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Refiro-me àquele em que o imaginário se desenvolve sem o suporte dos sentidos, mas estimulado pela ideia de que o homem está sujeito a forças invisíveis muito mais poderosas do que ele próprio. (excerto do "Prefácio à 1ª edição", in Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval)Admito que ler um livro de artigos académicos pode não ser o tipo de leitura mais apelativo; porém, o tema de Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval, do eminente historiador José Mattoso - as crenças, o imaginário, as práticas medievais relativas à relação dos vivos com os mortos -, é do meu particular interesse. O valor e o interesse dos dezasseis artigos que compõem este livro são variáveis, mas, de uma maneira geral, todos contribuem para a definição do quadro mental vigente no contexto peninsular medieval. No prefácio à primeira edição o autor faz uma excelente apresentação do conjunto de textos, articulando-os à vista de uma mesma preocupação; neste texto procurarei tão somente destacar, de forma descritiva mas panorâmica, os aspetos mais relevantes ou que mais me interessaram dos vários artigos.
Os primeiros artigos refletem sobre as razões que justificam o culto aos mortos (a ideia - patente nas diversas religiões - de que, de alguma forma, os mortos interferem com os vivos, e que é necessário harmonizar essa relação), mas também sobre os rituais (muitas vezes com origens na realidade pagã, ou seja, pré-cristã) que foram sendo institucionalizados na sociedade medieval ocidental: as lamentações fúnebres, a conceção de uma viagem além-túmulo (a necessidade cristã de se dar a comunhão aos moribundos corresponde à preocupação pagã em fornecer o alimento para suportar essa viagem cheia de perigos e vicissitudes), as orações pelos defuntos, o confronto com a existência de espíritos malignos, etc.
A mudança de mentalidades ocorrida no século XI, resultante de uma visão menos pessimista do mundo (a partir deste século a população europeia começa a aumentar, diminuem os maus anos agrícolas, há um clima mais pacífico, ganham-se novas terras para a agricultura, etc.) mas também parcialmente das práticas desenvolvidas em Cluny, é analisada pelo autor num dos artigos que mais me cativou. No seio dessa ordem instituiu-se o Dia dos Fiéis Defuntos, e desenvolveram-se novas conceções e práticas ligadas ao culto dos mortos; Cluny assumiu-se, assim, como a intercessora privilegiada com os mortos (acumulando com isso poder e rendas). Num outro artigo, igualmente cativante, o autor caracteriza o culto dos mortos em Cister no tempo de S. Bernardo (séc. XII): nesta ordem o ritual, se comparado com o cluniacense, era mais discreto; por outro lado, o conceito de "purgatório" ganha força na doutrina e prática cultivadas pelos monges brancos.
Outro âmbito de interesse de Mattoso, refletido em dois artigos, é a relação entre o poder e a morte. Considerando que a importância que as mortes dos chefes (e, em primeiro lugar, dos reis) têm para uma comunidade, na medida em que podem trazer uma desestabilização cósmica, torna-se fundamental restabelecer a harmonia; assim, ganham relevos os lutos e os prantos como catarse, bem como a ereção de túmulos e monumentos em materiais duráveis (que não apenas evoquem a memória, mas também os valores exemplares que esses defuntos chefes representavam e que se pretendem eternos). Na cronística pré-afonsina a morte dos reis ganhou um outro significado: nestes textos mostra-se que, apesar do desaparecimento daquelas figuras, a vida, a linhagem e o reino continuam. As referências nas crónicas à morte de outros personagens (não régios) têm normalmente um caráter exemplar - exemplos de coragem, santidade ou, pelo contrário, de castigo.
Debruçando-se sobre a literatura medieval - nomeadamente sobre os prantos fúnebres na poesia trovadoresca galaico-portuguesa e sobre o pranto épico castelhano -, o autor procurou sobretudo proceder à contextualização desses textos; mais que avaliar a sua originalidade ou relevância literária no contexto peninsular e europeu, Mattoso analisou o tom desses prantos à luz dos rituais fúnebres medievais de figuras régias ou de outros chefes, para, assim, avaliar a sua consonância com o quadro mental. O autor também se debruçou sobre o imaginário do além-túmulo nos "exempla" peninsulares medievais (textos, frequentemente utilizados pelos pregadores em virtude do seu caráter apelativo e dramático, que continham um ensinamento moral, espiritual e/ou religioso); nos que se reportam à problemática em questão, constatou que os mesmos confirmavam as crenças tradicionais (almas penadas, espíritos em trânsito), nem sempre refletindo a visão teológica mais ortodoxa...
