terça-feira, 22 de setembro de 2015

"Estrela Distante", de Roberto Bolaño

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Na sequência de Os Detetives Selvagens - e da descoberta literária de Roberto Bolaño -, decidi ler Estrela Distante. Devo dizer que este livro me entusiasmou desde a primeira página: uma espécie de prólogo em que Bolaño remete para um livro seu anteriormente publicado (A Literatura Nazi nas Américas, obra que tenciono ler logo que me seja possível); refere um personagem de Os Detetives Selvagens (Arturo B.[elano], «(...) veterano das guerras floridas e suicida em África») como coadjuvante na escrita; e cita um dos personagens para mim mais marcantes das Ficções, de Jorge Luis Borges - Pierre Menard, o autor que queria recriar (mas sem copiar) o D. Quixote palavra por palavra, como se fosse um escritor seiscentista (!). Nesta primeira página vi eu, assim, um bom augúrio; de facto, não sai defraudado.
Tal como na obra anteriormente lida, Bolaño debruça-se sobre o mundo da Poesia, da criação literária, de jovens aspirantes a ícones das Letras, tendo como pano de fundo contexto latino-americano (nomeadamente o contexto político chileno da década de 1970). De novo, há neste livro um processo de busca, desta vez centrado no tenente Carlos Wieder (que o narrador conhecera, antes do golpe militar de Pinochet, como Alberto Ruiz-Tagle, poeta "autodidata" e frequentador de ateliês poéticos). Wieder revela-se um personagem sinistro, embora de contornos esquivos: afamado piloto de avião, escritor de enigmáticos versos no céu durante as suas exibições aéreas, assassino estudantes e jovens literatos, fotógrafo do horror, participante (através de pseudónimos vários) em obscuras revistas literárias.
Estrela Distante é um romance curto - lê-se em poucas horas -, muito bem escrito e com um enredo cativante. As referências literárias são abundantes (e estimulantes). A título de curiosidade, ilustrativa dos jogos literários de Bolanõ, refira-se que um dos personagens deste Estrela Distante pretendia fazer uma antologia da literatura nazi nas Américas; por sua vez, associa-se Carlos Wieder à conceção de "jogos de guerra", o que (julgo) remete de certa forma para o seu romance inacabado O Terceiro Reich (que ainda não li).
Bolaño é, pois, um autor que pretendo continuar a percorrer e que ouso abertamente recomendar.

sábado, 19 de setembro de 2015

"O Exílio e o Reino", de Albert Camus

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Albert Camus ocupa um lugar muito próprio no meu percurso como leitor. A minha primeira leitura de Camus - O Estrangeiro - aconteceu sem nada saber sobre o escritor e seu papel nas Letras europeias. Tinha então quinze anos e só li aquela obra por obrigação escolar: uma percentagem da avaliação da disciplina de Filosofia de 10º ano recaía na elaboração de uma ficha de leitura sobre uma das vinte ou trinta obras propostas pelo professor. A escolha de O Estrangeiro resultou de dois factos: existir na biblioteca paterna (como aliás outras das obras arroladas pelo professor) e não ser muito grande (não tendo na altura quaisquer hábitos regulares e estruturados de leitura, a dimensão do livro era fundamental). O meu pai, depois de me indicar quais os que possuía, recomendou-me o livro de Camus, como sendo uma obra interessante e acessível (tanto na linguagem simples, sem grandes enfeites, como, digamos, no seu conteúdo "filosófico").
Sem que nada o fizesse prever (ler por obrigação pode ser extremamente aborrecido), O Estrangeiro foi uma relevação para mim - entusiasmado, li-o num fôlego e (porque durante a leitura tive que encontrar informação para completar a ficha fornecida pelo professor) reli-o logo a seguir (dessa vez sem "interrupções", por puro prazer)! Nunca antes tinha lido um livro que me convocasse tão diretamente à reflexão - essa foi talvez a maior novidade -, e apesar de talvez na altura não ter entendido a narrativa em todas as suas dimensões, no espaço de pouco tempo procurei ler todos os livros de Camus existentes na biblioteca lá de casa (os principais do autor). Durante anos, acrescente-se, considerei O Estrangeiro como um dos "livros da minha vida" (e talvez, porque me marcou muito nessa fase da vida, o possa considerar ainda, mesmo que já não encerre o mesmo valor que noutros tempos).
 
