Depois de reler a
Odisseia, obra que está entre as que mais estimo, era forçoso descobrir a
Ilíada, o relato da Guerra de Troia entre gregos (reunidos sobre o comando de Agamémnon) e troianos (entre os quais Páris, o jovem que raptara Helena, mulher de Menelau, violando a hospitalidade que lhe havia sido dada pelo marido daquela). Escuso-me a entrar em considerações sobre a historicidade deste confronto ou sobre a localização de Ílion (ou Troia), ou ainda sobre a autoria e a forma de composição (oral ou escrita) - aspetos que têm fascinado gerações de estudiosos. O prazer da leitura não exige entrar em tais dificuldades.
Como é evidente, parti para a obra com várias ideias feitas - sobre o enredo (os motivos da guerra, já acima tocados, ou o desfecho final), sobre os principais heróis, sobre a ambiência guerreira, etc.; a leitura, no entanto, conseguiu surpreender-me tremendamente. É que, tal como a Odisseia, este é um texto absolutamente fascinante (a Ilíada é uma daquelas obras completas, universais, absolutas), em muitos momentos belo (e julgo que é justo chamar a atenção para a excelente tradução em verso de Frederico Lourenço - que, aliás, também assina uma notável introdução, que consegue ser muito motivadora), e também fresco e inovador (a sua não linearidade feita de analepses - o passado vai sendo evocado para explicar o presente - e prolepses, por exemplo).
Na Ilíada há figuras absolutamente marcantes, heróis valentes que se batem para obter nome e glória mas também despojos. Atente-se aos heróis do lado grego: desde logo temos Aquiles, o herói que inicialmente se zanga com o chefe da expedição (por se considerar desconsiderado) e até ao canto XIX (dos 24 existente) renuncia ao combate (só retoma o combate para vingar, com uma fúria sanguinária, a morte do seu amado companheiro Pátroclo); depois, os irmãos Agamémnon e Menelau (este último marido da raptada Helena); também figuram os valorosos dois Ajax (os Ajantes), o ardiloso Ulisses e - talvez um dos meu prediletos - Diomedes, de tal forma destemido que chega a enfrentar um deus! Do lado troiano destaca-se Heitor (herói admirável, ainda que muito do seu arrojo resulte de ajuda divina) e, ainda que com menos proeminência, Eneias; Páris, quando aparece, é retratado como um ser frívolo e não exatamente valente... Participantes na ação narrada são, por fim, os vários deuses (uns favoráveis aos gregos, outros aos troianos), que chegam a intervir diretamente nos combates - afastando armas (e assim a morte), incutindo coragem, iludindo e defraudando, etc.
Ao longo deste épico relato, as descrições bélicas são bastante vívidas e emocionantes, mas também bastante violentas. Eis dois ou três exemplos retirados (sem grande esforço de seleção) do vigésimo canto: «(...) e todo o crânio se partiu em dois» (v. 386); «(...) penetrou a ponta [da lança] e estilhaçou o osso. Os miolos por dentro / ficaram todos borrifados» (vv. 399-400); «(...) e ao tombar segurava os intestinos nas mãos» (v. 418). Cabeças decepadas, corpos desmembrados, escalpes arrancados, olhos que saltam para fora das órbitas, sangue e ossos partidos vão-se sucedendo nas cenas de luta; de acordo com o que nos informa Frederico Lourenço na sua introdução à obra, morrem ou são feridos apenas cerca de 230 personagens liderantes - mas ficam subentendidas as mortes (muito mais numerosas) de anónimos soldados. Memoráveis são também alguns momentos de intensa emotividade e humanidade, tais como a despedida de Heitor da sua esposa e filho - que, quando o herói o tenta abraçar, se assusta com o seu aspeto agressivamente bélico; a dor (e furiosa vontade de vingança) de Aquiles pela morte de Pátroclo; ou, no final do relato, da desumanidade de Aquiles (no modo como profana o cadáver de Heitor).
Desconhecido para mim era o facto de a narrativa desta obra não se fechar totalmente: a Ilíada termina com a morte de Heitor, as cerimónias fúnebres a Pátroclo e a restituição do cadáver do herói troiano a seu pai. A guerra não se encerra: depois do período de trégua prometido por Aquiles a Príamo, para que este possa proceder às últimas homenagens a Heitor, adivinha-se o continuar da guerra, num momento em que os troianos estão confinados ao interior das muralhas, privados dos seus principais e mais fortes guerreiros, Sabemos também que Aquiles morrerá (fora-lhe augurada a celebridade mas também a morte), e que a cidade será tomada (através de uma artimanha montada por Ulisses - o famoso "cavalo de Troia" - relatada na Odisseia).
Ainda que considere a Odisseia uma obra mais apelativa (talvez por ser mais diversificada na ação), não posso negar o igual valor e interesse da Ilíada. São duas obras fundamentais da cultura.