quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

"Os Últimos Dias da Humanidade", de Karl Kraus

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É verdade que entrei desconfiado nesta edição incompleta (de um modo geral, não gosto de ler obras truncadas - sinto invariavelmente um desconforto por não conhecer o valor daquilo que me furtam): afinal, neste caso incluem-se (ainda que integralmente) somente 115 das 209 cenas do texto dramático original (considerando aqui o texto de 1926, revisto e aumentado sucessivamente pelo autor) - ou seja, praticamente metade. É certo que se pode assumir que o tradutor selecionou criteriosamente o que havia de melhor na volumosa obra; mas como "selecionar" é sinónimo de "excluir", há sempre o risco de se perderem boas passagens em detrimento de outras menores, de acordo com o critério pessoalíssimo de cada leitor. Dito isto, e apesar dessa incompletude, cedo percebi estar perante uma obra de muito interesse: nada mais que um manifesto (indignado) contra a guerra, escrito durante aquele que se considerou ser a primeira de caráter mundial.
Os Últimos Dias da Humanidade é uma obra satírica que se centra sobretudo no modo como a Áustria, território natal de Kraus, viveu a guerra; daí que o autor utilize colagens da vox populi - e assim se entende a presença muito constante da linguagem coloquial, com várias tiques de oralidade (que, aliás, o tradutor , António Sousa Ribeiro, considera bastante difíceis de traduzir, pela especificidade dos dialetos alemães), da imprensa (sobretudo da que fazia apologia da guerra), bem como de alguma das figuras principais do seu tempo (políticos, militares, fazedores de opinião, etc. - personagens históricos que, através das notas de fim, é possível reconhecer). O texto é, desta forma, uma sucessão de vozes (farrapos de conversas, pregões de jornais, discursos, cartas, documentos oficiais, canções), quadro após quadro, com tudo o que isso implica de contrastes, contradições, incompreensões, deturpações, enfim, de ridículos. Kraus, efetivamente, utiliza o ridículo (ou talvez, melhor, o absurdo) como arma contra o belicismo triunfalista e as formas de nacionalismo primário (associado, quase sempre, ao ódio), expondo a mentira, a mesquinhez, a injustiça, a indiferença pela vida humana e o decadentismo em que mergulhou toda a sociedade austríaca.
Um dos alvos principais (a par dos dirigentes políticos e militares) da pena de Kraus é a imprensa: assim, vemos, por exemplo, os jornalistas a empolar o entusiasmo popular (ou mesmo a inventar notícias) com a entrada na guerra, apenas com o fito de vender jornais (Ato 1, Cena 1*); a deturpação da informação e a manipulação da opinião pública, denegrindo-se os inimigos e exaltando-se os sentimentos patrióticos (Ato 1, Cena 9); a produção de relatos do que se passa na frente de batalha escritos bem longe dela (Ato 1, Cena 13). Logo a seguir, o autor fulmina a cúpula das Forças Armadas: vemo-los indignados por lhes apontarem as elevadas perdas humanas - 70 mil, 100 mil  -, e a decidir ataques, levianamente, nos cafés da retaguarda (Ato 1, Cena 10); vemo-los também preocupados (e vaidosos) com a pose a assumir para a posteridade numa fotografia para os jornais (Ato 1, Cena 15); vemo-los, por fim, participar na última cena num banquete orgiástico, apesar da derrocada militar eminente (Ato 5, Cena 27; nesta cena, Kraus carrega no contraste entre o banquete galhofeiro e alcoolizado com descrições de crueldade, de civis fugindo, enfim, dos horrores da guerra).
Simultaneamente, em várias cenas somos confrontados com as vozes de cidadãos anónimos: que, apesar de acérrimos defensores da guerra, procuraram ficar livres do serviço militar (Ato 1, Cena 1); a censura aos inimigos por atos que as tropas austríacas  e alemãs também realizaram (Ato 2, Cena 12). Mas também escutamos os líderes espirituais: um defende que na guerra deixa se de aplicar o princípio cristão de amor ao próximo, e que matar o inimigo não só não é pecado, como é um serviço à pátria e a Deus (Ato 3, Cena 8); outro (um pároco) faz a apologia da violência e da matança (Ato 3, Cena 18). Nem a família imperial escapa: no Ato 3, Cena 13, por exemplo, satiriza com o efeito moralizador de uma visita aos soldados de um elemento da família real, ou com a honra que era morrer pela dinastia reinante.
Numa das últimas cenas, o autor coloca na fala de um dos seus personagens (O Eterno Descontente) um discurso frontalmente antiguerra, em acusa em especial os responsáveis pela guerra (que se sujeitaram ao belicismo alemão), os que ganharam com ela (os que fizeram lucro com a perda de vidas, portanto), os que a defenderam (nomeadamente a atitude impudica da imprensa ao aderir entusiasticamente ao belicismo).
Pelo que se expôs, e apesar do caráter parcial da seleção, é um texto que vale mesmo a pena ler, pelo que tem de eminentemente ético.

* A indicação das cenas segue a ordem dada na edição lida, não correspondendo à numeração do texto original.

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