(Nestas notas (quase) para mim próprio tenho a tendência para fazer um pouco a arqueologia do meu percurso como leitor. Mas como não faze-lo, se considero que isto de ler não corresponde somente a uma soma de autores e livros, mas sobretudo a um caminho?)
 
O Exílio e o Reino é um livro que comprei há longo tempo (volume poeirento, levemente queimado pelo sol, esquecido num estante pouco visível de uma livraria), e li já depois de ter passado por A Peste e A Queda. Na altura agradou-me ler os seis contos que fazem parte deste volume e que evocam, de diferentes modos, a Argélia natal do autor. Lembro-me de ter apreciado razoavelmente o livro, em especial o conto "Jonas", que relata a história de um pintor que, conhecendo a consagração artística e social, de certa forma se perde da sua arte (que antes lhe nascia tão naturalmente) bem como da sua família, caindo na alienação.
Esta releitura confirmou, de certo modo, a minha primeira impressão destes contos: apesar de se notarem os traços da escrita (o modo simples, direto, sem grandes efeitos estilísticos, mas cuidada) e do campo de reflexões de Camus (o destaque dado ao problema da angústia existencial de cada individuo), estas narrativas não entusiasmam - falta-lhe, talvez, alguma intensidade. Destaco, ainda assim, "O Hóspede", estória que achei bem construída e muito bem fechada.

domingo, 13 de setembro de 2015

"Os Detetives Selvagens", de Roberto Bolaño

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Às vezes há livros destes: livros que nos surpreendem, entusiasmam, arrebatam.
Conheço Roberto Bolaño desde, pelo menos, a publicação em Portugal desse fenómeno chamado 2666, mas sem nunca lhe ter lido sequer uma página. Se é verdade que tencionava ler a mencionada (e volumosa) obra (sem prazo definido), quis o (feliz) acaso que uma amiga me emprestasse Os Detetives Selvagens. Não tendo partido logo para a sua leitura (tantos são os apelos, isto é, os livros que quero ler, que frequentemente não pego logo nos livros que me vão entrando, por uma ou outra via, em casa), percebi logo, pelo simples folhear, que esta leitura tinha qualquer coisa de promissor (essa coisa, sei-o agora, é a própria Literatura).
Sim, porque a Literatura será o principal personagem desta história (que é quase uma epopeia - perdoem-me os preciosistas o evidente exagero -, dada a dilação temporal e alcance narrativo da obra). É certo que a história se constrói em torno de dois personagens, os poetas real visceralistas Ulisses Lima e Arturo Belano; no entanto, abundam os poetas, os escritores, editores, jornalistas, artistas, com as suas particularidades, mistificações, angústias e frustrações. Abundantes são ainda as referências literárias, tanto a obras como autores - Quevedo, Stendhal, Leopardi, Baudelaire, Lautréamont, Kipling, Blok, Pound, Eliot, Pasternak, Maiakovski, Montale, Borges, Desnos, Cernuda, Queneau, Neruda, Pavese, Cortázar, Paz, Rulfo, Pasolini, García Márquez, Llosa, só para citar alguns -; é, portanto, um livro rico em referências culturais.
A estrutura do livro também me agradou bastante: se na primeira e terceira parte seguimos o relato diarístico de García Moreno, um jovem poeta que, após abandonar a universidade, se associa aos real visceralistas (grupo vanguardista e, de certo modo, revivalista mexicano que pretende revolucionar e renovar a poesia da América Latina, a segunda parte (e mais longa) é formada por um conjunto de depoimentos que nos permite acompanhar as vivências, as deambulações (um pouco por todo o mundo), os encontros e desencontros, as paixões e publicações de Lima e Belaño. Simultaneamente,  vão-se vislumbrando as sombras de Cesárea Tijanero, uma enigmática poetiza que, por aparentemente ter sido uma figura axial na vanguarda da década de vinte (apesar de apenas ter publicado um poema e ter sido responsável por uma revista), intriga os real visceralistas da década de setenta.
A escrita de Bolaño é bastante fluída, viva, inteligente, com alguns subtis toques de humor. Os tiques linguísticos dos vários depoentes, por exemplo, revelam, por sua vez, uma elasticidade expressiva que muito me agradou. Curiosamente, consigo identificar alguns pontos de contacto (apesar das óbvias diferenças) com a escrita de Enrique Vila-Matas, autor que muito aprecio - a presença do literário, os momentos de fusão do romanesco com o ensaístico, a profusão de referências (literárias, artísticas, filosóficas, etc.), o permanente convite à descoberta.
Em suma, este é o tipo de livros que abre portas, que entusiasma para outras leituras, para a descoberta, para o aprofundamento - pelo menos para este leitor. Para muito breve, conto ler novo livro de Bolaño (Estrela Distante), trazido da biblioteca local.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício", de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

