terça-feira, 27 de dezembro de 2016

"Viagens na Minha Terra", de Almeida Garrett

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Há mais de vinte anos li e estudei esta emblemática obra da literatura nacional nos bancos da escola. Se gostei? Não posso dizer que me desagradou, uma vez que, ao contrário de vários colegas de estudo, não optei por atalhar caminho e ler uns (na altura) muito populares livrinhos de síntese amarelos e pretos; Interessou-me o suficiente para ler na íntegra, não me limitando aos trechos abordados nas aulas; mas gostar-gostar... bem, na verdade não me recordo. Seguro é que, até há pouco tempo (mais concretamente até à releitura de Frei Luís de Sousa), não senti vontade de regressar a tal obra.
Eis-me agora, finalmente, de regresso a este clássico. E, em boa hora o faço: a minha cultura literária, entretanto, é um pouco mais profunda, o que, julgo, me permite desfrutar um pouco mais profundamente de algumas das faces desta obra. Desde logo, o piscar de olhos a Tristram Shandy (diretamente citado - e nomeadamente a sua página preta), obra-prima que pude conhecer este ano (e que me remete igualmente para o meu querido Brás Cubas); encontro pontos em comum não exatamente no tipo de humor (desestabilizador, provocador em Sterne), mas no tom por vezes digressivo de Garrett (com os seus apartes, comentários dirigidos ao leitor, etc. - muito mais moderados no autor português, é certo). A referência inicial às Viagens em Volta do Meu Quarto, de Xavier de Maistre, vai ao encontro de um interesse meu: eis uma obra que tenho assinalada e que pretendo, se me for possível, ler.
Tendo o autor decidido fazer uma viagem até Santarém, entretém-se a descrever com bastante graça e interesse esse seu empreendimento. Às portas do seu destino entra-se na história de Joaninha e de Carlos - e aqui há algo que se altera na obra, que passa a seguir esta novelinha ("simples e singela", nas palavras do autor, ao que este leitor acrescentaria "bacoca"). Uma historinha da carochinha, num contexto interessante mas não inteiramente aproveitado (as guerras liberais), em que não falta a avozinha coitadinha, os rouxinóis que velam o sono de Joaninha, os atos de renúncia por amor, etc., etc., etc. (perdoem-me os eventuais leitores deste texto, mas não consegui evitar chegar ao terceiro etecetera). Literariamente, não posso dizer que me encanta a novela, nem o esforço literário de, recorrendo a metáforas e adjetivos, enriquecer o drama umbilicalmente piegas...
Consigo, assim, encontrar dois tons na escrita de Garrett: um mais aristocrático, requintado, culto, fresco com uma certa ironia (a citação em grego para, como se declara, mostrar erudição) e até mesmo uma capacidade de autocrítica, nos capítulos dedicados à viagem mas também às suas reflexões; outro mais popular, limitado e diretamente romântico nos capítulos novelescos (um estilo, devo dizer, que me parece bem mais redondo, ou mesmo mais vulgar, visível, por exemplo, no abuso de alguns lugares-comuns do Romantismo).
Em suma, pesem embora os pontos que me agradaram menos, Viagens na Minha Terra é inegavelmente uma obra curiosa no panorama nacional.

(2016: balanço de um ano de leituras)

À partida, o presente ano afigurava-se mais complicado relativamente ao tempo disponível para ler: era quase certo que o volume de leituras seria menor. Assim, de facto, aconteceu, sem que, no entanto, se fizessem piores leituras.Optei por ler alguns livros mais "leves" (e curtos) - dentro do policial, do suspense, da espionagem -, mas não deixei de ler o que bem me apeteceu.
Dito isto, fazendo o destaque do melhor que li, começo referir as releituras mais estimulantes: Morte em Veneza, de Thomas Mann, Clepsidra, de Camilo Pessanha e Billy Budd, de Herman Melville. Neste conjuntinho vão, de certo maneira, três pérolas da literatura.
Ao nível das grandes descobertas, há dois livros: A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, e Moby Dick, de Herman Melville. Sendo dois livros muito diferentes, fiquei com vontade de voltar a eles - por motivos também eles muito diferentes - mal os terminei. O primeiro é um livro marcante pelo que tem de dadaísmo, de nonsense, de pós-modernidade; o segundo pela excelência da escrita, pelas múltiplas referências culturais.
Também gostei bastante de ler A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Herzog, de Saul Bellow e O Ruído do Tempo, de Julian Barnes (que acabei por reler cerca de um mês após a primeira leitura).
Fora do romanesco, refiro dois livros: KL - A História dos Campos de Concentração Nazis, de Nikolaus Wachsmann, uma obra historiográfica absolutamente notável sobre um dos temas a que recorrentemente regresso; e O Valor da Arte, de José Carlos Pereira, pequeno ensaio que aborda de forma inteligente, culta, sofisticada uma questão que, enquanto interessado por arte contemporânea, me intriga.

sábado, 10 de dezembro de 2016

"Terra de Neve", de Yasunari Kawabata

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Julgava já ter lido alguma coisa de Kawabata, talvez mesmo este livro. Porém, depois de percorridas as primeiras páginas, conclui que afinal nunca lera Terra de Neve; e, após consultar os meus registos, constatei com surpresa que nunca lera nada do autor japonês.
Ainda assim, estranhamente, tinha uma ideia sobre algumas características da sua escrita (terei retido algumas palavras lidas ou as observações sugestivas de algum leitor conhecido?): delicadeza e subtileza; a leitura confirmou estas duas características (que me remeteram, de certa forma, para os haikus), e acrescentou outra: limpidez. Os contornos deste Terra de Neve, que se desenrola em torno da relação entre dois personagens (o urbano Shimamura, de visita ao norte, e a Komako, uma vulnerável gueixa), são algo vaporosos, o que, neste caso, é uma característica muito positiva. Este é, pois, um livro absolutamente recomendável, muito belo, humano.

domingo, 4 de dezembro de 2016

"O espião que saiu do frio", de John Le Carré

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Ultimamente tenho feito leituras mais ligeiras, em certa medida ditadas pela menor disponibilidade de tempo para ler; assim, tenho visitado mais frequentemente policiais ou similares (Simenon, Montalbán ou Greene).
Desta vez lancei-me na leitura de um "clássico" dos livros de espionagem: O espião que saiu do frio, de John Le Carré. Não sendo um leitor assíduo deste tipo de literatura, posso dizer que fiquei bem impressionado com esta obra. A história, que se desenrola em torno de Thomas Leamas, um agente secreto britânico, desenrola-se em plena Guerra Fria, no contexto da Alemanha dividida. Carré aborda as dinâmicas inerentes aos serviços espionagem e contraespionagem das potências oponentes, bem como as estratégias de infiltração, contrainformação e instrumentalização dos agentes.
Senti-me convidado a retornar a este autor.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

