domingo, 29 de dezembro de 2013

"O Nome da Rosa", de Umberto Eco

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Porque é que decidi reler O Nome da Rosa, de Umberto Eco? Desde logo porque me agradou quando o li pela primeira vez (critério fundamental para justificar a releitura); em segundo lugar porque, desde a leitura há cerca de dois anos de O Pêndulo de Foucault, ficara com vontade de revisitar esta obra - bem como o estilo de escrita do leitor, marcado (a meu ver) pela utilização de uma linguagem erudita (caindo por vezes numa quase-verborreia, ainda que deliberada e, logo, irónica - a fazer lembrar Jorge Luís Borges), ora no âmbito da filosofia e teologia medieval, ora no âmbito mais exótico e vazio do exoterismo (no caso de O Pêndulo)...
Na nota inicial de O Nome da Rosa (ironicamente intitulada de "Naturalmente, um manuscrito"), Eco recorre ao artifício de apresentar o seu texto como a versão italiana da tradução neogótica francesa, de uma edição seiscentista de um manuscrito medieval (rebuscado, hein?)... Mais recentemente têm sido muitos os escrevinhadores ao quilo (especialmente na área do romance dito histórico) a utilizar tal artimanha - vejam-se o número de títulos no mercado com as palavras "manuscrito", "códice", e eu sei lá que mais, a justificar viagens (quase sempre intelectualmente medíocres, com muita informada propensão à pedagogia mais básica) ao passado.
A ação decorre em 1327 num mosteiro beneditino não nomeado, e é-nos narrada por Adso de Melk, personagem participante nos acontecimentos narrados enquanto noviço e discípulo do frade franciscano Guilherme de Baskerville (nome que homenageia Sherlock Holmes, detetive que soluciona o caso d' "O Cão dos Baskervilles"). Durante a sua permanência no mosteiro, Guilherme e Adso tentam desvendar as misteriosas e violentas mortes ali ocorridas, por entre silêncios comprometidos e resistências várias, crimes aparentemente ligados à salvaguarda de algum segredo da biblioteca. Guilherme, representando o homem moderno (isto é, portador de uma nova forma de pensar, que ultrapassa certas conceções medievais), é um homem que valoriza a verdade e a objetividade (recusando as explicações sobrenaturais sempre que se afigura existir alguma mais concreta), que possui um apurado sentido crítico e agudas capacidades dedutivas, e que revela um certo relativismo intelectual (pronto a duvidar e questionar, mesmo as verdades aparentemente absolutas, e a confiar na bondade da razão humana). O seu campo de saber, além da teologia, abrange conhecimentos de literatura, botânica, ótica, criptografia, astronomia (possui, por exemplo, um astrolábio) - Guilherme é um inegável amante dos livros! Aparentemente, é, assim, um ser algo anacrónico (mas talvez não o seja tanto assim...); claro que a sua sapiência (a sua cultura livresca) também parece ser um pouco exagerada, por demasiado lata... mas, ainda assim, é um personagem (carismático, é certo) possível, verosímil.
De um modo geral, este livro (como também, de certa forma, O Pêndulo de Foucault e O Cemitério de Praga) trata do problema da verdade (mas também da falsidade ou da falsificação) e da interpretação que se faz da realidade; revela, por outro lado, um enorme amor do autor aos livros (se aqui a ação anda em torno de uma biblioteca, nas obras supracitadas perspetiva-se a escrita e produção de livros - mesmo que intelectualmente falsos) e, por consequência, aos seus autores. Normalmente não aprecio romances de pendor histórico, mas este é um livro um pouco diferente, uma vez que não cai excessivamente no erro (nesse grande aborrecimento!) de tentar ser pedagógico, de pretender ensinar história ao mesmo tempo que se conta uma história ficcional; mesmo que Eco não deixe de nos fornecer alguns dados contextuais importantes, e mesmo algumas interpretações, tenta evitar (e julgo que o consegue razoavelmente - e quando o não faz parece-me tratar-se de uma opção propositada, com fins humorísticos) que os personagens pensem e raciocinem como os homens contemporâneos. Enfim, uma obra a que me soube bem regressar...

domingo, 22 de dezembro de 2013

"O teu rosto será o último", João Ricardo Pedro

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O livro de estreia de João Ricardo Pedro, escrito enquanto se encontrava desempregado, conseguiu o feito de vencer um avultado prémio literário. Lida a obra há que reconhecer que a escrita é interessante, a estrutura equilibrada, as linhas narrativas e os percursos dos personagens singelamente cruzados. Simplesmente não consegui ver neste livro nenhum potentado literário... mas talvez o mal esteja nos meus olhos.
É um facto que, desde o momento em que peguei no livro para o ler - e há que assumir o preconceito (assumi-los não será apenas um exercício de honestidade intelectual, como também um esforço de autoconsciencialização dos nossos conceitos estéticos) -, desconfiei do título, que soa demasiado aos títulos de uma certa literatura ligeirinha que abunda no mercado literário. Porém, em boa verdade, este caso nada tem que ver com tais correntes de literatura de supermercado. É, como acima já se disse, um livro que se lê bem, ainda que sem ser nenhum livro marcante; considerando que é um primeiro livro, escrito perto dos quarenta, é um bom esforço, que justifica andar-se atento ao surgimento de subsequentes livros deste autor.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