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É-me impossível negar o interesse que tenho pelo tema da Inquisição. Nos últimos anos tenho lido uns quantos livros (Inquisição de Évora. Dos primórdios a 1668, de António Borges Coelho; A Inquisição de Coimbra no Século XVI. A instituição, os homens e a sociedade, de Elvira Mea; e A Inquisição, de Toby Green (*)) dedicados a tal instituição no âmbito nacional ou peninsular. Tenho consciência que este é um tema que, por ter um certo apelo comercial (gerado pela curiosidade de muitos) encerra uma certa perigosidade no que toca à sua abordagem (além de muita bibliografia bem fundamentada, séria, estruturada, existem também bastantes trabalhos - e romances menores - com as interpretações e perspetivas mais fantasiosas); há, como aliás em todas as áreas, que procurar ler bem - isto é, escolher bons livros (no caso da historiografia, livros rigorosos, fiáveis, assentes numa investigação honesta, mesmo que dirigida às massas).
O livro de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga pretende, como se assume na introdução, abordar alguns aspetos do quotidiano dos presos nas cadeias da Inquisição - evitando assim as problemáticas referentes à orgânica institucional, aos "crimes", à burocracia processual e às vítimas -, numa abordagem com similitudes à da micro-história. A autora parte de casos ilustrativos para tentar dar uma visão de conjunto, apesar de nem sempre ser fácil perceber a representatividade de certas situações relatadas.
Num primeiro momento, Isabel Drumond Braga esclarece o leitor, de forma sintética e bem estruturada, sobre a fundação e da evolução da Inquisição em Portugal; os objetivos para a sua instauração (perseguição às heresias protestantes, perseguição aos judeus e judaizantes, e outros delitos); e as características do processo inquisitorial (o seu caráter sigiloso, o desconhecimento por parte do réu dos seus acusadores, o fomento da denúncia, a utilização do medo e da tortura, as falsas acusações, as sentenças e os autos-de-fé). Encerrada esta contextualização, são abordados vários aspetos concernentes ao quotidiano: as instalações prisionais (suas condições físicas, sanitárias, etc.), os interrogatórios (os vários tipos de interrogatórios existentes - genealógico, doutrinário, judiciário, etc. -, as denúncias e o enumeração das inimizades, o uso do tormento), as refeições e a ocupação dos tempos livres (coser, fiar, rezar, caminhar pela cela, ler, excecionalmente ler e escrever), os nascimentos (o modo como eram tratadas as grávidas, o momento do parto), a doença e a morte (chamando-se a atenção para a existência de pessoal médico e destacando-se as situações de loucura real ou simulada), a procura de comunicação com o exterior (frequentemente com a colaboração de funcionários do próprio Santo Ofício, em troca de benesses materiais ou sexuais) e o regresso a casa (após a publicação da sentença - nos autos-de-fé - e do cumprimento das penas; neste regresso era exigido ao ex-cativo o segredo absoluto a tudo o que assistira e vivenciara no cárcere, sob pena de nova acusação). 
Para concluir, Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício é um livro cientificamente sólido e objetivo de divulgação histórica (o próprio tema do quotidiano é, de certa forma, uma dos mais apelativos para os leitores não académicos de história), que se lê muito bem (a escrita da autora é simples, direta, descritiva, com muitas citações documentais ilustrativas).
 
(*) Livro que muito apreciei, que considero uma bela síntese, mas que Isabel Drumond Braga não cita na sua bibliografia.