quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

"Crónica do Rei Pasmado", de Gonzalo Torrente Ballester

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Reler esta Crónica do Rei Pasmado constitui sempre um imenso prazer. A escrita de Torrente Ballester é deliciosa, o seu humor subtil, inteligente e, julgo, suficientemente escorreita (mas longe, muito longe, de ser plana) para conseguir agradar a vários tipos de leitores (este será mesmo um dos livros mais lidos do autor, tendo sido um bestseller do seu tempo e sendo mesmo adaptado ao cinema por Imanol Uribe.
Tal como em Don Juan, o autor transporta o leitor para o "Siglo de Oro", época não só de fulgor artístico e cultural (pense-se nas obras de Cervantes, Quevedo, Lope de Veja, Calderón, no Lazarilho de Tormes, mas também em Velázquez, El Greco, etc.), como de rigorismo religioso (vivia-se, na Europa Católica, a Contrarreforma, que teve na Inquisição um dos seus mais visíveis instrumentos). Porém, Crónica do Rei Pasmado não será exatamente um romance histórico (assim, embora se baseie em D. Filipe IV de Espanha e no seu ministro Conde de Olivares, nunca estes são nomeados, tornando o livro mais livre e permitindo leituras menos presas ao passado - isto apesar de considerar que, de um modo geral, o autor ser historicamente rigoroso, mesmo quando visita o patético).
Torrente Ballester aproveita precisamente esse contexto para construir uma história mirabolante (com alguns toques de fantástico): o jovem monarca de Espanha, tendo frequentado a mais cara prostituta da cidade e ficando fascinado com a sua nudez, insiste em ver a rainha nua... Este seu desejo gerará uma reação exacerbada de certos setores do clero, que pretendem que o comportamento moral e sexual do rei está afeto aos destinos do reino. Nesta obra joga-se assim com a fronteira entre domínio público e domínio privado (o conceito de intimidade é bem mais recente do que se possa imaginar - tenha-se em conta, por exemplo, que durante a confissão o cristão poderia ser convocado a expor os detalhes da sua sexualidade; a este propósito, leia-se História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna).
Como já acima escrevi, gosto da escrita deste autor espanhol pela sua inteligência e pela homenagem que faz à literatura e ao humor picaresco. É, em suma, um livro que tenho facilidade em recomendar.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

(2015: balanço de um ano de leituras)

Dos livros que li no ano que está prestes a encerrar, há alguns que merecem um especial destaque. São eles:
No que se refere a releituras, não posso deixar de destacar Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares; e Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, de Robert Bréchon.
Se, em rigor, a homeriana Odisseia também se trata de uma releitura, o facto de ter lido esta obra numa nova e fabulosa tradução de Frederico Lourenço faz com a tome como uma nova leitura - e uma das mais empolgantes do ano. A par desta destaco, como facilmente se entende, a Ilíada, traduzida pelo mesmo tradutor.
No campo das descobertas de livros/autores, aponto dois: Dora Bruder, de Patrick Modiano, e Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño (este com a vantagem de me ter apresentado um autor bem ao meu gosto).
Fugindo ao romanesco, destaco três livros: Império. Como a Grã-Bretanha construiu o Mundo Moderno, de Niall Ferguson; Porquê Ler os Clássicos?, de Italo Calvino; e A História do Corpo Humano. Evolução, saúde e doença, de Daniel E. Lieberman.
Não posso, porém, deixar de assinalar que muito prazer me deram as obras de Elias Canetti, Vargas Llosa, Saul Bellow, Dostoievski, Baudelaire, Vila-Matas ou Knut Hamsun.

domingo, 27 de dezembro de 2015

"O Barril Mágico", de Bernard Malamud

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A leitura deste O Barril Mágico aconteceu casualmente, como muitas vezes acontece: foi-me recomendado e emprestado, com a promessa de, no caso de agradar, me ser facultado outro volume de contos do mesmo autor - e, em verdade vos digo, realmente agradou. Malamud era um autor que conhecia somente de nome, nunca me havendo cruzado com nenhuma das suas obras (salvo erro, até há poucos anos não abundavam traduções deste autor).
Nesta coletânea de contos, Malamud incide o seu olhar sobre o homem comum, de origens humildes,  não muito bem sucedido na vida e de origem judaica. O autor serve-se de motivos aparentemente modestos para construir uma história com características dramáticas (e, em alguns casos, algo patéticas): as pequenas ambições, as pequenas injustiças, as pequenas frustrações, as pequenas desgraças, o pequeno furto, a pequena dívida que se não salda, o pequeno prestígio na comunidade local, etc.
De certo modo, a (pequena) escala dos problemas subjacentes aos seus contos conferem à escrita de Malamud uma dimensão humanista: se é certo que cada drama relatado é, visto de fora, praticamente insignificante, à escala do indivíduo este pode tomar enormes proporções.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

"Mistérios", de Knut Hamsun


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(o último livro que me emprestaste, pai)

Nos últimos anos tem vindo a ser publicada a obra do norueguês - laureado com o Prémio Nobel da Literatura - Knut Hamsun. A crítica, de um modo geral, tem sido favoravelmente unânime na redescoberta de tal autor; a esse consenso, apesar de apenas ter agora entrado na obra deste autor, posso agora juntar a minha insignificante voz.
Mistérios, um livro bastante inquietante e desconcertante, centra-se na figura de Johan Nagel, cuja excentricidade é logo exposta pelo narrador na primeira página. Tendo desembarcado aparentemente sem nenhuma especial motivação numa pequena povoação, rapidamente a sua conduta será notada pela sociedade local. Em traços largos pode dizer-se que Nagel é um personagem estranho, ambíguo, eventualmente incoerente, ora sendo falso, ardiloso, dissimulado, cínico, ora tendo arrebatamentos da mais visceral - e talvez reprovável - honestidade (junto de Dagny expõe sem pudor a sua malícia e dissimulação, procurando intencionalmente choca-la com as suas mentiras e perfídias - sem, contudo, procurar justificar as suas ações).
A exploração do universo psicológico do protagonista é, a meu ver, um dos pontos fortes desta obra. O autor expõe de forma exímia as contradições, as angústias e os instintos mais sombrios do Homem, e simultaneamente debruça-se sobre os contornos da sociabilidade burguesa de finais do século XIX.
Futuramente procurarei ler Fome, considerada a obra maior de Hamsun.

domingo, 13 de dezembro de 2015

"A Genealogia da Moral", de Friedrich Nietzsche

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Não sendo eu um leitor muito frequente de filosofia, até por me sentir um tanto impreparado para certas leituras, senti-me desafiado a abordar A Genealogia da Moral, de Nietzsche, ao ler Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño.
Nietzsche é, para mim, um pensador algo sombrio por ser excessivamente alegórico (penso, por exemplo, na confusão que senti ao ler Assim falou Zaratustra nos finais da adolescência) e pouco ou nada sistematizador. Neste A Genealogia da Moral, em que o autor procura criticar as bases da moralidade cristã vigente no Ocidente (vista como uma moral de fracos, sinónimo de decrepitude, de covardia, de acomodação, de pouca elevação - e assim opressora dos fortes, dos nobres, por lhes embaraçar a livre expressão dos seus instintos, ainda que irracionais ou violentos), encontrei sobretudo uma retórica combativa (ou talvez até um pouco destrutiva), sustentada em convicções nem sempre muito bem fundamentadas (assume, por exemplo, certos conceitos como válidos sem os discutir).
Nessa sua crítica à moral de matriz cristã (moral dos humilhados e fracos), Nietzsche rejeita o altruísmo, a compaixão, a abnegação, o sentimentalismo, a mansidão, a sobrevalorização do "bem", o ditadura da má consciência (do medo do pecado, do remorso); a esta antepõe uma "moral aristocrática" (dos poderosos, dos senhores), que atua com valentia, superioridade e indiferença face aos mais pequenos, com a alegria da destruição, com o prazer da vitória, do domínio e da crueldade. A cultura é mesmo apontada como um retrocesso, na medida em que domestica o Homem, tornando-o manso e fazendo-o reprimir os seus instintos animais - daí, postula Nietzsche, deriva a debilidade ou crise do homem ultracivilizado ocidental. No terceiro ensaio desta obra acaba por defender - utilizando uma terminologia com ligações à biologia (fazendo lembrar o que mais tarde os nazis farão) - o "direito" dos fortes em se "defenderem" (sem compaixão ou sentimentos de culpa, uma vez que são eles o garante da perpetuação humana) dos fracos... Ao ler esta obra, como facilmente se compreende, dei por mim várias vezes a pensar que as palavras do autor facilmente se prestam a interpretações dúbias, inclusivamente as que instrumentalmente defenderam os apoiantes do nazismo.
Por escrúpulos intelectuais não farei mais apreciações sobre o que li - exporia certamente as fragilidades e a superficialidade das minhas interpretações. Mas sempre posso dizer que esta não foi uma leitura especialmente proveitosa ou agradável. O tom sobranceiro, violento, intenso de Nietzsche, associado a uma lógica nem sempre congruente, a juízos históricos apressados e a uma fundamentação em muitos momentos frágil, simplesmente não me agradaram.

