sábado, 17 de janeiro de 2015

"Bartleby, o Escrivão", de Herman Melville

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Esta é uma daquelas obras-chave para mim. Já a li umas poucas vezes e o seu encanto teima em não desaparecer. Melville é uma das minhas muitas falhas: se revisito ocasionalmente esta sua obrinha, conheço apenas vagamente o seu romance Moby Dick, sem nunca o ter lido, e recordo mal Billy Bud, lido já há uns bons anos. De Bartleby, o Escrivão posso dizer que é magistralmente escrito, num estilo sóbrio e desapaixonado (bem condizente com o que é narrado).
Bartleby é um daqueles personagens marcantes, como tão bem afirma Jorge Luis Borges na sua curta apresentação ao conto; partindo dele, Enrique Vila-Matas escreveu o seu delicioso Bartleby & Companhia, romance de feições ensaísticas, que trata de escritores com o "síndrome de Bartleby" (ou "escritores do não"), isto é, de todos aqueles escritores de obra ou duas que caíram num (voluntário ou não) mutismo criativo.
A obstinação excêntrica (ou mesmo fantástica) de Bartleby, que teima em responder "Preferia não o fazer" às ordens que lhe são dadas, poderá ser incompreensível; no entanto, poderá igualmente gerar (tal como acontece com o personagem que nos narra a história) uma incompreensível e desarmante simpatia. Todas as questões que se possam levantar sobre Bartleby (sobre a sua biografia ou sobre o seu estranho comportamento) são de difícil resposta - de onde veio?, o que pretende?, quem é na verdade? Sabemos somente que se trata de um homem solitário, metido consigo mesmo, educado e bastante eficiente e diligente no seu trabalho de copista - mas também, ou acima de tudo, um homem desamparado.
Um conto fantástico? Certamente. Mas também um conto profundamente humano.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