Um dos artigos que me chamou particularmente a atenção ao folhear pela primeira vez este livro foi "A necromancia na Idade Média". A magia, que gozara de grande popularidade no período clássico, era tida na época medieval como uma possibilidade de contactar a alma dos mortos, ainda que fosse sendo condenada pela patrística e pelos vários concílios. Porém, persistiu (com alguma tolerância) uma "magia branca", cristã, feita de exorcismos, bênçãos, gestos rituais vários, usos de relíquias, etc., usada para repor a já mencionada "harmonia" (especialmente nos casos de óbitos violentos, em que os mortos, não tendo podido preparar-se para a morte, se "tornavam" uma ameaça para os vivos, aterrorizando-os, provocando acidentes, etc.).
O artigo "Satanás, o Acusador" foi um dos textos que mais me agradou, na medida em que aborda o segredo que rodeava os pecados mais graves (heresia, sodomia, incesto, parricídio, etc.). Ao se fazer silêncio sobre certos pecados (a Igreja favorecia esta ocultação), acreditava-se evitar a sua propagação; porém, a partir dos séculos XII e XIII a Igreja lutou por instituir a confissão privada obrigatória (em que o clérigo faz de mediador essencial entre o crente e Deus) - essa instituição queria conhecer os pecados privados e ter papel mais ativo na orientação das consciências. Na literatura medieval está presente esse conceito de "silêncio" aplicados aos pecados mais graves, como forma de proteção da comunidade (lançar boatos sobre esses pecados era perturbar a mesma - era ato próprio de Satanás); gradualmente, porém, os textos vão-se conformando às intenções da ortodoxia, sublinhando mesmo o caráter divinamente positivo da confissão perante um clérigo (era preferível confessar primeiro a Deus, através dos seus representantes, do que poder ser acusado pelo demónio...). Porque os crentes se mostravam receosos da violação do seu segredo pelos clérigos, a Igreja foi instituindo castigos para os membros faltosos do clero.
"Santos portugueses de origem desconhecida" é um texto que aborda o tema dos santos populares medievais portugueses, reconhecidos ou não pela Igreja. Através do estudo de Martirológicos e Hagiológicos (textos de difícil avaliação, tanto ao nível do conhecimento das fontes que lhe serviram de base e/ou dos critérios de recolha da informação), Mattoso chama a atenção para a existência de santos fraudulentos (isto é, forjados, havendo casos em que os autores dessas falsificações criaram/recorreram a documentos falsos, autoridades antigas inexistentes, etc.), invenções que pretendiam lisonjear ou enobrecer a Península Ibérica ou Portugal (uma finalidade que se pode apelidar de nacionalista), ou mesmo uma região ou diocese em particular. As confusões (que por vezes implicavam a fusão) entre santos distintos, ou as situações de duplicação (santos de um lugar que passam a ser de outro, como se se tratasse de uma figura distinta), também são referidas.
Num curto artigo, o autor faz uma reflexão sobre a relação entre amor e morte (dois conceitos aparentemente tão distantes) na Idade Média. A obra termina com um curioso texto intitulado "O imaginário do Além em Gil Vicente", em que se procura encontrar nas obras vicentinas ecos da cultura popular (o entendimento do purgatório, do inferno, do destino das almas, etc.), nem sempre coincidentes com aquilo que, um pouco mais tarde, foi fixado no Concílio de Trento. É possível, por exemplo, ler em Gil Vicente uma posição negativa face às indulgências, questão que, como se sabe, deu origem a uma divisão religiosa na Europa em inícios do século XVI; pelo que sei da ainda mal delimitada biografia vicentina, o autor chegou a sofrer alguma forma de perseguição no fim da sua vida resultante das suas posições algo heterodoxas... Este artigo conseguiu alimentar a minha vontade em revisitar as obras desse autor.
Como se vê, pelo tosco esforço de síntese feito neste texto, Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval trata nos seus artigos vários aspetos de um mesmo problema, de uma forma rigorosa, ainda que por vezes também ensaística (como nos casos em que o autor deambula por campos mais pertencentes à Antropologia do que à História).
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