sábado, 28 de novembro de 2015

"O Clube Dumas", de Arturo Pérez-Reverte

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Se há algo que, para mim, este livro mostra é que Arturo Pérez-Reverte é um exímio narrador: nele se constrói um enredo cativante - ainda que algo delirante - para o leitor comum (o autor inspira-se assumidamente na fluidez mas também na criação de suspense dos folhetins oitocentistas), mas simultaneamente rico em intertextualidades literárias (as referências literárias - desde logo Dumas, mas também Poe, Christie, Eça, entre vários outros - são constantes) que podem agradar a outro tipo de leitor. O Clube Dumas é uma espécie de policial bibliófilo fundido com a história de aventuras; julgo que não é abusivo dizer que o autor presta, em certa medida, homenagem a O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, para além do sempre omnipresente Os Três Mosqueteiros.
Posto isto, devo assumir que este livro ficou aquém do esperado. Não conhecendo a adaptação cinematográfica da autoria de Roman Polanski, li este livro com a bonomia praticamente isenta de ideias feitas de quem apenas leu um livro do autor - neste caso O Mestre de Esgrima. E, assim, se nos primeiros capítulos, o livro teve bastante encanto para este leitor (a pesquisa de Lucas Corso, um "mercenário da bibliofilia, um caçador de livros por conta alheia", relativa à autenticidade de um manuscrito de Dumas), gradualmente, à medida em que cresceu o peso da investigação em torno de uma obra de demonologia, comecei a recear que o autor caísse na tentação do sobrenatural (tão visível nesses bestsellers da moda, que misturam suspense e aventura com com as mais variadas confabulações esotéricas, conspirações de igrejas, etc.). Infelizmente, e especialmente depois de ler o décimo capítulo (com a entrada de um estranho personagem feminino), vi confirmado o meu receio - ainda que o autor deixe as coisas suficientemente vagas até praticamente ao fim. O livro não é verosímil, mas isso nem é importante - não é necessário ser-se em literatura; quando entrou em cena o domínio das ditas "ciências do oculto" tive esperança que Pérez-Reverte tivesse um posição de distanciamento irónico como Umberto Eco em O Pêndulo de Foucault (obra-prima em que se olha o mundo artificioso dos cultores acríticos do oculto, do misterioso, do esotérico, do místico).
Reconheço que este livro tem mais potencial - é mais complexo e inteligente - que O Mestre de Esgrima, anteriormente lido; no entanto, como pessoalmente não tenho interesse por esse tão comercial (mas perfeitamente banal e por vezes ridículo) universo que enche prateleiras nas livrarias sob a denominação de fantástico, não posso negar o meu desapontamento.

sábado, 21 de novembro de 2015

"Número Zero", de Umberto Eco

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Umberto Eco é uma personalidade que admiro - como medievalista, como pensador, como escritor. Por isso, é sempre com alguma curiosidade que recebo a notícia de uma nova publicação sua. Quando este Número Zero foi editado em Portugal, tomei nota para posterior leitura; eis que, em virtude de um empréstimo, pude finalmente lê-lo .
À partida posso dizer que genericamente me agradou, apesar de estar longe das suas obras melhores (e de maior fôlego e alcance intelectual). De certo modo, achei que Número Zero segue um pouco a obsessão de Eco pelo problema da verdade, das manipulações (seleções, omissões, interpretações pouco inocentes, etc.) da realidade, da criação de confabulações, teorias da conspiração, mitomanias. Considerando os livros que li e o que conheço da obra do autor, este romance tem muitos pontos de contacto com O Pêndulo de Foucault, obra que me fascinou imenso (e que, com Eco o notou, quase antecipou a moda desse subgénero do policial de inícios deste século - os códigos disto e daquilo, os manuscritos qualquer coisa, etc., ricos em misturar histrionicamente a confabulação com um frágil e deturpado conhecimento histórico para assim alcançar elevadas vendas). Tal como esse romance, Número Zero parece dizer-nos que por mais estulta que seja uma ideia ou toda uma teoria, há sempre quem estultamente (isto é, sem qualquer espirito crítico) se renda. O personagem Braggadocio talvez tenha sido vítima da sua teoria - nada nos garante, realmente, se assim aconteceu; mas, afinal, não o serão todos os crédulos?

domingo, 15 de novembro de 2015

"Chet Baker pensa na sua arte", de Enrique Vila-Matas

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Chet Baker pensa na sua arte não é exatamente um romance - e o fantástico (é mesmo isso que me vai fascinando na obra de Vila-Matas) é que tal não constitui desvantagem nenhuma. Se, por exemplo, o meu mui amado Bartleby & Companhia me encanta pela deambulação ensaística no mundo dos "escritores do não" (os autores de uma só obra,  por exemplo); se Doutor Pasavento (livro que, aliás, muito me agradaria poder reler) me fascinou pela comunicação quase filosófica com a obra de Robert Walser; se, mais recentemente, me senti convidado/desafiado a ler Ulisses, de James Joyce (de quem apenas lera Gente de Dublin), após o seu Dublinesca;  este Chet Baker pensa na sua arte (a aqui a referência ao trompetista americano é praticamente estética e quase acidental) agradou-me por questionar os cânones do romance (Enrique Vila-Matas pensa na sua arte?), mas também por me desafiar de novo a abordar certas obras e autores (é longa a lista: Gombrowicz, Gadda, Gaddis, por exemplo - engraçado: todos nome começados por "G").
Assumidamente intelectual, esta obra é, a meu ver, caracterizada pela desconstrução: o autor recorre em permanência à reflexão sobre a literatura (tradição/cânone versus rutura/experimentação);. Aparentemente para Vila-Matas escrever é uma forma de homenagem às Letras; por tal razão não me parece despicienda ou pedante a constante citação às suas referências culturais (onde se incluem os portugueses Pessoa, Lobo Antunes e Herberto Helder) - Joyce, autor do literariamente radical (e por isso mesmo possivelmente intraduzível) Finnegans Wake, é apontado como ícone do extremo arrojo (em contraste com os escritores mais preocupados com "contar uma boa história").
Vila-Matas tem, de facto, sido um autor valioso no meu percurso como leitor, especialmente por me incentivar à descoberta de outros escritores "cultos"; o seu "estilo" - a sua forma de escrever - meditativa e inteligente, que funde o romanesco com o ensaístico agrada-me bastante. Não tendo este Chet Baker pensa na sua arte sido dos melhores livros que li do autor, ainda assim achei-o extremamente estimulante, desafiante, mas também (de uma forma superior e subtil) divertido.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"A Família", de Mario Puzo

