemático de Georges Simenon, desta vez propus-me ler Maigret & O Louco de Bergerac.
A presente investigação resulta de um acaso: estando o comissário a viajar de comboio, apercebe-se que o seu companheiro de compartimento, que até aí se mostrara agitado, se lança do comboio; imediatamente trata de o seguir, mas quando o interpela, é disparado um tiro contra si, acertando-lhe com gravidade num ombro. Após ser confundido pelas autoridades locais com o "louco" que estaria a estrangular as mulheres de Bergerac, Maigret permanece a convalescer durante duas semanas na localidade, iniciando por sua conta, e apesar de acamado, uma investigação que incide sobre as figuras que o rodeiam - o comissário sabe que uma (ou mais) dessas figuras se liga com o misterioso homem que saltara do comboio...
A narrativa resulta curiosa, em especial pela particularidade de o investigador se encontrar confinado a um quarto de hotel.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

"Requiem. Uma alucinação", de Antonio Tabucchi

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Como escrevi há relativamente pouco tempo (a propósito de A cabeça perdida de Damasceno Monteiro), tinha vontade de ler, «(...) graças à adaptação cinematográfica de Alain Tanner», Requiem. Uma alucinação, de Antonio Tabucchi. Quis o destino que tal obra existisse na biblioteca local.
Apesar de alguns pontos em comuns (um certo imaginário tabucchiano da "portugalidade" popular), Requiem é uma obra bastante diferente daquela que reli em novembro passado. Tal como se lê no título, define-se como "uma alucinação" - fica, portanto, claro o caráter onírico da narrativa; tem igualmente uma dimensão deambulatória, uma vez que o narrador se passeia por uma cidade de Lisboa algo deserta, num abafado domingo de julho. O dito narrador, que se encontrava em férias em Azeitão dormitando sobre um livro de Pessoa, combinara um encontro com o fantasma do poeta português às doze horas (!) - por muito incongruente que parece a frase que escrevi, este é o mote da obra de Tabucchi. Durante meio dia, percorre alguns locais da capital (Cemitérios dos Prazeres, uma pensão de quartos à hora, Museu Nacional de Arte Antiga, Cascais, Casa do Alentejo, Praça do Comércio) e imediações e interage com vários personagens caricatos (um drogado, um cauteleiro, um taxista, uma cigana, um pintor copista, um revisor de comboio, fantasmas de pessoas conhecidas, entre outros), até finalmente se encontrar com o poeta num restaurante - um estudioso Pessoa com o seu objeto de estudo...
O volume encerra com um texto ensaístico em que o autor procura explicar a génese do presente romance, dando especial destaque à forma como referências biográficas pessoais (a doença do pai) entraram no texto ficcional.
Requiem. Uma alucinação dificilmente poderá ser considerada uma obra literária obrigatória; mas certo é que conseguiu proporcionar-me um grande prazer. O seu caráter deambulatório, a simplicidade, as referências à cultura portuguesa (e não só) vão muito ao encontro do meu gosto. Talvez um destes dias a acrescente à minha biblioteca, pois sempre conto relê-la mais à frente.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

"O Leviatã", de Joseph Roth

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Como cheguei a este livro? Sei que foi através de algum dos livros lidos no último ano (e até desconfio de dois ou três), mas não me recordo da referência exata; tomei nota do título e do autor para uma (se possível) leitura futura, e passaram-se meses até me decidir procurá-lo na biblioteca local. Constava do catálogo e, com a cota na mão, lá consegui resgatá-lo do depósito.
Comecei a lê-lo no mesmo dia em que o requisitei, acabando-o no dia seguinte. A obra trata, de certa forma, da persistência e perseguição do sonho (ou ilusão), mas também do declínio que muitas vezes se lhe segue. Nissen Piczenik, comerciante judeu de corais, conduzia - apesar do seu analfabetismo e ideias fantasiosas sobre o mar e os corais - um negócio próspero num pequeno vilarejo; quando, por fim, sai da sua terra e contacta com o mar, não só começa a perder a objetividade como se deixa seduzir pela possibilidade de vender corais artificiais... Mas o declínio não tarda.
A escrita de Roth é relativamente precisa e direta, sem grandes floreados, mas ainda assim conseguindo manter um certo tom fantasioso (que anda, evidentemente, ligado ao sonho). Esta curta novela conseguiu, de facto, encantar-me pela sua singeleza, leveza, mas também pelo seu caráter algo trágico.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

"Portugal, um Perfil Histórico", de Pedro Calafate

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Este curto ensaio da autoria de Pedro Calafate, Portugal, um Perfil Histórico, faz uma revisão (limitada, como desde logo o autor assume) às contínuas reinvenções do modo como nos pensamos enquanto povo e país; para tal, parte do pensamento de alguns letrados e/ou intelectuais (os que de algum modo problematizaram o tema) que marcaram a nossa História, do período medieval ao século passado. Entre as figuras referidas ou abordadas contam-se: Duarte Galvão, Zurara, Fernão Lopes, João de Barros, Camões, André de Resende, Damião de Góis, Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro, Pedro Nunes, Garcia da Orta, Pe. António Vieira, Verney, D. Luís da Cunha, Ribeiro Sanches, Herculano, Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Pessoa, António Sérgio e Borges de Macedo.
Os mitos fundadores (a sua criação - e a necessidade de justificar o nosso destino coletivo - mas também a sua crítica ou ultrapassagem - pense-se no "milagre de Ourique", desmistificado por Herculano), a reflexão sobre as debilidades do país (levada a cabo com especial acuidade no período das Luzes e em Oitocentos - pense-se, por exemplo, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, de Quental), a procura de um rumo para o futuro (ora algo desligado do passado, como em Sérgio, ora nele enraizado, como na ideia de "Quinto Império" desenvolvida por Vieira ou Pessoa), são algumas das perspetivas ensaiadas por Pedro Calafate.
Leitura bastante curiosa e, pese embora ser uma obra muito sintética, proveitosa.