"O Terceiro Homem / O Ídolo Caído", de Graham Greene

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Antes deste O Terceiro Homem, nunca lera nada de Graham Greene. Era um daqueles muitos autores que conhecia genericamente (como autor de policiais e livros de espionagem, nomeadamente O Cônsul Honorário ou O Americano Tranquilo).
Não posso dizer que tenha ficado totalmente rendido à sua escrita com esta primeira leitura: achei o enredo de tons policiais de O Terceiro Homem um pouco simples demais; ainda assim, é inegável que se lê bem e com agrado, tendo alguns aspetos que prenderam o meu interesse: desde logo, o facto de se passar numa Viena arruinada pela 2ª Guerra Mundial (e ocupada pelas quatro potências vencedoras); depois por alguns aspetos do caráter do personagem principal, Rollo Martins, escritor de histórias ligeiras sobre o faroeste (sob o pseudónimo Buck Dexter) e pouco conhecedor da literatura mais "séria" (como Graham Greene nos faz ver numa humorística descrição de um encontro literário para o qual, passando por ser outro autor foi arrastado)...
Chegado a Viena para visitar o seu amigo Harry Lane, Rollo cedo descobre que aquele morrera atropelado em estranhas circunstâncias (tratar-se-ia de um assassinato?); instigado pelas suspeitas da polícia, segundo as quais Harry estaria envolvido em atividades ilícitas e nocivas para a saúde pública, Rollo lança-se numa investigação pessoal para perceber o que realmente se havia passado.
Não sei se conheço a versão cinematográfica de Orson Welles, mas fiquei curioso por descobrir/redescobrir (?) o filme; tendo em conta o realizador, é possível que o enredo ganhe alguma intensidade.
A segunda história do volume lido, O Ídolo Caído, centra-se na figura de um miúdo de sete anos, Philippe, quem durante as férias dos pais, fica em casa com o mordomo e sua mulher, acabando por se enredar involuntariamente nas confusões dos adultos. Trata-se de uma história curta mas bastante curiosa.

domingo, 27 de novembro de 2016

"O Banquete", de Platão

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Ler Platão é um prazer antigo. Neste caso, como noutros em que me lanço em obras de filosofia, um prazer exclusivamente literário. É desnecessário divagar sobre o papel de Platão (e do seu mestre Sócrates) na história do pensamento ocidental, ou sequer mencionar as ideias chave da sua filosofia; sublinho somente o interesse da sua obra em termos literários, aspeto que me convoca a revisitá-la.
O Banquete (também conhecido por Simpósio) trata do amor: Agatão, havendo a sua tragédia conhecido o sucesso no dia anterior, convidara várias personagens para um banquete; mas, prescindindo dos excessos da bebida, os presentes acordam despender aquele momento a discutir a temática do amor. Assim, discursam, além do anfitrião, Fedro (faz elogio a Eros), Pausânias (toca o tema do amor por rapazes, da cedência a amante honrado), o médico Erixímano (perspetiva o amor físico e a saúde do corpo), Aristófanes (aborda a homossexualidade), e Sócrates (conduz o colóquio para o amor pela Ideias, pela Beleza - este seria o amor mais elevado). O banquete termina com a entrada de Alcibíades, bêbado, que faz o elogio de Sócrates: entre outros aspetos, confessa a sua paixão pelo filósofo (que resistiu aos seus avanços sexuais) e elogia a sua valentia em combate.
Para o conhecimento de Sócrates, os diálogos de Platão funcionam, de certo modo, como a sua alegoria da caverna (os homens, agrilhoados, tinham apenas um conhecimento imperfeito das Ideias através das suas sombras projetadas numa parede): apenas temos uma sombra do Sócrates histórico, que não nos legou qualquer escrito, mas é uma sombra bastante valiosa. O Sócrates platónico é bastante carismático, não apenas pelo seu poder persuasivo, mas também por alguns tiques de carácter; neste diálogo acho extremamente curioso o facto de, mal chegado a casa de Agatão, Sócrates ter ficado uns momentos sozinho no vestíbulo a refletir...
O livro tem ainda, a meu ver, outro encanto - aliás, bastante óbvio: a presença de vários elementos culturais da Grécia antiga (como a presença de serviçais escravos e de músicos no banquete, a prática de libações e de hinos aos deuses, etc.), inclusivamente de caráter mitológico-literário (cita-se o amor de Aquiles por Pátroclo, e a sua vingança irada contra Heitor, e o amor despojado de Alceste, que recentemente foi tratado por Gonçalo M. Tavares).

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

"Billy Budd", de Herman Melville

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Melville é uma personalidade literária me fascina. Dele apenas tive a oportunidade de ler três livros: a sua obra maior, Moby Dick, e duas novelas: Bartleby, o Escrivão e este Billy Budd, que agora reli. Acredito que são três obras-primas da Literatura.
O que posso escrever sobre estar obra? Mais do que sintetizar a narrativa, aliás bem simples, reiterar a minha admiração. A maldade, a mesquinhez, a inveja são as linhas de força desta história algo trágica, que reflete sobre a moral e a justiça: um episódio perfeitamente inocente e trivial despoleta a maldade de um dos personagens, que se abate sobre o confiado, alegre e ingénuo Billy Budd.
Essencialmente, para mim a beleza do livro está na escrita - elegante, culta, sem frivolidades. As personagens são bem modeladas e caracterizadas; o discurso do comandante do navio, no conselho de guerra, é absolutamente fabuloso.
Seguramente um livro a que retornarei mais vezes.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

"Um dia na vida de Ivan Denisovich", de Alexandre Soljenitsin

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Instigado pela leitura de O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, decidi trazer este pequeno livro para casa. Publicado originalmente em 1962, numa altura de desestalinização na União Soviética de KrushchevUm dia na vida de Ivan Denisovich é um livro-chave na história da literatura soviética, por constituir uma denúncia ao sistema concentracionário estalinista; autorizado diretamente pela cúpula do poder, este livro mostrou uma realidade anteriormente escondida, abafada pelo poder, que Soljenitsin vivenciou.
O título acaba por sintetizar o enredo: esta obra de Soljenitsin (a primeira que li do autor, aliás) aborda a questão da sobrevivência individual durante um dia num campo de trabalho, ambiente propositadamente opressivo e duro (marcado pela precariedade alimentar, pelas temperaturas negativas, pelos trabalhos pesados, pela rigidez regimental e disciplinar), em que a vida humana tinha pouco valor: «Ninguém se importaria que um zek [prisioneiro] morresse enregelado. Mas... se ele se evadisse?»
Pela proximidade das leituras, acabei por encontrar pontos em comum com o livro de Barnes: se o Shostakovich ficcional (e presumivelmente o real) lia discursos escritos pelo poder em seu nome (que iam contra as suas convições), na obra de Soljenitsin o personagem central, Ivan Denisivich, esteva preso por assinar uma confissão forjada - assumiu estar a fazer espionagem para os nazis, quando na verdade se evadira de um campo nazi... Era isso ou ser morto.
Literariamente não achei esta esta obra particularmente cativante; o enredo, contudo, é motivo bastante para o ler. Senti-me, assim, convidado a conhecer outras obras do autor, nomeadamente Arquipélago Gulag (dentro da mesma temática) e O Pavilhão dos Cancerosos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