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Não tenho muito a dizer sobre este livro. Ou, posto de outra forma, não me agradou. Admito que A Família possa não fazer justiça à escrita de Mario Puzo - afinal, o autor não terminou esta obra, tendo a mesma sido completada pela sua companheira Carol Gino (sem que seja possível saber até onde vai a extensão da coautoria).
Em todo o caso, Puzo, consagrado autor de histórias de máfia, embrenhou-se na sensacionalista saga (palavra que o marketing editorial passou a usar - e abusar - nos últimos anos como se tal etiqueta fosse garante de alguma coisa que não fastfood literário - perdoem-me a violência deste comentário) dos Bórgia, família que marcou a vida da Itália renascentista. Ambição, poder, corrupção, ganância, violência, luxúria, incesto: eis os ingredientes (os ingredientes certos para a produção em série de bestsellers - ou, como o colocou Alexandre O'Neill numa das suas crónicas, de "bestas céleres") da história desta família, que segundo a informação do posfácio fascinavam Puzo. A linguagem simples (monotonamente simples), as tiradas "pedagógicas" (para o leitor pouco familiarizado com a cultura renascentista não se perder), a prevalência da ação e dos diálogos fazem com que A Família seja fácil de ler (qual série televisiva, procura-se sempre prender o leitor de um capítulo para o seguinte, ora com uma intriga, com uma suspeita, com uma pontinha de sangue) - fácil a um nível demasiado primário, receio bem. Literariamente, é um obra bastante pobre. 
(Um aparte curioso, como exemplo das imprecisões históricas que o livro também contém: dificilmente um personagem de finais do século XV, inícios de XVI poderia apreciar um "vinho do Porto" - é que tal produto de excelência só terá surgido um século mais tarde...).
Apesar desta leitura frustrada, conto no futuro dar uma oportunidade ao autor. Sabendo que este não é um livro terminado, apurado, polido pelo autor (e, simultaneamente, que teve mão alheia), é arriscado colocar um anátema sobre Mario Puzo. Este livro em concreto, no entanto, parece-me a evitar.

sábado, 31 de outubro de 2015

"Os Factos. Autobiografia de um romancista", de Philip Roth

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Mais do que interesse autobiográfico, para este Os Factos. Autobiografia de um romancista vale pelo seu interesse puramente literário, não exatamente por se tratar de um olhar sobre a "vida de um romancista" mas por, com elementos biográficos, refletir sobre as motivações da escrita (o modo como o autor escava, distorce e/ou recria com a imaginação memórias próprias, exagerando-as, complicando-as, tornando-as mais dramáticas e interessantes) e sobre a inevitável parcialidade de qualquer relato pretensamente autobiográfico.
Publicado em 1988 (e aparentemente escrito após um esgotamento), esta obra deambula por memórias pessoais de Roth: a sua infância durante os anos da Segunda Guerra Mundial numa família judaica de classe média; a procura de autonomia durante a sua juventude, a entrada na universidade e os seus primeiros projetos literários e sentimentais; o seu relacionamento com aquela que viria a ser a sua primeira mulher (dotada de uma personalidade amargurada, manipuladora ou até paranóica); a reação algo inflamada ao seu primeiro livro, Goodbye, Columbus, por parte da comunidade judaica; o contexto de criação de O Complexo de Portnoy, livro que lhe granjeou bastante sucesso.
O livro abre com uma "carta" de Roth ao seu personagem Nathan Zuckerman, na qual questiona se deve publicar tais memórias. Nas páginas finais, pode ler-se a resposta de Zuckerman, em que se critica o esforço de autobiografia de Roth («(...) eu não acredito em ti»), por ser seletivo e parcial (não se revelando as intencionalidades escondidas de tais seleções, por não serem claras as exclusões), por disfarçar e omitir (por pudor ou para não "magoar" os intervenientes), por falsificar e mitificar (consciente ou inconscientemente) - em suma, por ser um esforço ficcionado. «Com este livro ataste as mãos atrás das costas e tentaste escrevê-lo com os dedos dos pés.», acusa Zuckerman. Deste modo literariamente original, a meu ver, Roth faz mea culpa,  assumindo-se como um mau biografo de si mesmo (pela falta de distanciamento do objeto biografado) e assume que o seu campo é a ficção.
Felizmente para mim, ainda existe um bom número de livros do autor que ainda não li, tendo, por exemplo, reservado para o futuro O Teatro de Sabbath.

domingo, 18 de outubro de 2015

"A Casa Verde", de Mario Vargas Llosa

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Quando li História Secreta de um Romance (texto de caráter ensaístico que desvenda o que está por trás da construção de uma romance), apontei na minha listagem de leituras próximas este A Casa Verde, de Mario Vargas Llosa, livro que muitos colocam entre os mais carismáticos do autor.
Não será, eventualmente, dos seus livros mais fáceis, na medida em que Llosa entrecruza o percurso de vários personagens (Lituma, D. Anselmo, Fushía, etc.), vários locais (Piura, Santa Maria de Nieva, Amazónia) e vários tempos (dos anos vinte aos anos sessenta do século passado). Mas, apesar de poder ser um pouco mais complexo do que outras obras do mesmo autor, A Casa Verde não é propriamente um livro difícil. É, sobretudo, um livro muito bem escrito, com todo o humanismo que é característico do autor e com o extra de nos transportar em muitos momentos e de variadas maneiras para o mundo simultaneamente belo, perturbador, fascinante e misterioso da floresta Amazónia (também tratado, ainda que de um modo mais humorístico, em Pantaleão e as Visitadoras).
Pessoalmente, cada vez mais procuro livros que tenham literatura, e que não sejam mero passatempo fácil e ligeiro; a meu ver, Llosa consegue conjugar os dois aspetos de forma exemplar: por uma lado, não deixa de abordar temas populares, verdadeiramente universais, ou mesmo de entrar em exercícios de humor; mas, por outro lado, consegue ser original e muito consistente e inteligente no modo como narra ou monta os seus enredos. Feita esta declaração de intenções, findo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

"A Voz do Amor. 72 Haiku Cabalísticos / Love's Voice. 72 Kabbalistic Haiku", de Richard Zimler

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Julgo não ser muito comum um romancista lançar-se, quando a sua obra já conta com bastante títulos, na escrita e publicação poética (já o contrário não é tão me parece tão incomum). Foi, pois, com curiosidade que vi aparecer este livro bilingue de curtos poemas de Richard Zimler, autor de vários romances de cariz policial.
De acordo com as palavras introdutórias, Zimler apresenta estes 72 haiku (tantos como os nomes de Deus segundo a tradição cabalística) como um esforço de expressar o seu entendimento, resultante de alguns momentos de discernimento pessoal, sobre o significado da Cabala, não tendo qualquer pretensão de revelar uma sabedoria especial. Tal interesse pelo misticismo judeu, bem como pelo mundo sobrenatural, está, aliás, bem patente na sua obra romanesca. Assim, mais do que um livro de poesia, este curto volume será a exteriorização (honesta, sincera) de uma reflexão sobre - no fundo - o percurso interior, espiritual em busca de Deus (em certos momentos e passagens não consegui deixar de me lembrar de A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça - pesem embora as distância ao nível expressivo).
O leitor não judeu e não familiarizado com o ângulo de abordagem mas com alguma sensibilidade ainda assim encontrará - na minha opinião - alguns belos poemas, que conseguem conjugar a simplicidade com alguma (potencial) profundidade.

