quinta-feira, 28 de julho de 2016

"A Obra ao Negro", de Marguerite Yourcenar

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Lembro-me de ter ficado, nos meus vinte anos, bastante impressionado com a leitura deste A Obra ao Negro. Tenho ideia - mas posso estar enganado, a memória prega partidas - de ter descoberto e comprado a presente edição de bolso numa famosa (e muito turística nos últimos anos) livraria portuense; conhecia a autora de Memórias de Adriano, acerca do qual escrevera um curto ensaio académico. Ao chegar a casa, muito satisfeito com a aquisição, tomei conhecimento que já existia uma edição na biblioteca paterna - a minha "descoberta", afinal, não o era propriamente.
Há uns tempos atrás, pensando em livros que gostaria de reler a breve ou médio prazo, inclui numa curta listagem esta obra de Yourcenar; demorei alguns meses - especialmente por ter menos oportunidades de leitura -, a ir resgatar o volume depositado na sala de estar, entre um Tabucchi (autor que tenho que pensar em reler um dia destes) e um Cardoso Pires (não "um" qualquer: O Delfim, livro que muito aprecio).
E foi uma leitura absolutamente gratificante. A escrita de Marguerite Yourcenar, suportando-me nas duas obras que conheço, é tremendamente precisa e, parece-me - visto tratar-se de um romance histórico (e eu que nem aprecio romances históricos...) -, rigorosa; aliás, na nota que serve de posfácio,  a autora não só explica a génese da obra (erigida ao longo de quarenta anos, com longos intervalos), como apresenta as suas fontes de informação e inspiração e algumas opções tomadas, ora para conferir verosimilhança, ora para beneficiar a narrativa.
A ação de A Obra ao Negro desenvolve-se no século XVI, período de grandes transformações: desde logo o surgimento do movimento protestante e consequente reação católica (aquilo que usualmente se designa pela Contra-Reforma), mas também o Humanismo de raízes renascentistas e um certo racionalismo (de valorização do espírito crítico, de integração dos novos conhecimentos resultantes das descobertas marítimas, de questionamento científico para além dos dogmas mentais e religiosos - especialmente visível na ideia revolucionária de Copérnico -, etc.). Yourcenar relata-nos o percurso de Zenão: formado em teologia (estando destinado a uma carreira eclesiástica), este personagem é desde novo um espírito inquieto, estudioso, com um apurado sentido crítico, curioso (ou mesmo enciclopédico, pois interessa-se por mecânica, alquimia, fisionomia, medicina, filosofia); a sua personalidade leva-o a afastar-se do percurso clerical e a enveredar pelas ciências e pela prática da medicina. Publica algumas obras que prontamente são condenadas pela Igreja, passando a ser perseguido pela Inquisição e a viver na clandestinidade até à sua prisão... A última frase é, para mim, absolutamente marcante: «E isto é o mais longe que se pode chegar no fim de Zenão».
Se com estas palavras consegui sintetizar as linhas de força da obra, é seguro que nem sequer arranhei o verniz do interesse da obra, que reputo de bastante rica. Termino sublinhando a excelência da tradução realizada por António Ramos Lopes, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes.

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