"Wilt em Parte Incerta", de Tom Sharpe

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Longe de ser o livro de Tom Sharpe que me agradou mais (dos três que até ao momento li), ainda assim julgo que Wilt em Parte Incerta justifica a leitura. A história pode não ter a acutilância narrativa de Wilt (o primeiro da série de livros centrados nesse personagem), mas o humor de Sharpe está indubitavelmente presente (talvez não tão fresco), pelo que este é um livro que se lê com algum agrado.
Neste livro, o leitor divide a sua atenção entre a viagem a pé e sem rumo de Henry Wilt pela Inglaterra profunda, e a ida aos Estados Unidos da sua mulher, Eva Wilt, e das suas "adoráveis" quadrigémeas. Tipicamente, os vários personagens envolvem-se, por acidente, erro de cálculo ou malícia alheia, em peripécias de tons quase sempre bizarros - que ora ligam as mulheres da família Wilt ao tráfico de droga, ora colocam Henry inconsciente no cenário de um presumível crime.
Ao ler este livro lembrei-me frequentemente da escrita de P. G. Wodehouse (li dois livros deste autor: Época de Acasalamento e O Código dos Wooster): apesar de todas as diferenças de estilo, julgo que têm em comum o modo como criam um novelo cada vez mais emaranhado de peripécias humorísticas... que se entretêm a desemaranhar nas páginas de desenlace.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

"O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson

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Há uns dias atrás, por mero acaso, vi o filme Mary Reilly, de Stephen Frears (baseado num romance da autora americana Valerie Martin, obra essa que, por sua vez, se inspira no clássico de Stevenson). Refiro este facto porque a leitura de O Médico e o Monstro (no original: Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, publicado originalmente em 1886) resulta de uma coincidência: um dia após o visionamento do filme, encontrei (inesperadamente, uma vez que desconhecia tê-lo em casa) o livro de Stevenson no meio de outros a ler nos próximos tempos.
A história centra-se no tema da dupla identidade, traduzida, de certa forma, na luta entre o bem e o mal (ou, dito de outra forma, na coexistência destes dois opostos num mesmo indivíduo). Se no filme de Frears seguimos o olhar de Mary Reilly, criada na casa do Dr. Henry Jekyll, na obra de Stevenson a história é-nos narrada por Gabriel John Utterson, advogado e amigo do médico. Assim, Utterson acompanha e desvenda, num relato de intensidade crescente, a estranha relação entre Dr. Jekyll e o desagradável Mr Hyde...

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Bouvard e Pécuchet", de Gustave Flaubert

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Quando estavam cansados de um órgão, passavam a outro - assim estudando e abandonando sucessivamente o coração, o estômago, o ouvido, os intestinos; porque o homenzinho de cartão os aborrecia, apesar dos seus esforços por se interessarem por ele.
Donde concluíram que a Fisiologia é (segundo uma velha frase) o romance da medicina. Como não conseguiram compreende-la, não acreditavam nela. (in Bouvard e Pécuchet)
Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, é um livro bastante peculiar; pese embora o caráter repetitivo ou cíclico da história, em momento nenhum o humor flaubertiano se torna cansativo. Quando há uns bons anos atrás o li pela primeira vez, fiquei com uma impressão muito positiva; esta releitura confirmou plenamente a primeira apreciação: agradam-me a história, os personagens, o tipo de humor, a escrita fluída, as referências culturais (o autor terá consultado centenas de obras durante a escrita deste livro) e o modo como brinca com elas...
Publicado em 1881, um ano após a morte do autor, Bouvard e Pécuchet retrata a amizade de dois funcionários que, sendo ambos livres e gozando da herança recebida por um deles, decidem quebrar com a sua vida rotineira (e até certo ponto monótona) indo viver para o campo e despender o seu tempo a desenvolver-se intelectualmente. Entusiasticamente, Bouvard e Pécuchet lançam-se na prática da agricultura, investindo no estudo e recorrendo às últimas técnicas, métodos, instrumentos; porém, as coisas não correm exatamente como esperado... E assim, perante o fracasso, passam a apostar na arboricultura, e depois na jardinagem, e posteriormente na conservação de alimentos...
Ao longo dos anos, os protagonistas vão saltando pelas várias áreas do saber: pela química, apesar de se enredarem nos seus conceitos por vezes complexos e abstratos; pela anatomia e pela medicina, fazendo experiências nem sempre conclusivas; pela geologia e pela arqueológica, cedendo à febre do colecionismo sem qualquer critério objetivo, e desiludindo-se com a existência de múltiplas interpretações na história; pela literatura, experimentando os vários géneros, sem no entanto atingirem a satisfação com qualquer um deles; pela política, ainda que isso lhes traga inimizades; pelo amor, tropeçando nas suas vicissitudes; pelo desporto, tendo o esforço sido maior que o possível e desejável; pelo esoterismo (e nomeadamente pelo - então na moda - magnetismo) e pela filosofia (metafísica e lógica), caminhos sapientais percorridos de forma trôpega e que, quase inevitavelmente, os levam a ficar encurralados pela abstração e pela impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto, indubitável; pela religião, enveredando numa busca da simplicidade, da pureza interior, de um sentido para a vida, não encontrando, de novo, um resposta definitiva e absoluta para os seus anseios; pela educação, procurando formar duas crianças, filhas de um criminoso; e por outras áreas mais.
Em suma, Bouvard e Pécuchet é uma obra satírica que brinca com o excesso de confiança (tão tipicamente oitocentista - tão positivista, portanto) no progresso contínuo, na inovação, no conhecimento científico e tecnológico. Os personagens que dão nome à obra, apesar da sua curiosidade e vontade de aprender e de estudar, não deixam de ser dois diletantes (que mutuamente se incentivam): no seu esforço, nunca há uma aplicação suficientemente estruturada e consistente; perante as contrariedades levantadas por um tema, os nossos heróis sentem-se frustrados e cansados, passando a uma nova matéria (não apostando, assim, no aperfeiçoamento). Por vezes, aplicam-se em certos estudos por motivos idealistas ou simplesmente pelo seu caráter pitoresco; noutras vezes, investem em matérias que estão bem fora do seu alcance intelectual... Em alguns momentos, não conseguem, ainda assim, deixar de sentir um certo desprezo pelos outros (quer pela sua perplexidade antes as sua investidas, quer pela sua ignorância e interesses divergentes). A obra culmina de um modo bastante curioso, justificando o caráter circular da mesma.
Concluo este breve texto destacando o excelente trabalho de tradução de Pedro Tamen; esta obra tem um vocabulário rico, fazendo por vezes lembrar - ainda que sejam escritas muito diferentes - a finura do nosso Eça...