sábado, 10 de outubro de 2015

"D. Henrique", de Amélia Polónia

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Na sequência de Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício, de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, iniciei a leitura da biografia do Cardeal D. Henrique (figura de relevo na instauração da Inquisição em Portugal, recorde-se), da autoria historiadora Amélia Polónia (com quem, aliás, tive o gosto de contactar pessoalmente). Já havia lido, há algum tempo atrás, as biografias de D. Sebastião (de Maria Augusta Lima Cruz) e de D. Filipe I (de Fernando Bouza), pelo que faltava "preencher" uma lacuna.
Se é verdade que conhecia relativamente bem as linhas gerais do percurso henriquino (em especial os seus papéis como inquisidor geral, como fundador da Universidade de Évora, como regente na menoridade de D. Sebastião e, por fim, como rei), esta obra trouxe-me um conhecimento mais aprofundado do seu caráter mas também da sua atuação nos escassos dezassete meses (e num contexto especialmente complexo e conturbado - o período pós-Alcácer Quibir, de crise sucessória, de fragilidade geral do país) em que reinou. Oitavo  filho de D. Manuel e irmão de D. João III, D. Henrique nunca esteve destinado a reinar; a sua chegada ao trono foi, assim, tardia e resultou da falta de alternativa. A sua biografia está - como aliás se sublinha nas páginas iniciais - longe de se esgotar no curto período em que reinou.
Após uma sucinta mas sólida introdução em que se revisitam as imagens sobre o biografado ao longo do tempo (do relato enaltecedor à visão marcadamente negativa), autora optou por organizar a obra em quatro partes, cada uma delas divida em capítulos mais específicos. Na primeira parte, aborda-se o "homem", isto é, alguns traços do seu perfil físico e psicológico, as suas relações familiares (nas quais se inclui a sua ligação algo tensa com o sobrinho D. António, Prior do Crato), a sua casa e servidores, o seu quotidiano e a sua saúde (existe, note-se, um manancial de informação particularmente minucioso sobre o seu estado de saúde para o período em que reinou, proveniente em particular do correspondência diplomática castelhana). Na segunda, revisita-se a faceta cultural do Cardeal-rei (que gradualmente se foi alinhando com as linhas de força da Contra Reforma emanadas do Concílio Trento): a sua formação e os seus contactos com humanistas (como sejam André de Resende ou Damião de Góis; tal contacto não impediu que mais tarde estes fossem perseguidos pela Inquisição sob suspeita de heterodoxia e as suas obras censuradas e/ou proibidas); a prática de mecenato (apoiando vários estudantes, intelectuais e cientistas) e a promoção do ensino laico e eclesiástico (criando escolas e fundando a Universidade de Évora); e a escrita de obras de espiritualidade.
O percurso eclesiástico de D. Henrique é abordado na terceira parte. Destinado desde muito novo à vida religiosa, como acontecia com frequência com os filhos segundos da nobreza e da família real, D. Henrique ocupou vários cargos na cúpula da hierarquia da igreja nacional: arcebispo de Braga, Évora e Lisboa, abade de Alcobaça, cardeal, inquisidor geral, etc. Como prelado, revelou-se um zeloso reformador (moralizando a vida do clero, investindo na formação), um produtor de legislação e textos normativos e um empenhado implementador dos ditames de Trento. O seu papel na Inquisição foi, como já mencionou, bastante marcante: será ele a dar corpo à instituição, dotando-a de meios (edifícios próprios, pessoal, fontes de financiamento, etc.) e de um quadro de atuação (foi responsável pelo regimento do Santo Ofício); intolerante face à comunidade judaica e cristã-nova, foi contrário a todos e quaisquer perdões, isenções e autorizações de saída do reino; por outro lado, mostrou-se favorável ao caráter discricionário e ilimitado do poder inquisitorial (rejeita, por exemplo, que os acusados pudessem conhecer a identificação das testemunhas de acusação).
A última parte é dedicada ao percurso político-governativo de D. Henrique, dando-se destaque à regência do reino (durante a menoridade do seu sobrinho D. Sebastião e após o período de regência de D. Catarina - entre 1562 e 1568) e ao seu curto reinado (entre 1678-80). De um modo geral, a sua regência é pautada por uma gestão equilibrada do reino (guiada pela linhas definidas em cortes); ainda que tenha procurado influenciar (ou mesmo ter ascendência sobre) D. Sebastião durante a sua infância, não conseguiu evitar que este, chegado ao trono, o afastasse e seguisse o seu próprio caminho (D. Sebastião mostrou-se frequentemente pouco recetivo aos conselhos de gente mais experiente, e ficou mesmo desagradado com a oposição henriquina aos seus projetos militares). Com o desastre de Alcácer Quibir, no qual perece o jovem rei sem deixar descendência, D. Henrique sobe ao trono (foi o "rei possível") e assume um país em crise política, social e económica grave. Algumas questões marcam o seu reinado: a necessidade de resgatar os quase dez mil cativos no Norte de África (entre os quais muitos nobres das principais casas titulares), apesar dos cofres do reino estarem exauridos; o castigo dos responsáveis pelo projeto guerreiro de D. Sebastião; e a urgência em encontrar uma solução para o problema da sucessão (pense-se que o rei era clérigo e tinha 66 anos). Neste contexto, inicialmente D. Henrique procurou obter dispensa dos votos clericais para poder casar e procurar ter descendentes, mas face às pressões e obstáculos (resultantes de jogos diplomáticos contrários e da dilação papal), empenhou-se - mas sem sucesso, uma vez que morre sem ter declarado sucessor - em chegar a uma solução político-jurídica (considerando os vários candidatos existentes).
Pessoalmente, considero que a autora foi muito feliz (pela clareza e estruturação de argumentos) no modo como abordou os esforços henriquinos para resolver a questão dinástica. Apesar de conhecer razoavelmente este período, achei muito bem descrito o ambiente vivido (de trauma nacional, de histriónica procura de um desenlace para o imbróglio sucessório, de consciência do caráter provisório do reinado do biografado). Os jogos diplomático e de espionagem movidos por Filipe II - a afirmação inflexível do seu direito ao trono (e a manifesta prontidão para defender esse direito pelas armas, de necessário fosse), a compra de apoios entre nobreza e clero, as tentativas de influenciar e pressionar o rei português - são muito bem abordados nesta biografia, e concorrem para a profundidade explicativa no que respeita à atuação de D. Henrique.
Em suma, esta é uma obra problematizadora, que se esforça em ultrapassar certas ideias feitas sobre o cardeal D. Henrique (ideias essas que vinham sendo perpetuadas na historiografia - como a atribuição ao biografado da responsabilidade pela perda da independência para Castela ou como a sua pretensa ambição de poder). A crítica de fontes e a acuidade na ponderação sobre juízos históricos e interpretações várias são pontos a favor desta obra. Por fim, a linguagem é clara e objetiva, o que contribui para tornar este livro agradável de ler.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

"Estrela Distante", de Roberto Bolaño

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Na sequência de Os Detetives Selvagens - e da descoberta literária de Roberto Bolaño -, decidi ler Estrela Distante. Devo dizer que este livro me entusiasmou desde a primeira página: uma espécie de prólogo em que Bolaño remete para um livro seu anteriormente publicado (A Literatura Nazi nas Américas, obra que tenciono ler logo que me seja possível); refere um personagem de Os Detetives Selvagens (Arturo B.[elano], «(...) veterano das guerras floridas e suicida em África») como coadjuvante na escrita; e cita um dos personagens para mim mais marcantes das Ficções, de Jorge Luis Borges - Pierre Menard, o autor que queria recriar (mas sem copiar) o D. Quixote palavra por palavra, como se fosse um escritor seiscentista (!). Nesta primeira página vi eu, assim, um bom augúrio; de facto, não sai defraudado.
Tal como na obra anteriormente lida, Bolaño debruça-se sobre o mundo da Poesia, da criação literária, de jovens aspirantes a ícones das Letras, tendo como pano de fundo contexto latino-americano (nomeadamente o contexto político chileno da década de 1970). De novo, há neste livro um processo de busca, desta vez centrado no tenente Carlos Wieder (que o narrador conhecera, antes do golpe militar de Pinochet, como Alberto Ruiz-Tagle, poeta "autodidata" e frequentador de ateliês poéticos). Wieder revela-se um personagem sinistro, embora de contornos esquivos: afamado piloto de avião, escritor de enigmáticos versos no céu durante as suas exibições aéreas, assassino estudantes e jovens literatos, fotógrafo do horror, participante (através de pseudónimos vários) em obscuras revistas literárias.
Estrela Distante é um romance curto - lê-se em poucas horas -, muito bem escrito e com um enredo cativante. As referências literárias são abundantes (e estimulantes). A título de curiosidade, ilustrativa dos jogos literários de Bolanõ, refira-se que um dos personagens deste Estrela Distante pretendia fazer uma antologia da literatura nazi nas Américas; por sua vez, associa-se Carlos Wieder à conceção de "jogos de guerra", o que (julgo) remete de certa forma para o seu romance inacabado O Terceiro Reich (que ainda não li).
Bolaño é, pois, um autor que pretendo continuar a percorrer e que ouso abertamente recomendar.

