segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

"A Metamorfose", de Franz Kafka

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 «Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto». Assim começa A Metamorfose, uma das obras mais emblemáticas da literatura do século XX, que tive agora o prazer de reler. Franz Kafka foi um autor marcante no início do meu percurso como leitor; na altura, para quem vinha de leituras próprias da juventude, as suas obras constituíram uma revelação, talvez mesmo um abalo. A Metamorfose terá sido a primeira obra que li deste autor, ainda que, segundo me lembro, não tivesse demorado muito a avançar para outras: O Processo (que permanece o meu livro favorito do autor), O Castelo, América, e algumas histórias mais curtas.
Como se disse, Gregor dá por si numa situação insólita. Porém, absurdamente, a transformação em inseto parece não afetar gravemente o nosso protagonista (como seria expectável), que tenta adormecer de novo para esquecer a transmutação - ainda que as novas características do seu corpo (um carapaça rígida, múltiplas pernas dançando descoordenadas no ar, etc.) não lhe permitam uma posição confortável... «Isto de levantar cedo (...) estupidifica uma pessoa», pensa Gregor... e chega a ponderar se as alterações no seu corpo não refletirão o prenúncio de um resfriado!...
Um aspeto que sempre me intrigou/perturbou na biografia de Kafka (além da intenção, firmada em testamento, de destruição dos seus escritos) prende-se - ao que sei - com o facto de, ao ler os seus escritos aos amigos, predominar o riso! Os (absurdos e sem dúvida humorados) exemplos anteriormente referidos talvez expliquem um pouco as gargalhadas amigas, mas as obras de Kafka contêm elementos que, pelo contrário, podem suscitar sentimentos de desconforto, angústia, desespero... Os casos de injustiça, de decisões aparentemente arbitrárias e discricionárias, de impotência perante o pesado e impessoal aparelho burocrático, são algumas das situações que caracterizam a obra kafkiana - e que a tornam tão singular e inovadora (Kafka, sublinhe-se, é um dos nomes do "quarteto revolucionário" na prosa das primeiras décadas do século XX - na companhia de Musil, Joyce e Proust).
A Metamorfose, obra de caráter expressionista publicada em 1915, trata fundamentalmente - ainda que de uma forma fantástica ou alegórica - da condição humana. A situação ocorrida a Gregor não pretende ser realista, mas a sua irrealidade consegue falar de forma profunda das questões da autoconsciência (e da autoimagem) e do modo como os outros nos veem. Gregor, além da sua metamorfose física (ele ganha características assustadoras e repelentes para os que o rodeiam), sofre uma outra espécie de metamorfose: de elemento amado e útil da sua família (ele havia sido o sustento da mesma) passa a elemento inútil e a evitar (transforma-se, assim, num estranho, num fardo, num embaraço...). O destino daquela modesta família, como não podia deixar de ser, altera-se: os pais e a irmã de Gregor têm que arranjar empregos, despedir os serviçais, vender joias, aceitar hóspedes (e impertinências destes); à pobreza junta-se a infelicidade, à tolerância face a um Gregor-inseto segue-se o desespero...
Para finalizar, uma coisa que já não recordava (já há uns anos que não pegava em Kafka) e acho que acrescenta qualquer coisa ao todo: a simplicidade e limpeza da escrita. Nesta não há muito espaço para palavras supérfluas ou para grandes adornos, o que me parece condizer com a simplicidade da narrativa (porque esta é, retirando-lhe as interpretações e alegorias, uma história quase infantil). Julgo que a tradução que li (num volume que inclui também as narrativas mais curtas "O novo advogado" e "Um médico de aldeia"), bastante fluída, também ajuda ao efeito geral.

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