"Maigret & O Cão Amarelo", de Georges Simenon

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Quarto livro lido da série Maigret. tal como o anteriormente lido (Maigret & A Noite da Encruzilhada), este Maigret & O Cão Amarelo agradou-me bastante. A pouco a pouco, o comissário vai ganhando contornos carismáticos na minha imaginação.
O estilo deste O Cão Amarelo é semelhante aos livros de Simenon já percorridos: escrita direta, parágrafos curtos, muitos diálogos, predomínio da ação. Em suma, uma centena de páginas que se lê rápida e prazerosamente.
Após a tentativa de assassinato a um negociante de vinhos, o comissário dirige-se à pequena povoação de Concarneau. Para exaspero do maire local, vários acontecimentos trágicos vão suceder-se, estando sempre nas proximidades um desconhecido cão amarelo, e o medo instala-se entre a população. Entretanto, Maigret instala-se e, mais do que investigar, observa calma e curiosamente, começando pelo grupo de amigos que se reúne no café do Hotel de l'Amiral - o jornalista Servières, o médico Michoux e o dissoluto Le Pommeret. Desta vez, Simenon fecha a história de um modo que me fez lembrar os Poirot ou os Perry Mason: os personagens são reunidos e o culpado é exposto perante todos.
Termino com uma curiosidade: estando a ler os Maigret por ordem cronológica (a publicação original do presente livro remonta a 1931), é normal encontrar indícios do passado, aspetos perfeitamente datados - desta vez, encontrei o termo (para mim desconhecido) "belinógrafo"; após uma curta pesquisa, fiquei a saber tratar-se de uma tecnologia inventada pelo engenheiro francês Edouard Belin (1876-1963) que servia para transmitir à distância desenhos ou fotografias (uma espécie, portanto, de antepassado do fax).

domingo, 13 de novembro de 2016

"A cabeça perdida de Damasceno Monteiro", de Antonio Tabucchi

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Porque regressei a este livro, que recordava não ser um dos mais interessantes do autor? Em boa verdade, porque o vejo todos os dias, lado a lado com outros volumes de bolso. Tabucchi tem uns quantos livros interessantes: ainda que os tenha lido há longo tempo, e apenas uma única vez, guardo boa impressão de Noturno Indiano ou Afirma Pereira; além disso, e graças à adaptação cinematográfica de Alain Tanner, trago comigo a vontade de um dia ler o seu Requiem).
Não sei se se poderá chamar a este A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro um romance policial, até porque não seguimos uma investigação policial ou detetivesca, mas somente jornalística. A história constrói-se em torno de Firmino, um jornalista de um pasquim sensacionalista (especializado em crimes de sangue, escândalos, etc., sobretudo dirigido para as massas e, consequentemente, para o que vende), enviado ao Porto para aprofundar a historia de Damasceno Monteiro, cujo cadáver havia sido encontrado sem cabeça num baldio. A investigação, há que dizê-lo, não é propriamente empolgante; Firmino vai conduzido a sua investigação através dos dados que lhe vão chegando de várias fontes, e alimentando o seu jornal com notícias ricas em juízos de valor e ideias feitas, bem ao gosto do público-alvo.
Se o personagem principal, Firmino, não é propriamente fascinante (ainda que seja curiosa a sua ambivalência intelectual: apesar de estar a empreender um estudo académico sobre o romance neorrealista português nos anos 50, assume a ficção científica como o seu género literário favorito), o advogado "Lóton" é um pouco mais cativante. De raízes aristocráticas, este advogado é literariamente culto (citando vários autores) e revela interesses muito peculiares; além disso, debruça-se especialmente sobre os casos dos mais desprotegidos e desfavorecidos na sociedade.
Seguramente que este não é um livro essencial, inclusivamente dentro do conjunto da obra do seu autor; ainda assim, é agradável de ler, bem escrito e com algum humor.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

"Off-side", de Gonzalo Torrente Ballester

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Já mais de uma vez tive a oportunidade de afirmar nestes meus textos que aprecio bastante este autor; é sempre com prazer que regresso à sua escrita. Mas se os três livros anteriormente aqui referenciados (D. JuanO Romance de Pepe Ansúrez e Crónica do Rei Pasmado) haviam sido objeto de releitura, este Off-side foi lido pela primeira vez. Andava há anos para o trazer de uma biblioteca familiar, mas foram-se sempre impondo outras leituras - o que não é necessariamente mau, porque, afinal, é positivo quando ainda me "sobram" alguns livros não lidos de um autor que me agrada, e que podem, de um momento para o outro, constituir descobertas e prazeres futuros.
Pois este Off-side, não sendo uma das obras mais interessantes que li do autor, é um belíssimo livro, conjugando um enredo construído de muitas linhas cruzadas (muitos personagens de vários estratos sociais que se interligam) com um certo olhar crítico à sociedade madrilena de meados do século vinte. Nele se cruzam falsários talentosos, prostitutas letradas, revolucionários acossados, escritores arruinados, intelectuais independentes e até um diretor bancário caprichoso de fama como literato da Academia (ainda que tenha um negro a escrever-lhe as obras) e de prestígio como embaixador...

sábado, 5 de novembro de 2016

"Clepsidra", de Camilo Pessanha

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Mais um regresso. Desta vez, parti à redescoberta da poesia de Camilo Pessanha, que tanto me impressionara na juventude. Reencontrei aquela linguagem vaga, difusa, alusiva mas que simultaneamente (e surpreendentemente) consegue ser precisa; linguagem ritmicamente impressiva, manifestamente musical, frequentemente intensa.
A releitura confirmou - ou mesmo suplantou - as impressões dos meus vinte anos: a obra de Pessanha é, de facto, tremendamente original e do mais interessante dentro do universo da poesia portuguesa da primeira metade do século vinte (século, aliás, tão rico em belíssimos poetas).

