domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Auto da Feira", de Gil Vicente

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Um regresso às origens, ao fim de muito anos. A vontade de revisitar alguns dos principais textos de Gil Vicente foi suscitada pela recente leitura de um artigo de José Mattoso ("O Imaginário do Além em Gil Vicente", da obra Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval).
Considerado o primeiro grande dramaturgo português, a biografia de Gil Vicente é um tanto ao quanto esquiva (por exemplo, tanto as datas de nascimento como de morte permanecem incertas); também um aspeto que nos distancia do autor é o facto de lhe conhecermos as obras por intermédio de um dos filhos, Luís Vicente, que as publicou na Copilaçam, em 1562 (não é fácil avaliar até que ponto existiu intervenção alheia nos textos originais, nomeadamente com o fito de regularizar a métrica ou suprimir versos particularmente críticos). Em todo o caso, aparte essas questões de teor académico, podemos sempre apreciar os textos como nos chegaram.
Na didascália inicial do Auto da Feira pode ler-se que foi representado em Lisboa ao rei D. João III às matinas do Natal de 1527 (alguns estudiosos acham mais provável essa representação ter ocorrido no ano seguinte, mas é uma discussão em aberto). Em todo o caso, reflete um acontecimento marcante da época: o saque da cidade de Roma (e o cerco ao Papa) pelos exércitos do Imperador Carlos V, em Maio do referido ano de 1527 (a edição que li atribui muito peso a tal facto, na medida em que inclui um texto concernente ao mesmo e excertos de documentos coevos ao saque).
Neste texto vicentino (considerado um auto de devoção, de tons morais, ainda que também contenha elementos de comédia ou farsa), o mundo é-nos apresentado como uma feira (erigida por Mercúrio), em que nos tentam vender o Bem (na loja do Tempo e do Serafim vende-se a paz, a consciência, as virtudes) e/ou o Mal (na loja do Diabo os produtos principais são as «artes de enganar / e cousas pera esquecer / o que deviam lembrar», «falsas manhas de viver», hipocrisia, a mentira).
As críticas à Igreja de Roma e ao clero são um tanto violentas, especialmente se tivermos em conta que à data que em foi representado este auto a Inquisição já estava bem implementada em Portugal (aparentemente, aliás, Gil Vicente sofreu alguma forma de perseguição no final da sua vida; por outro lado, numa edição posterior das suas obras, de 1586, foram feitos cortes em alguns dos pontos mais sensíveis...). Segundo o personagem Diabo, os clérigos eram seus clientes habituais; Roma, por sua vez, admite já antes ter comprado mentiras e outras torpezas ao Diabo, procurando desta vez comprar paz (atente-se ao contexto acima mencionado), oferecendo como moeda de troca jubileus e indulgências (!). Serafim lembra a Roma que Deus dá guerra a quem com ele guerreia; e acrescenta que aquela tratava dos pecados dos outros sem, como devia, atacar os seus...
Um dos momentos mais cómicos do texto coincide com a entrada em cena dos dois casais de lavradores. Amândio Vaz confessa ao seu compadre o desejo de vender (barato) a sua mulher, a qual é descrita como sendo irascível, violenta ao ponto de lhe dar pancadas; por sua vez, a mulher de Amândio revela à sua amiga o desejo que o Diabo lhe leve o marido, caracterizado com um inútil, um glutão e beberrão. Chegados à feira, e não compreendendo tratar-se de um feira de virtudes (e vícios), perguntam ao Serafim se vende chapéus, burel ou patos, mostrando completo desinteresse pelos produtos que este comercia.
O gozo que a leitura deste texto me deu é difícil de descrever; no início referia-me a um "regresso às origens" por se tratar de algo que estudei nos bancos da escola (o Auto da Feira, como o Auto da Índia, foi um dos textos estudados). Agora, como então, não consigo deixar de achar a obra vicentina absolutamente deliciosa. E vai daí... já tenho de lado outros livros do autor para reler.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pelo seu contributo. O seu comentário será publicado em breve.