sábado, 19 de setembro de 2015

"O Exílio e o Reino", de Albert Camus

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Albert Camus ocupa um lugar muito próprio no meu percurso como leitor. A minha primeira leitura de Camus - O Estrangeiro - aconteceu sem nada saber sobre o escritor e seu papel nas Letras europeias. Tinha então quinze anos e só li aquela obra por obrigação escolar: uma percentagem da avaliação da disciplina de Filosofia de 10º ano recaía na elaboração de uma ficha de leitura sobre uma das vinte ou trinta obras propostas pelo professor. A escolha de O Estrangeiro resultou de dois factos: existir na biblioteca paterna (como aliás outras das obras arroladas pelo professor) e não ser muito grande (não tendo na altura quaisquer hábitos regulares e estruturados de leitura, a dimensão do livro era fundamental). O meu pai, depois de me indicar quais os que possuía, recomendou-me o livro de Camus, como sendo uma obra interessante e acessível (tanto na linguagem simples, sem grandes enfeites, como, digamos, no seu conteúdo "filosófico").
Sem que nada o fizesse prever (ler por obrigação pode ser extremamente aborrecido), O Estrangeiro foi uma relevação para mim - entusiasmado, li-o num fôlego e (porque durante a leitura tive que encontrar informação para completar a ficha fornecida pelo professor) reli-o logo a seguir (dessa vez sem "interrupções", por puro prazer)! Nunca antes tinha lido um livro que me convocasse tão diretamente à reflexão - essa foi talvez a maior novidade -, e apesar de talvez na altura não ter entendido a narrativa em todas as suas dimensões, no espaço de pouco tempo procurei ler todos os livros de Camus existentes na biblioteca lá de casa (os principais do autor). Durante anos, acrescente-se, considerei O Estrangeiro como um dos "livros da minha vida" (e talvez, porque me marcou muito nessa fase da vida, o possa considerar ainda, mesmo que já não encerre o mesmo valor que noutros tempos).
 
(Nestas notas (quase) para mim próprio tenho a tendência para fazer um pouco a arqueologia do meu percurso como leitor. Mas como não faze-lo, se considero que isto de ler não corresponde somente a uma soma de autores e livros, mas sobretudo a um caminho?)
 
O Exílio e o Reino é um livro que comprei há longo tempo (volume poeirento, levemente queimado pelo sol, esquecido num estante pouco visível de uma livraria), e li já depois de ter passado por A Peste e A Queda. Na altura agradou-me ler os seis contos que fazem parte deste volume e que evocam, de diferentes modos, a Argélia natal do autor. Lembro-me de ter apreciado razoavelmente o livro, em especial o conto "Jonas", que relata a história de um pintor que, conhecendo a consagração artística e social, de certa forma se perde da sua arte (que antes lhe nascia tão naturalmente) bem como da sua família, caindo na alienação.
Esta releitura confirmou, de certo modo, a minha primeira impressão destes contos: apesar de se notarem os traços da escrita (o modo simples, direto, sem grandes efeitos estilísticos, mas cuidada) e do campo de reflexões de Camus (o destaque dado ao problema da angústia existencial de cada individuo), estas narrativas não entusiasmam - falta-lhe, talvez, alguma intensidade. Destaco, ainda assim, "O Hóspede", estória que achei bem construída e muito bem fechada.

domingo, 13 de setembro de 2015

"Os Detetives Selvagens", de Roberto Bolaño

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Às vezes há livros destes: livros que nos surpreendem, entusiasmam, arrebatam.
Conheço Roberto Bolaño desde, pelo menos, a publicação em Portugal desse fenómeno chamado 2666, mas sem nunca lhe ter lido sequer uma página. Se é verdade que tencionava ler a mencionada (e volumosa) obra (sem prazo definido), quis o (feliz) acaso que uma amiga me emprestasse Os Detetives Selvagens. Não tendo partido logo para a sua leitura (tantos são os apelos, isto é, os livros que quero ler, que frequentemente não pego logo nos livros que me vão entrando, por uma ou outra via, em casa), percebi logo, pelo simples folhear, que esta leitura tinha qualquer coisa de promissor (essa coisa, sei-o agora, é a própria Literatura).
Sim, porque a Literatura será o principal personagem desta história (que é quase uma epopeia - perdoem-me os preciosistas o evidente exagero -, dada a dilação temporal e alcance narrativo da obra). É certo que a história se constrói em torno de dois personagens, os poetas real visceralistas Ulisses Lima e Arturo Belano; no entanto, abundam os poetas, os escritores, editores, jornalistas, artistas, com as suas particularidades, mistificações, angústias e frustrações. Abundantes são ainda as referências literárias, tanto a obras como autores - Quevedo, Stendhal, Leopardi, Baudelaire, Lautréamont, Kipling, Blok, Pound, Eliot, Pasternak, Maiakovski, Montale, Borges, Desnos, Cernuda, Queneau, Neruda, Pavese, Cortázar, Paz, Rulfo, Pasolini, García Márquez, Llosa, só para citar alguns -; é, portanto, um livro rico em referências culturais.
A estrutura do livro também me agradou bastante: se na primeira e terceira parte seguimos o relato diarístico de García Moreno, um jovem poeta que, após abandonar a universidade, se associa aos real visceralistas (grupo vanguardista e, de certo modo, revivalista mexicano que pretende revolucionar e renovar a poesia da América Latina, a segunda parte (e mais longa) é formada por um conjunto de depoimentos que nos permite acompanhar as vivências, as deambulações (um pouco por todo o mundo), os encontros e desencontros, as paixões e publicações de Lima e Belaño. Simultaneamente,  vão-se vislumbrando as sombras de Cesárea Tijanero, uma enigmática poetiza que, por aparentemente ter sido uma figura axial na vanguarda da década de vinte (apesar de apenas ter publicado um poema e ter sido responsável por uma revista), intriga os real visceralistas da década de setenta.
A escrita de Bolaño é bastante fluída, viva, inteligente, com alguns subtis toques de humor. Os tiques linguísticos dos vários depoentes, por exemplo, revelam, por sua vez, uma elasticidade expressiva que muito me agradou. Curiosamente, consigo identificar alguns pontos de contacto (apesar das óbvias diferenças) com a escrita de Enrique Vila-Matas, autor que muito aprecio - a presença do literário, os momentos de fusão do romanesco com o ensaístico, a profusão de referências (literárias, artísticas, filosóficas, etc.), o permanente convite à descoberta.
Em suma, este é o tipo de livros que abre portas, que entusiasma para outras leituras, para a descoberta, para o aprofundamento - pelo menos para este leitor. Para muito breve, conto ler novo livro de Bolaño (Estrela Distante), trazido da biblioteca local.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício", de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

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É-me impossível negar o interesse que tenho pelo tema da Inquisição. Nos últimos anos tenho lido uns quantos livros (Inquisição de Évora. Dos primórdios a 1668, de António Borges Coelho; A Inquisição de Coimbra no Século XVI. A instituição, os homens e a sociedade, de Elvira Mea; e A Inquisição, de Toby Green (*)) dedicados a tal instituição no âmbito nacional ou peninsular. Tenho consciência que este é um tema que, por ter um certo apelo comercial (gerado pela curiosidade de muitos) encerra uma certa perigosidade no que toca à sua abordagem (além de muita bibliografia bem fundamentada, séria, estruturada, existem também bastantes trabalhos - e romances menores - com as interpretações e perspetivas mais fantasiosas); há, como aliás em todas as áreas, que procurar ler bem - isto é, escolher bons livros (no caso da historiografia, livros rigorosos, fiáveis, assentes numa investigação honesta, mesmo que dirigida às massas).
O livro de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga pretende, como se assume na introdução, abordar alguns aspetos do quotidiano dos presos nas cadeias da Inquisição - evitando assim as problemáticas referentes à orgânica institucional, aos "crimes", à burocracia processual e às vítimas -, numa abordagem com similitudes à da micro-história. A autora parte de casos ilustrativos para tentar dar uma visão de conjunto, apesar de nem sempre ser fácil perceber a representatividade de certas situações relatadas.
Num primeiro momento, Isabel Drumond Braga esclarece o leitor, de forma sintética e bem estruturada, sobre a fundação e da evolução da Inquisição em Portugal; os objetivos para a sua instauração (perseguição às heresias protestantes, perseguição aos judeus e judaizantes, e outros delitos); e as características do processo inquisitorial (o seu caráter sigiloso, o desconhecimento por parte do réu dos seus acusadores, o fomento da denúncia, a utilização do medo e da tortura, as falsas acusações, as sentenças e os autos-de-fé). Encerrada esta contextualização, são abordados vários aspetos concernentes ao quotidiano: as instalações prisionais (suas condições físicas, sanitárias, etc.), os interrogatórios (os vários tipos de interrogatórios existentes - genealógico, doutrinário, judiciário, etc. -, as denúncias e o enumeração das inimizades, o uso do tormento), as refeições e a ocupação dos tempos livres (coser, fiar, rezar, caminhar pela cela, ler, excecionalmente ler e escrever), os nascimentos (o modo como eram tratadas as grávidas, o momento do parto), a doença e a morte (chamando-se a atenção para a existência de pessoal médico e destacando-se as situações de loucura real ou simulada), a procura de comunicação com o exterior (frequentemente com a colaboração de funcionários do próprio Santo Ofício, em troca de benesses materiais ou sexuais) e o regresso a casa (após a publicação da sentença - nos autos-de-fé - e do cumprimento das penas; neste regresso era exigido ao ex-cativo o segredo absoluto a tudo o que assistira e vivenciara no cárcere, sob pena de nova acusação). 
Para concluir, Viver e Morrer nos Cárceres do Santo Ofício é um livro cientificamente sólido e objetivo de divulgação histórica (o próprio tema do quotidiano é, de certa forma, uma dos mais apelativos para os leitores não académicos de história), que se lê muito bem (a escrita da autora é simples, direta, descritiva, com muitas citações documentais ilustrativas).
 