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

"Tatuagem", de Manuel Vázquez Montalbán

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Apostado em ler, entre outras leituras, uns policiais, e estando a seguir o trilho de Simenon e Montalbán, eis que chegou a vez deste Tatuagem.
Desta vez, Pepe Carvalho, investigador privado insólito, é contratado para descobrir a identidade de um cadáver que dá à costa com a enigmática tatuagem "Nasci para revolucionar o inferno", personagem que rapidamente é associado a atividades ilícitas e a redes que operam na Holanda. Alguns personagens repetem-se de outros livros recentemente lidos: Charo, a prostituta-amante de Pepe, ou Teresa Marsé (de Os Pássaros de Banguecoque), na sua primeira aparição.
A escrita de Montalbán é fundamentalmente direta, mas pontuada por um humor muito próprio, que mistura ironia com uma certa rudeza («Contemplou com palermice de turista o palácio do Tribunal Internacional. Um animal de grandes intestinos cagava sobre a relva que precedia a a porta gradeada.»). Aliás, essa rudeza liga com com a personalidade do detetive, um dos atrativos - a meu ver - dos policiais de Montalbán.
Pepe Carvalho conjuga, pois, um passado algo nubloso (enquanto agente da CIA), uma adivinhada cultura literária (ainda que vá eliminando os volumes da sua biblioteca), um apurado gosto pelo bom comer e beber (mais uma vez, repetem-se os episódios em que se fazem apreciações gastronómicas, em que se descrevem minuciosamente os pratos apreciados em restaurantes ou até em que se avançam receitas), uma certa brutalidade no agir e no pensar. Carvalho não é, assim, muito dado a meditações filosóficas (a existirem, estas aparecem associadas à comida: «A inevitável filosofia da sobremesa ofuscava a mente de Carvalho.»); prefere viver num certo primitivismo intelectual, talvez renegando o que já fora («Repugnava-lhe qualquer tempo perdido na análise do mundo em que vivia, e já há muito decidira estar de passagem entre a infância e a velhice de um destino pessoal e intransmissível, de um vida que, mais ou menos, melhor ou pior, ninguém viveria por ele. Os outros que fossem levar no cu. Limitara a sua capacidade de emoção abstrata à que lhe pudesse transmitir a paisagem. As suas restantes emoções eram-lhe proporcionadas pela pele.»).

domingo, 16 de outubro de 2016

"O Ruído do Tempo", de Julian Barnes

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Julian Barnes é autor de O Papagaio de Flaubert, livro que muito prazer me deu descobrir, e que é um dos meus primeiros contactos com aquele tipo de literatura que, sem timidez, se funde com o ensaio. Esse é, para mim, um livro brilhante (brilha na minha "mitobibliografia"), que me marcou imenso, que reli umas quantas vezes (e conto outras tantas reler) para reencontrar (e de facto reencontrei sempre) o imenso prazer de o estar relendo. Acontece, porém, que já não leio um livro de Julian Barnes há uns tempos; e mais: o bom conceito que tenho do autor, assenta - com o livro agora lido - em apenas três livros (o que é manifestamente pouco e só me incentiva a procurar descobrir os que ainda não pude ler).
O Ruído do Tempo, o último livro do autor, despertou, desde que tomei conhecimento da sua existência, a minha curiosidade. Li umas quantas palavras convidativas na imprensa e na Internet (mas que podem tais palavras significar, quando quase sempre estão presas à mera promoção?), folheei o volume numa livraria e, depois da boa impressão com que fiquei, decidi-me finalmente a lê-lo. O tema do livro ajudou bastante: Barnes dedica este livro a Dmitri Shostakovich (ou Chostakovich), compositor russo que está ligado ao meu percurso como apreciador de música.
Evidentemente que, ao entrar na biografia de um autor que procurou ser omisso ou esquivo nos seus pensamentos (e daí haver tanta celeuma em torno deles; discute-se, por exemplo, a questão do seu - sincero?, coagido? - alinhamento com o regime), Barnes opta por "uma certa" interpretação (nem de outro modo poderia ser); porém, o que encontrei nesta obra coincide, grosso modo, com o que conheço do percurso de compositor russo - o que, evidentemente, me fez gostar ainda mais dela.
«Só sabia que este era o pior tempo de todos.» Desta forma abre Barnes os três capítulos que compõem O Ruído do Tempo. O livro parte do modo como a sua ópera "Lady Macbeth de Mtsensk" pôs, em virtude de um artigo arrasador no Pravda denominado "Chinfrim em vez de música" (possivelmente saído do punho de Estaline), a carreira e a vida de Shostakovich em risco - passou de compositor amado e reputado a inimigo do povo. A segunda parte retrata a ida (a mando de Estaline, que lhe telefonou pessoalmente) do compositor aos Estados Unidos da América, em 1949, em representação da URSS num congresso em prol da paz; aí, de forma humilhante, teve que ler um discurso preparado pelo Poder e condenar publicamente a música de Stravinski, compositor que muito admirava, como "formalista" (o pior vício que a arte podia revelar na União Soviética estalinista). Por fim, a última parte mostra-nos um Shostakovich, já no período de Krushchev, humilhado com a sua coagida adesão ao partido. De um modo geral, Barnes subscreve - a meu ver de uma forma muito plausível - a tese que defende que as "conivências" de Shostakovich com o Poder foram uma mera questão de sobrevivência, em especialmente nos tempos de "canibalismo" homicida de Estaline. O medo foi permanente na vida do compositor, contribuindo assim para o tom tenso, ansioso da sua música.
Os episódios revisitados pelo escritor inglês são relativamente conhecidos por todos os que amam a obra do compositor russo; porém, é na maneira de os contar que reside o brilho (talvez este passe a brilhar igualmente na minha "mitobibliografia") de O Ruído do Tempo. A escrita de Barnes é belíssima, a opção pela sucessão de "fragmentos" dá graça ao enredo.
Fecho dizendo que, mal acabei o livro, fiquei com vontade de o reler a breve trecho - talvez ainda este ano, quem sabe.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

"Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai", de Gonçalo M. Tavares

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Consigo reconhecer neste Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai as características que me fazem apreciar a escrita e o universo imaginário de Gonçalo M. Tavares, e que acabam por rebater a impressão menos positiva do livro lido há uns meses (Os Velhos Também Querem Viver).
A história desenvolve-se em torno de dois personagens: Hanna, uma menina com trissomia 21 que diz andar à procura do pai, e Marcus, um indivíduo que, embora andando em fuga (do seu passado?), encontra uma espécie de rumo na busca de Hanna. Na sua dupla demanda (busca/fuga), estas duas figuras cruzam-se com um conjunto de seres caricatos, cada um com um modo particular (igualmente insólito) de ver a vida e o mundo: um revolucionário que cola cartazes em ruas secundárias, um antiquário que, seguindo uma tradição familiar, se dedica a escrever números pares, ou um artista de arte microscópica.
Se li este livro com bastante agrado, achei o desfecho pouco satisfatório do romance - como se o mesmo concluísse à falta de conclusão, apagando-se no vazio. Poder-se-á legitimamente defender que mais nada haveria a contar, que mais nada se podia fazer daqueles dois personagens; porém, considerando o modo como o autor fechou os romances de "O Reino", acredito que este Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai, mesmo sem trazer respostas, poderia ter sido fechado de um modo menos inócuo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