terça-feira, 19 de novembro de 2013

"Jogos da Noite", de Stig Dagerman

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Desaparecido aos 31 anos, Stig Dagerman deixou-nos uma obra bastante interessante, constituída por quatro romances (dos quais apenas ainda não li As sete pragas do Casamento), uma reportagem (Outono Alemão), peças teatrais, curtos textos ensaísticos e poemas.
Jogos da Noite é uma coletânea de contos de valor e interesse desigual. Pessoalmente, considero que dois textos se destacavam dos restantes: "Onde está a minha camisola islandesa?" (a história mais longa do livro, onde melhor se notam os dotes literários do autor) e "As memórias de uma criança" (texto de pendor autobiográfico, que relata a infância passada com os avós numa aldeia).
Persistentes neste conjunto de histórias são a infância (na maioria das história o protagonista é uma criança), a solidão e a desilusão; o consumo de álcool, a embriaguez ou mesmo o alcoolismo são igualmente recorrentes, ao ponto de um anterior leitor deste volume (requisitado na biblioteca local) ter escrito a lápis na página 100: «Pode dar-se que se bebe mais nos países nórdicos pelo frio?» (não pude deixar de sorrir ao ler este "pensamento" alheio).

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"A Construção de Luís XIV", de Peter Burke

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A Construção de Luís XIV, de Peter Burke, não se trata de uma biografia do monarca absoluto que reinou em França de 1643 (a subida ao trono fez-se com 4 anos) a 1715; é antes um estudo sobre a construção da imagem pública do rei, construída ao longo do seu reinado. Refira-se que esta obra conta com quase uma centena de figuras, que não só ilustram como também ajudam a suportar as ideias explanadas.
A imagem régia (a forma como o rei era representado) foi objeto de grande cuidado no reinado de Luís XIV: houve claramente a preocupação em propagandear a figura do rei (de um modo positivo, mostrando a sua glória, esplendor, opulência, grandeza, poder) e, desta forma, manipular a opinião pública (ganhando a sua obediência, o seu respeito, a sua admiração). Procurando evitar anacronismos, Burke não deixa de comparar este cuidado com a propaganda dos políticos contemporâneos (o cuidados com a imagem, a cargo de gabinetes especializados).
O livro aborda, assim, as representações de Luís XIV nas artes plásticas (sobretudo pintura, escultura, arquitetura) e performativas (teatro, bailado, música), na medalhística, na literatura; refere-se também ao cerimonial montado (encenado) em torno da figura do rei. Estes foram os meios utilizados para acrescentar significado simbólico à figura e aos gestos de Luís XIV, procurando criar-se assim uma espécie de "mito": o rei como heroico, invencível, omnisciente, divino, enfim, como "Rei-Sol". A associação (identificação alegórica) a figuras heroicas e/ou ligadas ao passado de França (como Alexandre o Grande, Augusto, Clóvis, Carlos Magno, São Luís - o rei medieval francês Luís IX -, etc.) foi outra das estratégias utilizadas.
Claro que é possível interpretar esta "construção" de várias formas. À partida Burke rejeita a visão cínica (que postula que a glorificação do rei consiste num esforço de tentar convencer os outros de algo em que se não acredita, ou então como a mera expressão de aduladores e oportunistas, que apelava à vaidade ou mesmo megalomania régia), mas também a visão inocente (que defende que as representações do rei serviam o propósito benigno de instruir as pessoas e de encorajá-las a amar o seu soberano); na sua perspetiva, o equilíbrio está na visão intermédia, isto é, em não tomar todas as representações por maquiavelismo ou fraude, nem aceitar a total benevolência dos propósitos régios. Se nas sociedades democráticas atuais há uma tendência a associar o elogio à bajulação ou ao servilismo, no Antigo Regime a pompa (colocada, por exemplo, nos discursos sobre o rei) era considerada elevada (a utilização de imagens da mitologia, o uso de certas metáforas, etc.) e elegante - ou seja, nos séculos XVII e XVIII lisonjear não significava necessariamente mentir, podendo ser antes a obediência a critérios estéticos, de convivialidade e sociabilidade.