(*) Livro que muito apreciei, que considero uma bela síntese, mas que Isabel Drumond Braga não cita na sua bibliografia.

domingo, 30 de agosto de 2015

"As Flores do Mal", de Charles Baudelaire

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Há já uns bons anos que queria ler est'As Flores do Mal, de Baudelaire, na tradução de Fernando Pinto do Amaral; mas, por uma situação ou outra, fugiu-me sempre. Cheguei a considerar ler outra tradução a que tive acesso, mas a verdade é que emperrei nas primeiras páginas. Pude agora, finalmente, ler As Flores do Mal na tradução pretendida.
E, de facto, pude confirmar os méritos desta obra e do seu autor (bem como do tradutor, que também assina uma belíssima introdução) - tão sobejamente conhecidas para quem se interessa por poesia, e que os tornam marcantes na história da literatura.
Fiquei encantado com a presença do sórdido ou mesmo do abjeto nos poemas baudelairianos - o "escarro", o "estupro", a "podridão", a "imundície", a "ignomínia", etc., são termos algo frequentes -, o que revela um olhar desencantado (realista?) sobre a realidade. Por outro lado, esta obra revela-nos o cosmopolitismo parisiense (visível, por exemplo mas não apenas, nos "Quadros Parisienses"), o relativismo moral e de certos valores (a beleza que esconde ou ignora a sua própria corrupção, ), os veículos de evasão da realidade (o álcool e o haxixe, mas também a sensualidade, o prazer), o Tédio (ou mal estar existencial ou spleen), o papel do poeta (desajustado, rejeitado, incompreendido), a degradação do mundo (no poema "Um cadáver", o poeta descreve um corpo em decomposição - pútrido, asqueroso, infecto - e constata que esse será o fim do corpo da amada).

sábado, 22 de agosto de 2015

"D. Afonso III", de Leontina Ventura

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Na sequência da leitura de D. Sancho II. Tragédia, de Hermenegildo Fernandes, urgia (pela modo como os percursos destes dois reis estão ligados) a leitura da biografia de (seu irmão) D. Afonso III, desta vez da autoria de Leontina Ventura (e co-autoria, um vez que é responsável por um capítulo de dimensão considerável, de António Resende de Oliveira) - obra, desde já o declaro, de leitura muito mais escorreita que a anterior, com uma linguagem mais arejada e uma estrutura francamente amigável.
O livro divide-se, assim, em quatro partes: na primeira, capítulo que considerei muito bem montado (por fazer justiça às várias sensibilidade e interpretações), a autora faz uma revisão às representações historiográficas do biografado ao longo dos séculos (desde a literatura senhorial até à historiografia contemporânea) - de restaurador (da paz e boa governança), D. Afonso III foi apodado de usurpador e ambicioso (por exemplo, com Alexandre Herculano), e, mais recentemente, como fundador do Estado Moderno (segundo José Mattoso). As segunda e terceira parte aparecem encadeadas e conjugam a sequência cronológica (a segunda parte é dedicada ao período anterior à chegada ao poder de Afonso, enquanto que a terceira se refere aos anos em que foi rei) com a abordagem temática (a centralização do poder, seus órgãos e modos de atuação; os conflitos com a Igreja; etc.).
Por contraste com o de D. Sancho II, o reinado de D. Sancho III caracteriza-se por uma avultada documentação proveniente da chancelaria régia, que a autora utiliza como via para nomeadamente aceder aos aspetos administrativos e legislativos. Se o período em que Afonso reinou é rico em informação (não apenas, claro está, emanada da sua própria chancelaria; e apesar da inexistência de quaisquer crónica coeva dedicada a esse monarca), o conhecimento relativo à sua infância e juventude é bastante lacunar (não estando Afonso destinado a reinar, terá saído cedo do reino, passado pela corte francesa, acabando por casar com Matilde de Boulogne e adquirir o título condal).
O conhecimento do seu percurso ganhar contornos mais nítidos a partir do momento em que, dado o clima de instabilidade vivido em Portugal, o Papa depõe Sancho II e exorta à obediência ao conde de Bolonha; ultrapassada a guerra civil, D. Sancho II é efetivamente deposto (acabando por sair do país e morrendo no exílio toledano em 1248) e D. Afonso ascende a rei (todo este tema, também tratado por Hermenegildo Fernandes, é, a meu ver, tratado de forma bem menos barroca por Leontina Ventura). Com o reinado do novo monarca, finda-se a conquista do Algarve (obrigando a, durante vinte anos, a gerir diplomaticamente a questão da soberania do território com o rei de Castela), e dá-se início à reorganização administrativa do reino (já toquei a questão da organização da chancelaria régia, mas posso acrescentar a preocupação com o povoamento, com a articulação económica do território, com o cadastro das propriedades e o levantamento de usurpações, com a cobrança dos réditos régios, com a prática da justiça, etc.).
Na última parte, exploram-se outros aspetos característicos do reinado de D. Afonso III: a constituição da sua corte (os cargos, principais figuras, etc.); a família régia (de novo se aborda a questão do abandono e repúdio de Matilde de Boulogne e a situação de bigamia - o rei acabaria por casar, "por razões de Estado", com D. Beatriz de Castela, de quem teve significativa descendência), os relacionamentos extraconjugais (e resultantes filhos bastardos) e laços de proximidade; e, por fim, o ambiente cultural e as distrações na corte afonsina (num capítulo de bastante interesse, António Resende de Oliveira faz uma revisão da produção literária cortesã e elabora pertinentes considerações históricas a partir, nomeadamente, do cancioneiro galaico-português).
Para encerrar a obra, a autora reproduz um fonte entretanto descoberta (aparentemente inédita): uma descrição coeva de Afonso III por um franciscano da corte castelhana.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