"O Tambor de Lata", de Günter Grass

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Quando se parte para uma obra com expectativas, correm-se riscos, sendo a desilusão (já nem refiro a sensação de perda de tempo) o mais significativo. Ao partir para este O Tambor de Lata, do "nobelitado" Günter Grass, não pensei estar a fazer uma jogada arriscada; afinal, além de um certo estatuto subjacente ao prestigiado (mas nem assim tão linear) prémio literário, já havia recolhido alguns ecos positivos acerca das suas obras mais importantes. Até ao momento, apenas lera um curto ensaio intitulado Escrever depois de Auschwitz, que, de resto, achei bastante inócuo - mas sempre parti do pressuposto (continuo a partir, apesar de tudo) que tal texto não fazia justiça à escrita do autor.
O Tambor de Lata, publicado em 1959, é considerado um romance importante no âmbito da literatura alemã contemporânea, e isto, ao que parece, deve-se em grande parte ao facto de o autor ter (muito timidamente, a meu ver) tocado no tema do nazismo e da guerra. O narrador e protagonista, Oskar Matzerath, internado num asilo de alienados, revisita a sua história familiar e pessoal (e, por arrasto a da cidade de Danzig e a do povo alemão), desde finais do século XIX a meados do século XX. No centro do seu percurso há alguns aspetos que se assumem como centrais: o seu nanismo, o seu (conexo) comportamento infantilizado e a omnipresença dos tambores de lata ao longo da sua vida (presença essa de, segundo o narrador, tons quase metafísicos, pois Oskar pretende reconstituir o passado com a ajuda do tambor). De permeio há ainda a sua capacidade de partir vidros com a voz e a sua ambígua responsabilidade no fim de vários dos seus entes queridos. No fundo - muito no fundo -, é possível antever alguns aspetos da Alemanha dos anos 30 (os comícios nazis, o enquadramento da juventude, o destino trágico dos judeus).
A escrita de Grass, através do relato acriançado e/ou algo louco de Oskas, intenta ser irónica (ou mesmo cínica) e cómica. Porém, pessoalmente, não consegui simpatizar com o humor de Grass (acontece-me o mesmo, de certa forma, com o humor do português José Saramago). Ao longo do livro fiquei com a sensação de que o autor apontava para o "patético" (o "patético", isto é, a busca do caricato, do sensacional, do inaudito, pode ser literariamente brilhante - basta pensar em Gogol); porém, entendo que o autor alemão chegou apenas ao "pateta". Para mim, as mil e uma peripécias vividas pelo protagonista são mais "engraçadinhas" do que propriamente engraçadas. Outro aspeto que não me encantou (embora este aspeto em sim mesmo não seja um defeito) é a linearidade cronológica do enredo: certo, trata-se do relato de uma vida - mas a mera sucessão de episódios, sem qualquer profundidade subjacente, acabaram por matar-me o interesse.
Terminei as quase setecentas páginas do livro, mas tenho que confessar que penei um pouco nas últimas duzentas. Comecei gradualmente a desconfiar que a pobreza (filosófica, se quisermos) do livro iria estender-se até à última página; suspeitei que o autor não iria entrar, após quinhentas páginas de episódios mais ou menos rasteirinhos, em grandes elucubrações. E isso veio a confirmar-se, infelizmente. Talvez a culpa esteja neste leitor, mas a cinquenta páginas do fim, após um ou dois dias a ganhar coragem para retomar a leitura, só pensava no que ler a seguir.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

"Maigret & A Noite da Encruzilhada", de Georges Simenon

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Após a leitura deste A Noite da Encruzilhada, dou-me feliz pela persistência: achei este livro um pouco mais cativante que os anteriormente lidos (Pietr, o Letão e O Enforcado da Igreja).
Desta feita, o comissário Maigret vê-se confrontado com um caso estranho em que ninguém é aquilo que aparenta. Depois de um longo interrogatório, Carl Andersen, um aristocrata dinamarquês, continua impassivelmente a reclamar a sua inocência: o automóvel de um vizinho aparecera na sua garagem com um morto, que trabalhava em diamantes. Maigret rapidamente segue para a Encruzilhada das Três Viúvas, onde, além de Carl Andersen, existem a casa de um agente de seguros e uma garagem; ao longo da sua investigação no local, o comissário começa a perceber que, no comportamento dos vários intervenientes, há qualquer coisa de farsa.
Na contracapa do livro faz-se referência a um filme de Jean Renoir inspirado neste livro - fiquei um pouco tentado a procurar vê-lo no futuro.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

"Morte em Veneza", de Thomas Mann

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Após do arrebatamento provocado pel'A Montanha Mágica, havia que regressar a Morte em Veneza, lido há bastante tempo. Devo confessar que a ideia que tinha desta novela era tremendamente difusa; ainda assim, sabia ter ficado bastante bem impressionado.
A releitura confirmou tratar-se de uma pequena obra-prima, em que estão presentes a escrita de Mann - rica, elaborada, precisa, culta -, o tom elevado das sua reflexões de caráter mais abstrato (sobre arte, a beleza, etc.) e o colorido das suas descrições (tão visível, por exemplo, na sua descrição do nascer do sol),
A história é extremamente simples (e, como é sabido, foi brilhantemente adaptada ao cinema pelo meticuloso Visconti): trata da paixão homossexual de Gustav Aschenbach, um melancólico e austero homem de meia idade alemão, e consagrado escritor, por um adolescente de comprido e claro cabelo encaracolado (Tadzio), numa estância de férias em Veneza. Aschenbach vê no jovem a "beleza perfeita", e por ela se deixa embriagar, contrariando a sua austera racionalidade, que lhe mostra o caratér impróprio do seu amor platónico (especialmente se se considerar a moralidade da alta burguesia de fim de século) e a necessidade de partir para salvaguardar a saúde (quando se apercebe dos ares pouco salubres, ou mesmo epidémicos, de Veneza). A descrição do desassossego do protagonista, bem como das suas ânsias próprias do sentimento amoroso, é, a meu ver, absolutamente exemplar.
Achei tremendamente curioso um aspeto que me remeteu para a nossa atualidade: o modo como as autoridades locais "encobrem" a epidemia, menorizando, para tentar minimizar o impacto económico (turístico).

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

"Maigret & O Enforcado da Igreja", de Georges Simenon

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E duas semanas depois da "estreia", eis que reincido na leitura de Simenon. Procurei, de entre os que tinha à disposição, um dos mais antigos (Maigret & O Enforcado da Igreja, o quarto da série "Maigret", publicado em 1931), uma vez que tenciono, de quando em quando (intercalando com leituras mais exigentes), ler um dos numerosos (mais de oitenta, ao que sei) volumes dedicados às investigações do comissário da Polícia Judiciária francesa.
Tal como o livro anteriormente lido, a história (bem assim como a escrita) de Maigret & O Enforcado da Igreja é relativamente simples: desta feita, Maigret tropeça casualmente em território belga no percurso de um sujeito que lhe parece suspeito; ao segui-lo até território alemão, acaba por interferir com o percurso do tal indivíduo (trocando-lhe a maleta que carregava, contendo um fato com vestígios de sangue), levando-o ao suicídio com um tiro na boca. As investigações de Maigret levam-no à descoberta da identidade verdadeira (pois usava um nome falso) e a tropeçar em vários compatriotas seus e numa história que acontecera vários anos antes.
Pessoalmente, e de novo, não posso dizer ter ficado encantado com esta obra, por ser algo básica, tanto ao nível do enredo (da investigação), como a nível literário. Ainda assim, há que dizer que, se não foi uma leitura propriamente enriquecedora, pelo menos proporcionou-me uns momentos entretidos (superficiais?) de leitura descontraída.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"Marc Bloch. Uma Vida na História", de Carole Fink