Nesta obra o autor não se esquece de evidenciar a existência de imagens depreciativas do rei (pela associação a figuras históricas de conotação negativa, pelo apontar de um sem número de defeitos - ambição, falta de escrúpulos, tirania, vaidade, etc. -, pela paródia, ou pela simples maledicência), imagens essas que obedeceriam a um programa próprio. Usando pseudónimos e permanecendo anónimos, os autores destas imagens (fossem eles naturais de países "inimigos" ou huguenotes que haviam fugido de França aquando da revogação do Édito de Nantes) usam, basicamente, os mesmos meios de comunicação e os mesmos modelos dos autores das representações oficiais.
Talvez o ponto mais frágil do livro (porque de mais difícil resposta, como aliás o reconhece Burke) esteja na tentativa de avaliar a forma como foram recebidas as imagens (positivas e negativas) de Luís XIV. Atendendo que não foram utilizados (dado que ainda não existiam) "meios de comunicação de massas", as representações régias não visavam um qualquer "grande público"; ainda que algumas formas de expressão atingissem muitas pessoas (por exemplo, as esculturas expostas em praças públicas, a encenação das entradas reais, etc.), a imagem do rei era sobretudo veiculada para a posteridade (os vindouros julgariam as ações do rei - e daí a preocupação em utilizar materiais resistentes ou em encontrar historiadores que redigissem a "história oficial"), para as elites cultas (os cortesãos, a nobreza e a burguesia parisiense - isto é, aqueles que assistiam às cerimónias, rituais e espetáculos da corte, aos que sabiam interpretar as inscrições latinas dos monumentos e os símbolos neles presentes) e para os olhares dos estrangeiros (os embaixadores eram presença habitual na corte, pelo que eram recetores da mensagem de grandeza do monarca; além disso, algumas das obras laudatórias eram traduzidas para outras línguas, que não o francês ou o latim). De tudo isto resulta que a avaliação do real impacto das imagens de Luís assenta em testemunhos individuais - logo, parcelares. Ainda assim, é possível constatar que o modelo francês de (auto) representação foi seguido por outras monarquias, o que por si só é significativo.
Em suma, um livro com algum interesse, embora, deva confessar, ficou um tanto aquém das minhas espectativas - é o que dá partir para a leitura com a ideia de se tratar de uma obra "clássica" no domínio da historiografia. Julgo que a abordagem é original, mas o texto acaba por ser um pouco descritivo - esperava ver uma maior profundidade analítica. Um último aspeto não pode ser omitido desta nota de leitura: é inegável que a existência de um número significativo de gralhas, que podiam facilmente ter sido evitadas com um trabalho mais cuidadoso de revisão, perturba a leitura desta obra, facto que é contrabalançado pela clareza da escrita do autor.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

"Engano", de Philip Roth


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Eu escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia, escrevo autobiografia e dizem-me que é ficção, por isso, já que sou tão burro e eles são tão espertos, deixá-los a eles decidir o que é ou não é. (in Philip Roth, Engano)
Inteligente e original, Engano trata de infidelidades. Uma parte da originalidade está, a meu ver, na forma: o livro é composto por fragmentos de diálogos (uns curtos, outros longos, uns vazios - ou nem tanto -, outros bastante significativos) entre amantes; o leitor é, por isso, convidado a reconstituir a narrativa peça a peça (como num puzzle).
O personagem masculino, a viver um caso extraconjugal com uma mulher também ela casada, chama-se significativamente Philip, e é um escritor judeu americano a viver (e escrever) em Londres; alguns dos personagens (Nathan Zuckerman, Sra. Portnoy, etc.) das obras deste ficcional Philip coincidem com os personagens das obras do autor Philip Roth (coincidências?). Há, portanto, neste livro-caleidoscópio uma intenção deliberada de tornar o leitor cúmplice do "engano", ou, dito de outra forma, do entrecruzamento (ficcional, passe a repetição) entre ficção e realidade - ou, talvez ainda, da infidelidade entre verdade e mentira.
O amor, o sexo, o cansaço e as frustrações nos relacionamentos, a separação são alguns dos assuntos recorrentes do livro; mas, para além deles, os personagens dialogam sobre política, antissemitismo e literatura. Talvez a reflexão sobre este último ponto seja, afinal, o que justifica a obra.
Em suma, este é um livro leve (mas nunca "light", ou ligeiro), na medida em que se lê muito bem; mas, como já acima se escreveu, um livro inteligente e com bastante humor.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