"Sem Coração", de Miguel Miranda

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Lido em dois dias, este Sem Coração, de Miguel Miranda, é, de certo modo, uma homenagem ao Porto disfarçada de romance policial. O roubo do coração de D. Pedro IV (que, como é sabido, repousa na Igreja da Lapa), e a ocorrência de duas enigmáticas mortes são pretexto para um investigação de Mário França, detetive que se considera o "melhor do mundo" (por oposição ao algo inepto inspetor Constantino Consciência).
Em primeiro plano, o leitor é confrontado com o Porto: o autor não apenas situa a ação do seu romance em vários locais paradigmáticos da cidade (além da já referida Igreja da Lapa, Miguel Miranda refere a zona da Ribeira e nomeadamente o icónico Muro dos Bacalhoeiros e a Praça do Cubo, a Ponte D. Luís, a Torre dos Clérigos, a Serra do Pilar, a Cadeia da Relação, a Livraria Lello, além de cafés, hotéis e outros lugares), como remete para a sua história (neste caso o Cerco do Porto de 1832-33 e a doação feita por D. Pedro IV do seu coração à cidade - história que inteligente e curiosamente o autor coloca na boca dos estudiosos da cidade, aqui transformados em personagens: Germano Silva, Hélder Pacheco e Joel Cleto). Em fundo, vão aparecendo algumas referências culturais muito diversificadas: Sherlock Holmes (um dos modelos, seguramente, de Mário França - pela promessa último personagem de grandes dotes de raciocinador... ainda que talvez não totalmente confirmados nesta história em particular), Lucky Luke, Dostoievski, Tolstoi, Jim Morrison, etc.
Mário França, como já acima se disse, revela uma elevada confiança nos seus dotes investigativos (roçando, para fins humorísticos, algum exagero), na sua capacidade de lidar (manipular, conduzir) os outros, nos seus dotes de sedutor irresistível com as mulheres... Talvez incongruente com o tamanho do seu ego é o facto de não ser propriamente muito bem sucedido (tendo, por exemplo, rendas em atraso). Nas suas investigações é auxiliados por uma trupe de aleijados e desajustados: um tasqueiro (Quim Comandos), um ourives (Dedos), um cauteleiro (Cotos), um pirata informático (Kit Cobras), um artista do Cirque do Soleil (Bilinho Muletas), um trolha (Tony, the Painter) e um contorcionista/carteirista (Elastic Man).
Pelos nomes dos "olhos e ouvidos" (isto é, dos elementos da equipa) de Mário França é possível ver uma das características que perpassa por todo o romance: o kitsch. Associado a esta tonalidade estética, como não podia deixar de ser, temos o humor: Miguel Miranda vai pautando a sua narrativa de vários elementos humorísticos, seja pelo exagero, pelo patético ou ridículo, etc. De um modo geral, julgo que Sem Coração é um livro divertido, ligeiro, sem grandes pretensões de estrita verosimilhança. A escrita de Miguel Miranda é escorreita e descontraída, ainda que talvez em certos pontos pudesse ser um pouco mais trabalhada - penso que há, em certas passagem (ao nível da escrita mas o mesmo se passa ao nível da história em si), qualquer coisa de apressado ou desleixado que não parece resultar da melhor forma (pelo menos para este leitor).
A narrativa policial é, de certo modo, de um tipo clássico - isto é, o investigador vai avançando no seu conhecimento do caso sem mostrar o seu jogo ao leitor; no fim, qual história de Poirot (podia dar outros exemplos), o detetive desvenda os mistérios perante uma plateia, apontando os culpados. A meu ver, o desfecho é um dos pontos mais frágeis do romance: a meu ver, não há verdadeiramente uma cadeia explicativa, nem grande complexidade (ainda que o autor jogue com as relações, cumplicidades e inimizades, dos vários personagens), mas antes um fecho simples e um pouco frouxo.
Mas longe de mim dizer que não me agradou ler este livro. A verdade é que, não sendo um livro fabuloso ou obrigatório, me propiciou umas horas agradáveis e descontraídas de leitura. Se o livro tem pontos menos conseguidos tanto a nível da escrita como a nível da história (que os tem, na minha modesta opinião), não fiquei completamente defraudado com Miguel Miranda. Em muitos pontos apreciei o seu humor (não somente os toques de kitsch, mas sobretudo o uso da ironia), os seus piscares de olho ao Porto, e alguns dos seus apartes de tipo aforístico.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

"Poesia Inglesa" (2 vols.), de Fernando Pessoa

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A leitura da poesia inglesa de Fernando Pessoa acaba por funcionar para mim como um regresso a este autor (ao fim de uma primeira imersão,  há cerca de dez anos, nas várias facetas da sua obra). Há, porém, uma grande limitação nesta minha abordagem: mais do que o inglês original (o meu domínio da língua não me permite, infelizmente, apreciar a escrita original - reputada, aliás, pelos estudiosos como algo complexa e caracterizada por um certo tom arcaizante), segui a tradução (que me pareceu francamente boa) de Luísa Freire, responsável pela edição e pelos textos que servem de posfácio aos dois volumes lidos.
É sabido que Pessoa passou parte da sua infância/juventude em Durban, na África do Sul, contactando profundamente com a cultura anglófona - o que justifica a sua ambição, num determinado momento, de ser reconhecido como um poeta de expressão inglesa. Uma das suas primeiras personalidades literárias pessoanas - ainda não exatamente de tipo heteronómico - de vulto (isto é, com uma obra mais ou menos ampla e congruente) foi Alexander Search: com esse nome, Pessoa assinou um conjunto significativo de poemas entre 1903 e 1910 (durante, portanto, a sua juventude). Após esta primeira fase poética (ainda algo imitativa e ingénua), Pessoa assina com o seu próprio nome (e chega mesmo a publicar) um corpus poético mais maduro e original (mais próximo, quer na expressão, quer nos temas, da sua poesia em português). Os volumes agora lidos apresentam a obra pessoana em inglês escrita desde 1910 ao fim da sua vida.
No primeiro volume da sua Poesia Inglesa é possível encontrar as obras que Pessoa publicou em vida, chegando a enviá-las a jornais ingleses (33 Sonnets, Epithalium, Antinous e Inscriptions), bem como The Mad Fiddler (ou O Rabequista Mágico, na tradução de Luísa Freire). Epithalium apresenta a curiosidade de ser um poema de caráter erótico, ou talvez mesmo - em algumas passagens - obsceno (na medida em que trata da perda de virgindade de uma noiva); em Antinous Pessoa trata o amor homossexual entre o imperador romano Adriano e Antínoo (tema desenvolvido de forma exemplar por Margarite Yourcenar na já clássica obra Memórias de Adriano); finalmente, The Mad Fiddler é uma coletânea de poemas de que Pessoa se orgulhava bastante (e, de facto, os mesmos estão ao nível de outros grandes poemas escritos na mesma altura, ou seja, na década de 1910's), e que pretendeu mesmo publicar em Inglaterra (ainda que não desenvolvendo grandes esforços para concretizar esse ensejo). No segundo volume, a responsável pela edição reuniu poemas avulsos, incluindo alguns inéditos.
Apesar de menos conhecida do grande público, e pese embora a eventual dificuldade de a apreciar na língua original, esta Poesia Inglesa de Pessoa tem muitos aspetos que justificam a leitura, complementando a visão que temos deste nosso autor.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

"Fernando Pessoa" (fotobiografia), de Richard Zenith

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A par de Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa, de Robert Bréchon, acabei de ler a fotobiografia da responsabilidade do estudioso pessoano Richard Zenith; de certo modo, estas leituras complementaram-se.
Se o número de retratos do Pessoa adulto é relativamente limitado (sendo estes frequentemente reproduzidos), já as fotografias do Pessoa criança e adolescente ou do adulto em contexto familiar são menos conhecidas. Também julgo de bastante interesse a reprodução dos seus escritos - sobretudo os manuscritos ou mistos (simultaneamente datilografados e manuscritos) -, que convidam o leitor ao esforço de decifração da sua letra (muitas vezes apressada - e que permite perceber as dificuldades dos editores pessoanos em fixarem de forma definitiva alguns dos seus escritos) e ao confronto com o processo pessoano de aperfeiçoamento (é frequente os seus escritos terem imensas emendas, variantes, cortes, interrogações, etc.).