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Ao amigo Filipe
 
Esta biografia foi-me recomendada há quase vinte anos por um figurão do mundo académico numa conversa de corredor, a seguir à aula a que assistiam apenas dez alunos; após essa conversa, tropecei duas ou três vezes no livro em feiras do livro barato, mas, após folheá-lo, nunca senti suficiente interesse para comprá-lo. Talvez a capa, demasiado inexpressiva, também tivesse contribuído para a rejeição... Certo é que o descartei, como tantos e tantos livros que me foram sugeridos (ou que nalgum momento me interessaram) ao longo dos anos...
Ora, há umas semanas atrás, estando a ver um documentário em que se fazia referência à intervenção de intelectuais (sobretudo escritores e artistas plásticos) na Resistência Francesa contra a dominação nazi, lembrei-me que Marc Bloch havia sido um intelectual (neste caso um académico judeu) que morrera por ter preferido lutar como elemento da Resistência. Daí a verificar se a sua biografia, da autoria de Carole Fink, existia na biblioteca local foi apenas um momento. E, é caso para dizer, ainda bem que uma coisa levou à outra, e eu me predispus a levantar o livro, a trazê-lo para casa e a iniciar empenhadamente a leitura!
Porque Marc Bloch. Uma Vida na História é uma biografia que, a muitos títulos, vale a pena ler. O biografado é uma figura de interesse: um intelectual brilhante (enquanto historiador procurou inovar metodologicamente e acentuar a necessidade de espírito crítico, mostrando um interesse precoce pela história das mentalidades) mas também um resistente em tempos de luta pela liberdade do jugo nazi. Por outro lado, o discurso biográfico é claro, acessível e muito bem estruturado; segue uma ordem cronológica (é, assim, algo conservador), cruzando o percurso do biografado com vários níveis (mais gerais ou mais particulares) de contextualização.
A biografia de Carole Fink perpassa pelos momentos mais importantes da vida de Bloch: o seu percurso formativo como jovem historiador (filho de um historiador do período clássico, Bloch seguir-lhe-á as pisadas e, enquanto termina o seu doutoramento, já finda a guerra, ensina na refundada Universidade de Estrasburgo); o seu papel como militar na Primeira Guerra Mundial (destacou-se como oficial, chegando ao posto de capitão); as suas conquistas académicas (as suas principais obras - Os Reis Taumaturgos, A Sociedade Feudal ou Introdução à História -, são objetos de particular atenção, chamando-se atenção para as suas virtudes sem omitir as suas limitações ou mesmo fragilidades); o seu papel de cofundador dos Annales, em 1929, conjuntamente com Lucien Febvre (revista de bastante relevo no âmbito da historiografia, pelo que pretendeu inovar - saindo da história tradicional, quer era sobretudo política, procurando novas perspetivas multidisciplinares, apostando em temas contemporâneos, etc.), a sua participação na Segunda Guerra Mundial (desta vez como derrotado, tendo assistido à derrocada do exército francês e estado presente no célebre episódio da evacuação de Dunquerque), a sua passagem pela República de Vichy (território francês não ocupado pelos nazis durante a guerra, governado autoritária e cooperativamente com os alemães) e reação à política antissemita aí praticada (chegou a procurar refúgio para si e para a sua família nos Estados Unidos, mas tal nunca se concretizou; dado o seu prestígio, e apesar da segregação dos judeus, conseguiu manter-se no ensino superior até não haver mais condições); e, por fim, a sua adesão e participação na Resistência (desempenhou um cargo dirigente em Lyon, onde viveu na clandestinidade, acabando por ser capturado pela Gestapo, torturado e morto em 1944, dez dias depois do desembarque aliado na Normandia).
Por tudo o que escrevi, posso dizer que este livro foi um agradável surpresa; muito me congratulo por ter resgatado este livro, que li relativamente em pouco tempo. Ainda que tenha a noção que Introdução à História é uma obra algo divagante, talvez porque elaborada em grande medida de memória (Bloch erigiu-a sem recurso à sua biblioteca, que havia sido confiscada pelos nazis), fiquei um pouco tentado a regressar a ela. Logo se verá.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

"Maigret & Pietr, o Letão", de Georges Simenon

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Como recentemente escrevi, para além de Montalbán, tinha a intenção de conhecer a escrita de Georges Simenon, criador do famoso comissário Maigret. Comecei a desbravar território com este Pietr, o Letão, o primeiro livro de Maigret (publicado em 1929), que se desenrola em torno das ações de um criminoso internacional chegado a Paris.
Não sendo nenhuma obra maior da literatura policiária/policial, é um livro que se lê com alguma leveza: os capítulos e os parágrafos são curtos, a escrita é terra-a-terra, direta, sem grandes floreados, e privilegia-se a ação. É, portanto, uma leitura fácil, pouco exigente, que poderá adequar-se a alguns momentos do percurso deste leitor. Aguardam-me pelo menos mais 30 novelas do comissário numa biblioteca familiar para próximas leituras.

domingo, 21 de agosto de 2016

"Ar de Dylan", de Enrique Vila-Matas

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Enrique Vila-Matas ainda me pôde desiludir; não rejeito a possibilidade de ler qualquer coisa deste autor que me não agrade - como poderia rejeitá-la? Mas, até ao momento, Vila-Matas ainda não me defraudou, e isso faz com que seja um dos escritores que sigo com maior interesse e curiosidade.
Ar de Dylan desenvolve-se, como é deliciosamente recorrente em Vila-Matas, em torno de escritores (*) e intelectuais excêntricos, refletindo assim sobre a literatura e a arte. O narrador, escritor que decidira deixar de escrever, é convidado para um congresso sobre o fracasso na Suíça; aí conhece Vílnius Lancastre, cineasta fracassado (realizara uma curta metragem e propunha-se filmar toda a "história do fracasso geral do mundo") e filho do recentemente falecido escritor Juan Lancastre, com quem havia tido uma relação difícil (agora, depois do óbito, o filho via-se invadido por memórias paternas...). O narrador deixa-se fascinar pelo trágico relato do jovem com "ar de Dylan" e pela sua apetência por fracassar... e acaba por aceitar escrever uma autobiografia apócrifa de Juan Lancastre, como forma de um rebuscado ajuste de contas.
Nesta obra aparecem alguns dos temas recorrentes do autor. Por exemplo, na conversa entre Vílnius e Cláudio Aristides Maxwell, entendido em cinema americano clássico, retoma-se a discussão entre literatura convencional e literatura experimental ou de vanguarda (tão presente em Chet Baker pensa na sua arte); Vila-Matas evoca também aquilo que Max chama de literatura "híbrida", aquela que mistura romance com ensaio, artifício com realidade, criticando-lhe o intelectualismo... É por isto (por este jogos cheios de ironia) que aprecio este autor.
As referências literárias (não posso deixar de as arrolar) são mais que muitas: Joyce (sempre presente nos últimos livros que li de Vila-Matas, e que serve, enquanto autor de Ulisses, como paradigma da experimentação literária), Shakespeare (via Hamlet), Scott Fitzgerald, Nabokov, Proust, Knut Hansum (faz-se alusão a Fome, livro que tenho em casa na pilha dos livros a ler a breve-médio prazo), Joseph Roth (fiquei sugestionado a ler em breve O Leviatã), Laurence Sterne, John Banville (autor que ando para descobrir há já algum tempo), Graham Greene, Kafka, entre outros. Há também várias referências ao Oblomov, de Ivan Goncharov (que acrescentei também à minha lista de interesses literários), cuja atitude do personagem principal inspira a atitude do personagem Vílnius de Vila-Matas, voluntariamente apático e sem aspirações. (Pelo que expus sempre se comprova que os livros deste escritor catalão me levam a outros autores e obras, animando a minha curiosidade - que mais poderia querer?).