"A Festa do Chibo", de Mario Vargas Llosa

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"A Festa do Chibo", de Mario Vargas Llosa, é seguramente um dos melhores livros que já li do autor. Este romance, muito bem construído e belissimamente escrito, foca-se na ditadura de Rafael Leónidas Trujillo, regime que marcou a história da República Dominicana de 1930 a 1961. O modo como o escritor peruano ficciona a partir de uma realidade histórica agradou-me sobremaneira.
A história desenrola-se em torno de diferentes eixos narrativos: as memórias de Urania Cabral (filha de um político de destaque, caído em desgraça nos últimos tempos do regime), que revisita o país muitos anos depois de o abandonar; o assassinato do ditador (pelo olhar dos conspiradores que o organizaram) e a repressão que se lhe seguiu; a ação e pensamento de Trujillo (caracterizado como um homem inteligente, ardiloso, que se soube manter no poder à custa de violências várias e da imposição do medo).
Não será exatamente um livro político, embora também o seja. Neste romance, Llosa descreve magistralmente o exercício do poder e o servilismo dos acólitos do regime (até à abjeção, ao ponto de permitirem que o ditador se servisse sexualmente das mulheres), bem como o caráter assassino da repressão; de certo modo, pode dizer-se que o servilismo bem como a repressão, pesem embora todas as variações de grau e os particularismos, observam quase sempre as mesmas características. Uma das partes mais perturbadoras, ao ponto de causar repulsa, é a descrição das violências e das torturas.
Um livro excecional: eis como posso resumir esta obra. Para um futuro não muito distante reservo Conversa na Catedral.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

"Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline", de Timothy Snyder

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Uma coisa é gostar de ler livros de história, outra completamente diferente é ler bons livros de história. Se é certo que da maioria das obras historiográficas que vou lendo consigo retirar algum proveito, nem sempre a sua leitura é tão cativante (pese embora a densidade do tema) e recomendável como Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline, de Timothy Snyder.
O tema é, por si mesmo, bastante intenso (uma vez que trata de violência - mas também de ética, no seu sentido mais profundamente humano), o que pode justificar o interesse de muitos leitores; porém, mais do que isso, é um livro bem escrito, organizado e fundamentado, com opções claras e argumentos sólidos, utilizando e cruzando um vasto manancial informativo. Julgo que a historiografia anglo-saxónica tem, saudavelmente, a preocupação de ser interessante e relevante para o leitor comum, isto é, para o não especialista (para os estudiosos existem publicações próprias, nomeadamente as de âmbito académico, em que se discutem aspetos metodológicos, esquemas interpretativos, por vezes apenas questões de pormenor que não pesam no quadro geral, etc. - aspetos provavelmente fastidiosos para a maioria do público leitor).
Nesta obra Snyder trata das políticas de homicídios em massa deliberados dos regimes nazi e soviético, num período que vai dos inícios da década de 1930 até à morte de Estaline, em 1953. Assim, refere-se à política soviética que privou de alimentos e matou milhões de pessoas na Ucrânia, em 1932-33; ao fuzilamento pelos soviéticos de centenas de milhares de pessoas no Grande Terror, em 1937-38; ao assassinato de muitos milhares de polacos (sobretudo a elite cultura e política, bem como militares) por alemães e soviéticos aquando da ocupação da Polónia, em 1939-41; à privação de alimentos a (e consequente morte de) milhões de soviéticos pelas forças alemãs, em 1941-45; à eliminação (por fuzilamento ou gazeamento) de milhões de judeus pelos nazis, em 1941-45; ao assassinato de centenas de milhares de civis pelas forças alemãs em represálias várias.
Tendo lido recentemente outras obras do mesmo âmbito temático (*), achei particularmente interessante - aspeto que me é mais desconhecido - a abordagem dos assassínios em massa perpetrados pelo regime soviético. Ao ler sobre o modo como na URSS a informação era manipulada e totalmente desvirtuada para ir de encontro à "visão" de Estaline (o mesmo, não esqueçamos, ocorreu na Alemanha nazi), não pude deixar de me lembrar da obra de George Orwell, 1984 (**). O zelo (aterrorizante mas também aterrorizado) dos agentes do poder soviético na supressão daqueles que eram apodados de potenciais envolvidos em atos conspirativos ou de resistência à coletivização é arrepiante; o cinismo das acusações feitas aos camponeses famintos (a sua fome - provocada, sublinhe-se, pelo regime através da nacionalização da produção - foi vista por Estaline como uma "conspiração" para descredibilizar o regime!) é de uma imoralidade inaudita...
Terra Sangrenta é, não admiravelmente, um relato extremamente duro; algumas das suas descrições são perturbadoras, e mostram-nos até onde pode ir a crueldade e o sadismo, o desprezo e o ódio pelo outro (pela vida), a irracionalidade e, no fundo, a estupidez. Perturbadores, ainda que de modo diferente, são os números colossais de vítimas apresentados - a certo momento, quase se tornam abstratos (daí o alerta final do autor, referindo que cada número apresentado corresponde à sua multiplicação por um - referindo-se esse "um" a indivíduos singulares, com as suas histórias próprias, cujos percursos de foram vida interrompidos pela violência das políticas soviética e nazi). Em suma, dois regimes obcessivamente assassinos, com motivações e alvos algo diferentes, mas procedimentos igualmente brutais.
Termino esta apreciação apontando um ponto negativo (algo grosseiro, diga-se) deste livro: refiro-me à qualidade dos mapas, que podiam (deviam) incluir orientação (se bem que a sua ausência não constitua dificuldade de maior) e escala (a sua inexistência retira-lhes leitura).