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

"Contos de Amor, Loucura e Morte", de Horacio Quiroga

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Não sendo eu um fervoroso leitor de contos, também não tenho uma especial antipatia por estas histórias curtas quando cativantes. Desta feita, após ter bebido - não sei bem onde - algumas referências positivas a este autor uruguaio, Horario Quiroga, e influenciado pelo título desta coleta, decidi-me ler estes Contos de Amor, Loucura e Morte.
O que dizer sobre este livro? Antes de mais que vi confirmada a "prometida" boa escrita de Quiroga - trata-se de uma escrita ponderada mas elegante. Porém, no que me diz respeito, julgo que lhe falta alguma intensidade. Contos há que, pelo título, chegamos diretamente ao conteúdo; bem sei (e até defendo isso em muitas situações) que a forma - isto é, a escrita em si mesma - pode justificar a beleza de um texto, mas nestes contos (em que o amor, a doença, a morte andam, na verdade, sempre presentes) não consegui vislumbrar nada de especialmente fascinante. Não fiquei, assim, particularmente impressionado - como, por exemplo, aconteceu há uns meses com os contos de Giovanni Papini.
Destaco, ainda assim, alguns contos, que me agradaram mais que os restantes: "A galinha degolada", que combina a idiotia com um certo fatalismo; "O nosso primeiro cigarro", que tem o mérito de mostrar o caráter indomável e orgulhoso de um rapaz de oito anos; e "A meningite e a sua sombra", que me fez lembrar sobremaneira (ao ponto de sentir uma espécie de déjà vu, perdoem-me o estrangeirismo) o episódio dos sonos delirantes de Amália, em Senilidade, de Italo Svevo.

domingo, 9 de agosto de 2015

"Estranho Estrangeiro. Uma biografia de Fernando Pessoa", de Robert Bréchon

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Publicada em 1996, esta é a terceira biografia escrita sobre Fernando Pessoa - posterior às de João Gaspar Simões (1950) e de Ángel Crespo (1988), e anterior à de Richard Zenith (2009 - em rigor trata-se de uma fotobiografia, que me encontro igualmente a terminar) e à autointitulada "uma quase-autobiografia" (2012 - obra que, por um lado, foi muito aclamada, mas que, por outro, foi muitíssimo criticada pelo círculo de estudiosos pessoanos). O seu autor, tendo vivido em Portugal nos anos 1960's (desempenhou os cargos de conselheiro cultural da embaixada de França e de diretor do Instituto Francês), foi um interessado e empenhado divulgador da obra pessoana.
Estranho Estrangeiro é, de um modo geral, e pesem embora alguns erros menores (o que é fácil, dado o biografado ser esquivo em muitos domínios da sua existência) e limitações (algumas das quais minoradas pela investigação entretanto feita), uma biografia equilibrada e - mesmo que o seu autor, na advertência inicial, refira não ter pretensões de objetividade (fala mesmo em "opções tendenciosas") - relativamente objetiva. Se a admiração do biógrafo pelo biografado é patente, anda-se, de qualquer forma, longe da hagiologia (achei curioso o autor confessar a sua "devoção" a Pessoa, mesmo que, como estudioso, seja desconfiado relativamente aos devotos). O autor é, a meu ver, suficientemente ponderado (em especial em questões mais melindrosas - pense-se, por exemplo, no "problema" da sexualidade pessoana), evitando ser gratuita e precipitadamente categórico; julgo que, por outro lado, fundamenta relativamente bem as suas opiniões (nomeadamente quando deduz informação biográfica, ou aspetos do caráter do biografado, da sua obra - as suas angústias, receios, obsessões, contradições, etc.).
A estrutura do texto é, por sua vez, bastante amiga do leitor, uma vez que se reparte em 35 capítulos (contando com o prelúdio e o fecho) de uma dimensão simpática; estes seguem uma sequência cronológica que vai sendo intercalada com capítulos de teor mais temático-analítico.
Em conclusão, um livro que, embora tendo sido escrito há vinte anos (e a investigação ter avançado nesse período de tempo, havendo hoje um maior conhecimento da obra mas também da figura), continua bastante atual e julgo que faz justiça à grandeza de Fernando Pessoa. Para rematar, a leitura desta biografia chamou-me a atenção - num momento em que parto para a revisitação da obra pessoana - para Fausto, texto que conheço mal e que li há já bastantes anos numa edição muito parcelar.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

"Ilíada", de Homero

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Depois de reler a Odisseia, obra que está entre as que mais estimo, era forçoso descobrir a Ilíada, o relato da Guerra de Troia entre gregos (reunidos sobre o comando de Agamémnon) e troianos (entre os quais Páris, o jovem que raptara Helena, mulher de Menelau, violando a hospitalidade que lhe havia sido dada pelo marido daquela). Escuso-me a entrar em considerações sobre a historicidade deste confronto ou sobre a localização de Ílion (ou Troia), ou ainda sobre a autoria e a forma de composição (oral ou escrita) - aspetos que têm fascinado gerações de estudiosos. O prazer da leitura não exige entrar em tais dificuldades.
Como é evidente, parti para a obra com várias ideias feitas - sobre o enredo (os motivos da guerra, já acima tocados, ou o desfecho final), sobre os principais heróis, sobre a ambiência guerreira, etc.; a leitura, no entanto, conseguiu surpreender-me tremendamente. É que, tal como a Odisseia, este é um texto absolutamente fascinante (a Ilíada é uma daquelas obras completas, universais, absolutas), em muitos momentos belo (e julgo que é justo chamar a atenção para a excelente tradução em verso de Frederico Lourenço - que, aliás, também assina uma notável introdução, que consegue ser muito motivadora), e também fresco e inovador (a sua não linearidade feita de analepses - o passado vai sendo evocado para explicar o presente - e prolepses, por exemplo).
Na Ilíada há figuras absolutamente marcantes, heróis valentes que se batem para obter nome e glória mas também despojos. Atente-se aos heróis do lado grego: desde logo temos Aquiles, o herói que inicialmente se zanga com o chefe da expedição (por se considerar desconsiderado) e até ao canto XIX (dos 24 existente) renuncia ao combate (só retoma o combate para vingar, com uma fúria sanguinária, a morte do seu amado companheiro Pátroclo); depois, os irmãos Agamémnon e Menelau (este último marido da raptada Helena); também figuram os valorosos dois Ajax (os Ajantes), o ardiloso Ulisses e - talvez um dos meu prediletos - Diomedes, de tal forma destemido que chega a enfrentar um deus! Do lado troiano destaca-se Heitor (herói admirável, ainda que muito do seu arrojo resulte de ajuda divina) e, ainda que com menos proeminência, Eneias; Páris, quando aparece, é retratado como um ser frívolo e não exatamente valente... Participantes na ação narrada são, por fim, os vários deuses (uns favoráveis aos gregos, outros aos troianos), que chegam a intervir diretamente nos combates - afastando armas (e assim a morte), incutindo coragem, iludindo e defraudando, etc.
Ao longo deste épico relato, as descrições bélicas são bastante vívidas e emocionantes, mas também bastante violentas. Eis dois ou três exemplos retirados (sem grande esforço de seleção) do vigésimo canto: «(...) e todo o crânio se partiu em dois» (v. 386); «(...) penetrou a ponta [da lança] e estilhaçou o osso. Os miolos por dentro / ficaram todos borrifados» (vv. 399-400); «(...) e ao tombar segurava os intestinos nas mãos» (v. 418). Cabeças decepadas, corpos desmembrados, escalpes arrancados, olhos que saltam para fora das órbitas, sangue e ossos partidos vão-se sucedendo nas cenas de luta; de acordo com o que nos informa Frederico Lourenço na sua introdução à obra, morrem ou são feridos apenas cerca de 230 personagens liderantes - mas ficam subentendidas as mortes (muito mais numerosas) de anónimos soldados. Memoráveis são também alguns momentos de intensa emotividade e humanidade, tais como a despedida de Heitor da sua esposa e filho - que, quando o herói o tenta abraçar, se assusta com o seu aspeto agressivamente bélico; a dor (e furiosa vontade de vingança) de Aquiles pela morte de Pátroclo; ou, no final do relato, da desumanidade de Aquiles (no modo como profana o cadáver de Heitor).
Desconhecido para mim era o facto de a narrativa desta obra não se fechar totalmente: a Ilíada termina com a morte de Heitor, as cerimónias fúnebres a Pátroclo e a restituição do cadáver do herói troiano a seu pai. A guerra não se encerra: depois do período de trégua prometido por Aquiles a Príamo, para que este possa proceder às últimas homenagens a Heitor, adivinha-se o continuar da guerra, num momento em que os troianos estão confinados ao interior das muralhas, privados dos seus principais e mais fortes guerreiros, Sabemos também que Aquiles morrerá (fora-lhe augurada a celebridade mas também a morte), e que a cidade será tomada (através de uma artimanha montada por Ulisses - o famoso "cavalo de Troia" - relatada na Odisseia).
Ainda que considere a Odisseia uma obra mais apelativa (talvez por ser mais diversificada na ação), não posso negar o igual valor e interesse da Ilíada. São duas obras fundamentais da cultura.