(*) Tantos são os escritores que colocam no centro dos seus romances, como protagonista e/ou narrador, outros escritores! Constato, porém, que poucos constroem alguma coisa com originalidade, graça, inteligência... Há nestes meus  medíocres textos alguns que se referem a tentativas pouco conseguidas (eventualmente também medíocres) de romancearem a realidade do escritor (escuso-me de apontar).

sábado, 20 de agosto de 2016

"Os Velhos Também Querem Viver", de Gonçalo M. Tavares

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Partindo de Alceste, de Eurípides, Gonçalo M. Tavares ensaia, com este Os Velhos Também Querem Viver, uma tentativa de recriar um episódio da mitologia grega, transpondo-o para o cerco de Sarajevo pelo exército sérvio nos anos noventa. Pessoalmente, achei um pouco gratuito este novo contexto: ser em Sarajevo durante a guerra da Bósnia nada acrescenta, nem há aparentemente qualquer justificação para tal cenário; aliás, achei a primeira estrofe do prólogo demasiado parecida com um parágrafo da Wikipedia.
Esta curta obra (eventualmente poética) trata do sacrifício de Alceste, mas também - e daí o título - da recusa de sacrifício do velho Feres. Atingido na cabeça pela bala de um sniper (em português "franco-atirador" ou "atirador furtivo"), Admeto estaria destinado a morrer; Apolo, porém, quer que ele viva e consegue que os deuses lhe comutem esse destino se houvesse alguém que por ele morresse. Ninguém mais se ofereceu (nem amigos, nem criados, nem o seu pai, Feres) a não ser a sua mulher Alceste (gesto feito por amor, ainda que Taveres não lhe dê grande expressão). O sobrevivente Admeto chora a morte de Alceste e mostra ressentimento contra o pai, por não se ter sacrificado por ele (com o argumento de este já ter vivido bastante tempo); Feres defende o seu direito à vida... Alceste acabará por ser resgatada à morte por Hércules, e assim se fecha a história.
Não deveria fazer muita diferença esta minha síntese ao enredo, pois o "modo" (isto é, a escrita) deveria justificar só por si a leitura. Porém, a meu ver, tal não acontece. As imagens utilizadas por Taveres, contrariamente a Uma Viagem à Índia (livro que, aliás, ando para reler - releitura que me permitirá confirmar este meu juízo), parecem-me algo pobres ou mesmo, lamento afirmá-lo, básicas; não encontrei nesta obra a frescura e inteligência dos jogos de linguagem e/ou de ideias que caracterizam a sua escrita. Um livro demasiado plano e pobre (apressado?) e, quase me arrisco a dizer sem ter lido a obra de Eurípides, que nada deve acrescentar ao escrito pelo autor grego.
Concluindo, não me parece dos escritos mais interessantes e conseguidos de Gonçalo M. Tavares.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

"Só", de António Nobre

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O meu primeiro contacto com António Nobre foi nos bancos da escola; na altura, já algo desperto para a poesia, não fiquei propriamente rendido, mas encontrei alguns pontos de interesse. Uns poucos anos mais tarde, nos inícios dos meus vintes, comprei uma edição de bolso de e fiz uma leitura mais estruturada.
Julgo que a minha impressão nessa primeira leitura de coincide em larga medida com a minha atual impressão: ainda que a poesia de António Nobre esteja, aqui e além, salpicada por laivos (ténues) de modernidade de finais de Oitocentos (o tédio, o spleen - presentes, de uma forma tão diferente, por exemplo na poesia de Baudelaire, falecido no ano de nascimento de Nobre), e apesar da graça que tem a sua muito fluída e coloquial linguagem (consigo encontrar neste aspeto alguma ligação a Cesário Verde), causa-me um certo enfado a persistência na piedade religiosa tradicional e no pendor tradicionalista e de cariz popular. De facto, não consigo achar interessante o pendor ultrarromântico da poesia de António Nobre - o seu excesso de "lua", o tom nostálgico, mas também de pieguice narcisica, de diminutivos...

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

"Os Pássaros de Banguecoque", de Manuel Vázquez Montalbán

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Não demorei muito a, depois de Os Mares do Sul, regressar a Montalbán, De facto, ainda que esse primeiro livro não fosse propriamente imprescindível, a escrita do autor catalão conseguiu agradar-me a ponto de querer reincidir.
Este Os Pássaros de Banguecoque é, na minha ótica, um pouco diferente do livro lido anteriormente (ainda que também se refira - aliás, expressão presente logo na quarta página - a esse universo dos "mares do sul"). Tem, é certo, algumas da características do policial - mantém-se, por exemplo, o detetive Pepe Carvalho como protagonista (bem como a sua trupe barcelonesa - o seu criado Bicuter, a sua "amiga" Charo, etc.) e a narração de uma investigação; porém, julgo que ultrapassa um pouco o género, caindo (mais do que Os Mares do Sul, a meu ver) no puro romanesco (visível nomeadamente na riqueza de algumas descrições).
Talvez a esse aspeto não seja indiferente as linhas de força do enredo: Carvalho parte para Banguecoque em busca de Teresa Marsé (uma amiga que lhe havia pedido ajuda, dado estar em perigo), busca que, com a ajuda (ou controlo?) da polícia local e da vigilância de certas organizações criminosas, o obriga a percorrer o território tailandês. O modo como esta narrativa se encerra é, creio, simultaneamente caricata e engenhosa.
As referências literárias abundam, de novo, nesta obra (Beckett, Torrente Ballester, Adorno, Anthony Burgess, Stanley Gardner, Somerset Maugham, Kippling, entre outras); tal como livro anteriormente lido, e contrastando com as referências a escritores e obras, Pepe Carvalho tem um hábito surpreendente: casualmente dedica-se à biblioclastia, isto é, à destruição de livros. Também a gastronomia está muito presente, ou não fosse o protagonista um gastrónomo.
Por tudo o que se escreveu, este leitor julga voltar novamente a Montalbán.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