(*) Nomeadamente as biografias da autoria de Ian Kershaw, Hitler, e  de Simon Montefiore, Estaline. A Corte do Czar Vermelho; as obras do jornalista e documentarista Laurence Rees, Auschwitz: Os Nazis e a Solução Final e Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente; e o livro de Daniel Jonah Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler. O Povo Alemão e o Holocausto.
(**) O facto de as autoridades soviéticas apelidarem os oficiais e quadros superiores polacos assassinados em 1940 (após a absorção do leste da Polónia pela URSS) de "ex-pessoas" é adotado na obra orweliana.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

"Obras completas de Sherlock Holmes" (6 vols.), de Arthur Conan Doyle

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Todas as emoções, particularmente o amor, incomodavam a sua mentalidade admiravelmente equilibrada e fria. Creio que era a mais perfeita máquina de raciocinar da Criação, mas, como namorado, ficaria numa posição falsa. Nunca falava das emoções sentimentais, a não ser por brincadeira e com desdém. Para um calculista como ele, admitir tais intrusões no seu delicado e ordenado temperamento, seria como admitir um fator de perturbação que poderia criar dúvidas nas suas conclusões. Um grão de areia num instrumento delicado não se tornaria mais deteriorante do que uma emoção forte numa natureza como a sua. (in "Um Escândalo na Boémia", vol. 4)
E eu sou cérebro, Watson. O resto da minha pessoa é um mero apêndice. (in "A Pedra Mazarino", vol. 5)
Se há personagem que me fascina é Sherlock Holmes, o detetive criado por Conan Doyle em finais do século XIX. O fascínio, que vem da adolescência, muito deve à excelente série televisiva dos anos oitenta e noventa (do século XX) protagonizada por Jeremy Brett (devo dizer, aliás, que, para mim, a identificação entre o personagem e o ator britânico é perfeita - nunca vi outra interpretação tão carismática quanto a de Brett). Daí que, de quando em quando, sabe bem regressar ao mundo da dupla Holmes e («- Elementar, meu caro...») Watson.
A obra completa de Sherlock Holmes é composta por quatro histórias longas e cinquenta e seis curtas (organizada em seis volumes na coleção "Vampiro Gigante") - perto de duas mil páginas! Muitas são as histórias memoráveis: "O Ritual Musgrave", "O Cão de Baskerville", "O Intérprete Grego", "O Signo dos Quatro", "Os Seis Napoleões", "O Vale do Terror", "O Detetive Agonizante", "Os Bonecos Bailarinos" - eis algumas das que mais gostei de reler. Mas, como já de certo modo deixei transparecer acima, mais do que os mistérios em si, gosto sobretudo do personagem principal, bem como do mundo descrito (anterior às técnicas policiais modernas - fotografia, impressões digitais, análise ao sangue, ADN, etc.).
Sherlock Holmes afirma-se como um detetive particular consultivo, profissão criada por si para aproveitar as suas superiores faculdades dedutivas. Ao longo dos seus casos, vai prestando auxílio às entidades policiais, mas não em busca de reconhecimento (este acontece posteriormente, por via dos relatos escritos pelo Doutor Watson) - a sua recompensa é o prazer em pôr em prática os seus dons (por outro lado, o seu cérebro revolta-se contra a inação, contra a monotonia rotineira da existência sem enigmas). Nunca se envolve na investigação de um caso por qualquer tipo de sentimentalismo ou empatia, mas apenas pelo desafio da descoberta da verdade através dos seus métodos dedutivos... Além disso, é autor de várias monografias de importância para o seu ofício (sobre tipos de tabaco e suas cinzas, sobre pegadas, sobre criptografia, etc.), bem assim como químico amador e executante de violino... 
O seu caráter, apesar de brilhante em termos intelectuais (ainda que considere supérfluo todo o conhecimento não diretamente ligado ao seu ofício - e daí assumir, com absoluta indiferença, desconhecer o heliocentrismo!), tem também alguns aspetos negativos: é irritável, algo sobranceiro (com bastante confiança nas suas capacidades, ainda que em vários momentos estas provem ser falíveis), por vezes arrogante, contundente em alguns momentos (tanto felicita Watson pelas suas histórias como as critica com acidez), fumador compulsivo (e até consumidor de substâncias psicoativas), um pouco misantropo (as suas relações sociais e pessoais são escassíssimas) e solitário. Num ou noutro caso, Holmes vê-se forçado a recorrer a atos ilegais, ainda que moralmente justificáveis (como é o caso do arrombamento do cofre de um chantagista inflexível para lhe destruir o espólio documental, de grande potencial destrutivo). Longe de lhe retirarem mérito (o que talvez fosse intenção do autor, uma vez que Doyle, autor extremamente prolixo, nem sempre teve uma relação fácil com o personagem que mais fama lhe granjeou), estes aspetos negativos acrescentam-lhe humanismo, aproximando-o mesmo do leitor, sempre pronto a desculpar-lhe as fraquezas e defeitos.
Um aspeto que me surpreendeu na releitura destas histórias foi a escassa presença de Moriarty, o "arqui-inimigo" de Sherlock Holmes e génio do crime. Sendo referido pela primeira vez em "O Vale do Terror", apenas participa como personagem em "O Problema Final" (história na qual Doyle, cansado do seu personagem, o faz morrer numa luta com Moriarty nas Cataratas de Reichenbach; a pressão do público, porém, fez com que o autor ressuscitasse Holmes em "A Casa Vazia", para mais umas quantas histórias); é referenciado em mais quatro narrativas, para além das três mencionadas. O seu irmão Mycroft, por sua vez, aparece apenas em duas histórias e referido noutras duas - pensava igualmente que este personagem aparecia em mais casos...
Apesar de toda a evolução das técnicas e metodologias policiais, esta obra, escrita de uma forma simples e muito direta, com muitos diálogos e bastante ação, ainda consegue encantar o leitor contemporâneo. Talvez por dependermos cada vez mais da tecnologia em todos os domínios da nossa vida, penso que a leitura destas histórias nos ajudam a valorizar o pensamento humano (por si só) e várias faculdades intelectuais (de observar, de interpretar, de especular, de imaginar), que talvez não devêssemos reservar (tão confiada e absolutamente) para os computadores...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"Artigo 22", de Joseph Heller

