quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"Pantagruel, Rei dos Dípsodos", de François Rabelais

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Porquê ler os clássicos? Existe um livro de Italo Calvino, que nunca tive a oportunidade de ler (mas que espero vir a ler a muito breve trecho), que, ao que julgo, procura responder a tal questão. Sendo os clássicos aqueles livros que nos chegam do passado (por vezes bem afastado) mas que ainda falam, ainda trazem saber, beleza, humanidade aos leitores do presente (ou melhor, dos sucessivos "presentes"), julgo que o livro que acabo de ler, Pantagruel, Rei dos Dípsodos, restituído à verdade com seus factos e proezas espantosos escritos pelo falecido mestre Alcofribas abstractor de quinta-essência, do quinhentista François Rabelais, se enquadra nessa categoria. É, pois, um livro bastante rico no que tem para transmitir.
Pantagruel foi publicado num período (1532) a muitos níveis excecional, pontuado pela redescoberta da cultura clássica e pelo humanismo renascentista, pelos descobrimentos marítimos e por significativas expansões do conhecimento, pelo rápido alargamento do impacto da imprensa e consequente da cultura escrita; simultaneamente, foi um período de cisões e perseguições religiosas, de debate sobre o papel das autoridades terrenas, e ao nível intelectual de repúdio de algumas das fórmulas dogmáticas vindas da Idade Média.
Rabelais foi, a vários títulos, um literato percussor: a sua escrita é humorística, carregada de ironia e sarcasmo, e critica alguns dos vícios do seu tempo - os abusos de poder e a corrupção dos arautos da moral, a ignorância assente na superstição ou nos velhos dogmas perpetuados e tidos (por exemplo nas universidades) por indiscutíveis, etc. A linguagem utilizada por Rabelais, nem sempre bem recebida ao longo da história (os seus livros foram por vezes apodados de obscenos, ao ponto de o próprio Rabelais os ter amenizado nas segundas edições), pode constituir ainda hoje uma lufada de ar fresco, pelo que contém de burlesco ou mesmo de sórdido; assim, o calão, as imagens escatológicas e sexuais andam a par de expressões mimetizadas da liturgia; o absurdo, também, não anda longe (exemplo disso são os capítulos em que a sapiência se confunde com uma pantomima sem sentido); por fim, predomina um tom coloquial (pouco habitual à época), com muitos traços de oralidade (o autor, por exemplo, dirige-se com alguma frequência ao leitor, procurando a sua simpatia ou simulada credulidade). Acima de tudo, a sua linguagem é humorística e sublinha uma imensa alegria de viver.
O presente livro, como aliás o que se lhe seguiu, Gargântua, narra uma história de cariz fantástico - a história de um gigante -, bem ao gosto popular (mesmo que, simultaneamente, rica em referências culturais, apenas ao alcance de uma minoria culta). O exagero e a lógica retorcida, claro está, são aspetos permanentes: ora se diz que Pantagruel encerrava toda uma civilização organizada (com cidades, etc.) no interior da boca, como este mesmo personagem miraculosamente consegue visitar o interior de uma biblioteca parisiense... Panurgo, amigo de Pantagruel, é um dos personagens com maior alcance cómico: entre o astucioso e o aldrabão, o ardiloso e o brejeiro, esta figura tem algumas tiradas simplesmente perfeitas.
Reler este clássico deu-me um imenso prazer. Senti-me, ao longo das páginas, convidado a aprofundar o meu conhecimento da obra deste autor.

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