"A Questão Finkler", de Howard Jacobson

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Não sei se é muita justa (ou sequer muito favorável) a criação por parte da crítica (com a consequente e rasteirinha reprodução pelas editoras para fins comerciais) de epítetos como "o Philip Roth inglês". Podemos questionar todos os rótulos, mas há alguns que colam apesar de falsearem a realidade. Julgo que o único ponto de Howard Jacobson (e deste A Questão Finkler, único livro que li do autor) em comum com Roth será o debruçar-se sobre a comunidade judaica e sobre as suas questões identitárias.
Dito isto, penso que Howard Jacobson tem uma voz própria, bem como um estilo de escrita próprio (pelo menos muito diferente do de Roth, que continuo a considerar um dos mais notáveis), que não deixa de fazer alguma reverência a (ou estar um pouco em linha com) um certo humor british (deixem passar o estrangeirismo) - na tradição, eventualmente, de um Wilt, de Tom Sharpe, mas sem cair tão verticalmente [no vício - desculpem esta intromissão da poesia cesariniana] no nonsense.
Neste seu livro, que recebeu alguma atenção na altura em que foi publicado (especialmente por ter sido premiado com o Booker Prize), Jacobson joga com os estereótipos existentes no Ocidente em relação aos judeus, tanto as sobrevivências de pendor negativo (xenófobas, raciais, religiosas) como outras mais neutras. Julian Treslove é um tipo melancólico de meia idade, algo pesaroso quanto ao seu passado, presente e futuro, relativamente frustrado profissional, amorosa e pessoalmente. Ao ser assaltado por uma mulher, que eventualmente lhe terá chamado "judeu", Treslove vai questionar a sua identidade e tentar encontrar no "ser judeu" uma resposta para os seus anseios enquanto sofredor. O autor toca ainda nas delicadas questões do disfarçado antissemitismo sobrevivente (e mesmo crescente) nas sociedades ocidentais, da exploração excessiva (para justificar determinadas atitudes ou para vitimização e culpabilização de outros) do Holocausto pelos judeus e das atitudes de Israel para com os palestinianos.
A Questão Finkler parece-me, pois, um livro bem escrito, original e bastante consistente, o que me faz ter alguma curiosidade em ler mais alguma coisa deste autor no futuro.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

"A Obra ao Negro", de Marguerite Yourcenar

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Lembro-me de ter ficado, nos meus vinte anos, bastante impressionado com a leitura deste A Obra ao Negro. Tenho ideia - mas posso estar enganado, a memória prega partidas - de ter descoberto e comprado a presente edição de bolso numa famosa (e muito turística nos últimos anos) livraria portuense; conhecia a autora de Memórias de Adriano, acerca do qual escrevera um curto ensaio académico. Ao chegar a casa, muito satisfeito com a aquisição, tomei conhecimento que já existia uma edição na biblioteca paterna - a minha "descoberta", afinal, não o era propriamente.
Há uns tempos atrás, pensando em livros que gostaria de reler a breve ou médio prazo, inclui numa curta listagem esta obra de Yourcenar; demorei alguns meses - especialmente por ter menos oportunidades de leitura -, a ir resgatar o volume depositado na sala de estar, entre um Tabucchi (autor que tenho que pensar em reler um dia destes) e um Cardoso Pires (não "um" qualquer: O Delfim, livro que muito aprecio).
E foi uma leitura absolutamente gratificante. A escrita de Marguerite Yourcenar, suportando-me nas duas obras que conheço, é tremendamente precisa e, parece-me - visto tratar-se de um romance histórico (e eu que nem aprecio romances históricos...) -, rigorosa; aliás, na nota que serve de posfácio,  a autora não só explica a génese da obra (erigida ao longo de quarenta anos, com longos intervalos), como apresenta as suas fontes de informação e inspiração e algumas opções tomadas, ora para conferir verosimilhança, ora para beneficiar a narrativa.
A ação de A Obra ao Negro desenvolve-se no século XVI, período de grandes transformações: desde logo o surgimento do movimento protestante e consequente reação católica (aquilo que usualmente se designa pela Contra-Reforma), mas também o Humanismo de raízes renascentistas e um certo racionalismo (de valorização do espírito crítico, de integração dos novos conhecimentos resultantes das descobertas marítimas, de questionamento científico para além dos dogmas mentais e religiosos - especialmente visível na ideia revolucionária de Copérnico -, etc.). Yourcenar relata-nos o percurso de Zenão: formado em teologia (estando destinado a uma carreira eclesiástica), este personagem é desde novo um espírito inquieto, estudioso, com um apurado sentido crítico, curioso (ou mesmo enciclopédico, pois interessa-se por mecânica, alquimia, fisionomia, medicina, filosofia); a sua personalidade leva-o a afastar-se do percurso clerical e a enveredar pelas ciências e pela prática da medicina. Publica algumas obras que prontamente são condenadas pela Igreja, passando a ser perseguido pela Inquisição e a viver na clandestinidade até à sua prisão... A última frase é, para mim, absolutamente marcante: «E isto é o mais longe que se pode chegar no fim de Zenão».
Se com estas palavras consegui sintetizar as linhas de força da obra, é seguro que nem sequer arranhei o verniz do interesse da obra, que reputo de bastante rica. Termino sublinhando a excelência da tradução realizada por António Ramos Lopes, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

"O Castelo dos Destinos Cruzados", de Italo Calvino

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noutro texto escrevi que Calvino é um autor que me é muito caro. Não raramente evoco as suas obras Palomar Se numa noite de Inverno um viajante quando me quero referir a uma escrita que brinca e experimenta, sem quebrar totalmente as normas como, por exemplo, Joyce fez (em especial em Finnegans Wake).
O Castelo dos Destinos Cruzados, não sendo das obras mais relevantes de Calvino, é, ainda assim, curiosa. O autor serviu-se de dois baralhos de tarot para montar dois esquemas de histórias cruzadas (sendo que o primeiro é mais conseguido e perfeito, pois se conseguem harmonizar todas as sequências num mesmo esquema geral), tendo como pano de fundo uma fabulosa Idade Média (fabulosa na medida em que inclui toda uma panóplia de aspetos fantásticos, mágicos, simbólicos, míticos). Sim, escrevi "esquemas" porque, na verdade, esta pequena obra de Calvino é um exercício de escrita esquemática: parte-se de uma sequência de cartas para, a partir dela, se inferir uma história (interpretada a partir das cartas, uma vez que os vários personagens estão tomados por um incompreensível mutismo), sequência essa que por sua vez se vai articular com uma nova sequência/história.
Ainda por vezes rígida (quando se associa quase sempre o naipe de paus à existência de uma floresta), esta esquematização resulta bastante bem, sobretudo se se considerar a inteligência do autor na criação de cenários criados e nas múltiplas intertextualidades.
Não sendo uma obra obrigatória do autor, ainda assim, passei bons momentos ao lê-la.