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O que posso escrever sobre Artigo 22 (ou Catch 22)? Que o li sem qualquer referência prévia, e, por isso mesmo, sem quaisquer preconceitos. Tanto o autor como este título (assumo a ignorância) me eram desconhecidos até há poucos dias. Se me agradou? Inicialmente sim; porém, aos poucos, o interesse foi-se diluindo...
Artigo 22, constituído por constantes avanços e recuos, repetições e mudanças de perspetiva, retrata um esquadrão de bombardeiros da Força Aérea dos Estados Unidos, sediado numa ilha ficcional do Mediterrâneo (Pianosa), durante o avanço aliado em Itália na Segunda Guerra Mundial. Ainda que a narrativa se centre no capitão John Yossarian (que permanentemente procura furtar-se ao perigo das missões aéreas), muitos são os personagens (com personalidades mais ou menos vincadas) que perpassam pelo livro - Milo Minderbinder, Coronel Cathcart, Doutor Daneeka, Capelão Tappman...
Este é um romance humorístico ou satírico, com muito (talvez demasiado) nonsense. Ao longo das suas páginas é clara a crítica ao excessivo formalismo militar (apresentado como sem sentido, ou obedecendo a princípios que nada têm que ver com os objetivos que se propõem servir), à burocracia pouco eficiente, à falta de equidade ou justiça de algumas decisões, à ganância e até imoralidade do capitalismo (personificadas em Milo que, absurdamente, obedecendo a um lógica meramente centrada no lucro, não se coíbe em fazer negócios com o inimigo). A questão da sanidade mental (ou a falta dela - ou ainda a insanidade inerente à própria guerra) anda sempre presente.
O que menos me agradou no livro, e que explica a minha perda de interesse ao longo do avanço no mesmo, é precisamente o tipo de humor, ou melhor,  o seu tom exagerado, patético, ou tendente à "piadinha" (por exemplo, o facto de Milo ser presidente de câmara de Palermo, califa de Bagdad, entre outras coisas... - em vez de acrescentar piada, a meu ver, retira-a). Outro aspeto que me desagradou prende-se com a evolução da história: esta, ainda que avance, desenvolve-se sempre num mesmo tom, morninho, morninho, sem conhecer um clímax...