"A Vida Perdida de Eva Braun", de Angela Lambert

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Começo este texto com uma reflexão: ler um mau livro (pontualmente, claro está) contém qualquer coisa de positivo - quanto mais não seja, estimula-nos a escolher o que lemos com mais critério.
Neste caso, a leitura de A Vida Perdida de Eva Braun, de Angela Lambert, relembrou-me a necessidade de estar muito atento quando se escolhe uma biografia - há imensas biografias disponíveis, de valores muito desiguais, passando pelas hagiologias/demonologias, obras de tese (desde as mais absurdas às mais insidiosamente verosímeis e convincentes, ainda que infundadas), monografias de "jeitosos" (dos que um dia acordaram com vontade de fazer uma nova biografia sobre Afonso Henriques ou Napoleão, com as suas mui pessoais interpretações e convicções) e ensaios jornalísticos (muitas vezes textos com qualidade e rigor, mas nem sempre com uma metodologia muito inocente). Pessoalmente, eu gosto de biografias históricas, científicas, académicas, credíveis - isto é, escritas por alguém que estude (de preferência profissionalmente) o período em que se enquadra o biografado, alguém que lhe domine as fontes e recente produção bibliográfica, alguém que siga um método rigoroso e sólido de investigação científica (que implique, por exemplo, uma minuciosa crítica de fontes). Há, portanto, que avaliar muito bem o currículo de quem escreve e verificar com algum pormenor a bibliografia utilizada. Por não o ter feito neste caso, acabei por oferecer a um familiar uma biografia que me desmerece por não ter a qualidade exigida - uma obra, lamento assumi-lo, francamente medíocre.
O livro de Angela Lambert não é uma biografia academicamente aceitável (citável, se se quiser); é, quanto muito, uma obra ensaística de cariz popular (com frases bacocas como «Pode ser um anátema para aqueles que o consideram a encarnação do mal, mas a verdade é que o Führer alemão...» ). A ideia da autora seria, ao que julgo, aproveitar sobretudo a oportunidade de construir um texto (e fê-lo generosamente, escrevendo quase quatrocentas e cinquenta páginas) sobre uma figura que, a seu ver, havia sido desdenhada pela historiografia.
A presente biografia falha, a meu ver, por várias razões. Em primeiro lugar, em termos conceptuais as opções da autora parecem-me genericamente insatisfatórias. É o caso da utilização da expressão "Acontecimentos Negros", para se referir ao Holocausto, às perseguições e violências do regime nazi, às mortes causadas pela guerra. A expressão é demasiado maniqueísta para ser seriamente considerada.
Por outro lado, julgo que Angela Lambert cai demasiadas vezes em conjeturas. Frequentemente, impossibilitada de preencher determinadas lacunas por falta de informação (como a sexualidade de Eva ou de Adolf Hitler), lança-se em nem sempre satisfatórias conjeturas. O perigo, no entanto, cresce quando tais conjeturas, inicialmente assumidas como tal, vão ao longo das páginas solidificando, servindo para suportar novas conjeturas...
A falta de um critério seguro nas suas tomadas de posição podem ferir as sensibilidades mais críticas. Se autora não se arrisca a referir o que Eva sabia ou não sobre o Holocausto e outros aspetos (no Cap. 22, "Que poderia Eva ter sabido?"), preferindo perder-se em deambulações superficiais e genéricas de caráter moral, já não revela o mesmo pudor quando afirma categoricamente (mas não de forma sustentada) que "esta" e "aquela" figura próximas de Eva "sabiam". A convicção da autora transforma-se em muitos momentos em argumentos ou provas, em "verdades". As tiradas frequentes de "psicologismo", superficialidades quase sempre pobremente (ou totalmente não) fundamentadas, também empobrecem o texto.
Os juízos de valor (a um nível muito, muito básico) vão-se acumulando (a realidade ora é romantizada, ora é diabolizada), o que seria impossível numa biografia sustentada em critérios puramente historiográficos. Veja-se por exemplo os termos utilizadas na seguinte frase: «A Kristallnacht deu a todos os nazis - do grande Satã ao mais insignificante colaborador, passando pelos diabos menores - o ensejo de fazerem o seu pior.» Eva, numa certa passagem, é descrita como "bondosa", apesar de viver próximo da maldade...
Outro aspeto medíocre deste texto é a manifesta simpatia da autora pela figura biografada. Admitindo que essa "simpatia" possa ser legítima até um certo ponto, tal não devia transparecer na descrição e na argumentação do texto - tal significa falta de distanciamento, fundamental para qualquer esforço credível e sério de construção de conhecimento biográfico. Tome-se como exemplo o seguinte excerto, bastante infeliz: «Tentando ser o mais objetiva possível, depois de andar atrás dos pormenores da vida de Eva, a tentar descascá-la camada a camada e discernir o que motivou as opiniões dela, depois de ter vivido com Eva Braun durante três anos, durante os quais se tornou tão real para mim como os meus amigos, não consigo acreditar que ela fosse racista ou sádica. (...) Julgada segundo os critérios do seu tempo - entre os quais os da minha afável mãe - ela não era anti-semita.»
E, por último, há que apontar a "interferência" da "afável mãe" da autora. Angela Lambert mistura o percurso da biografada com o da sua mãe (afirma, por exemplo, que, nascidas em anos próximos, viriam a desenvolver os mesmos gostos e ideias - ou seja, a utiliza o conhecimento que tem das vivências da mãe para preencher vazios de desconhecimento relativos a Eva, processo não apenas lamentável como absolutamente ridículo), facto que pode dar um colorido literário à obra, mas que - interrupção após interrupção, irrelevância após irrelevância - acaba por se tornar absolutamente confrangedor ou mesmo, há que assumi-lo, irritante.
Em suma, os critérios da autora acabam muitas vezes por cair no ridículo, por serem perfeitamente inconsistentes e não compatíveis com um trabalho metodologicamente coerente.
Admito que o livro possa ter um certo encanto literário, pela escrita simples e com um ou outro toque feminino, mas no fim tais aspetos são irrelevantes; dado - a crer na autora - não haver muitas biografias "sérias" dedicadas a Eva Braun, parece-me que esta foi uma oportunidade quase inteiramente falhada, chegando A Vida Perdida... a ser confrangedora e angustiante para um leitor com algum espírito crítico.