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna", coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro

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O segundo volume da coleção "História da Vida Privada em Portugal", dirigida pelo eminente historiador José Mattoso, é coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro e foca a "vida privada" na Idade Moderna (nunca omitindo a dificuldade em distinguir o domínio privado do domínio público no passado - nem sempre o que hoje consideramos privado o foi no passado) . São abordados os principais espaços físicos e humanos da vida familiar, da sexualidade, da higiene, da convivialidade, da espiritualidade ou das práticas de escrita e de leitura.
Esta obra conta com textos de vários historiadores deste período, tais como Nuno Gonçalo Monteiro, António Manuel Hespanha, Joaquim Ramos de Carvalho, Isabel dos Guimarães Sá, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha, Fernanda Olival, entre outros.
Sendo esta uma obra coletiva, cada texto reflete as características (perspetivas, interesses e até modo de escrita) do(s) seu(s) autor(es), apresentando, assim, algumas variações; neste caso, porém, devo dizer que, de um modo geral, a obra é bastante equilibrada no que concerne tanto à estrutura como ao interesse de cada texto (mesmo que nem sempre a articulação entre textos seja perfeita, julgo que seria difícil conseguir fazê-lo melhor), pelo que a leitura deste livro se torna agradável tanto para os leitores já familiarizados com os temas históricos abordados como para os mais leigos.
É, pois, um livro que (tal como poderia dizer do primeiro volume da coleção, dedicado à Idade Média) considero muito recomendável.

domingo, 29 de setembro de 2013

"A Laranja Mecânica", de Anthony Burgess

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Uma melenque (que é como quem diz pequena) surpresa este A Laranja Mecânica, apesar de já conhecer a história através do magnífico filme de Stanley Kubrick. Em poucas palavras, esta obra - que encerra uma certa matiz distópica - aborda a violência (exercida de forma arbitrária e por prazer por grupos de jovens marginais), roçando também a problemática do castigo, do livre-arbítrio e da instrumentalização política. O humor, porém, anda sempre presente.
Se o filme (que aproveitei para rever) tem uma estética muito própria, que a meu ver potencia o enredo, o livro vai buscar uma certa originalidade pelo emprego de um vocabulário próprio (o "nadescente", a linguagem dos adolescentes). Se tal obriga, de início, a permanentes consultas ao glossário final, o leitor gradualmente assimila a maioria das dezenas de vocábulos. Devo dizer que, na minha perspetiva, a tradução de José Luandino Vieira é excelente.
Para finalizar, julgo que é um livro que termina de uma forma engraçada: se por um lado é um final fechado (o percurso de Alex, o personagem principal e narrador), por outro é um final aberto... É, pois, um horroróico livro...

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

"O Jogador", de Fedor Dostoievski

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Eis aqui - passe a expressão - uma boa aposta: a releitura de "O Jogador", novela do russo Dostoievski passada em Ruletemburgo. Alexei Ivanovich, preceptor de uma família praticamente arruinada da aristocracia russa, é o personagem principal e o narrador desta cativante história, que cruza amores e inimizades, intrigas e ambições, e - claro está - a vertigem da roleta. Polina, o general, a avó, Mr. Ashley, De Grillet, Madame Blanche, são outros dos marcantes personagens desta obra.
Que mais posso escrever? Uma obra que - longe de ser uma das mais elaboradas do autor - se lê com muito agrado, permitindo identificar o génio do seu autor...

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

"D. João V", de Maria Beatriz Nizza da Silva

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A décima primeira biografia da coleção "Reis de Portugal" que li incidiu sobre D. João V, figura algo controversa - ora tratado com antipatia (tem sido repetidamente caracterizado como "esbanjador", "beato", "megalómano"), ora com simpatia (em especial por aqueles que estudam as obras de arte patrocinadas nesse período).
Tal como noutras obras coletivas, a coleção "Reis de Portugal" apresenta textos muito desiguais. Isto acontece porque, por um lado, abordam períodos históricos muito diferentes (com grandes variações na quantidade e qualidade das fontes disponíveis); por outro lado, porque cada autor tem o seu próprio entendimento conceptual quanto ao labor biográfico (privilegiando determinadas metodologias e ângulos de abordagem em detrimento de outros); a acrescentar a isto, podemos ainda referir o aspeto formal, ou seja, tanto a estrutura das biografias, como a própria qualidade da escrita (se alguns autores conseguem - sem fugir ao rigor - alguma qualidade literária, outros não arriscam sair da escrita académica, desapaixonada e neutra). O resultado, como expectável, é um conjunto de textos com interesses muito diferentes.
Pessoalmente, não considero este D. João V, de Maria Beatriz Nizza da Silva, como um dos livros mais interessantes da coleção (considerando os até agora lidos). A obra está dividida em quatro partes (ou três, se excluirmos a primeira parte, que funciona como um curta introdução ao tema), bastante desiguais em termos de dimensão: a Parte II conta com 138 páginas, divididas  em 15 capítulos; a Parte III tem 54 páginas, e 12 capítulos; a Parte IV soma 76 páginas, divididos em 3 capítulos, o primeiro dos quais com 57 páginas (das quais 41 apenas sobre o Brasil) e o último com apenas 2. Não é, assim, um texto estruturalmente muito equilibrado - aspeto que apenas refiro porque foi notório na minha leitura do mesmo...
A autora decidiu abordar na Parte II ("D. João, Príncipe e Rei") os aspetos biográfico e contextuais, mas, na minha opinião, acaba por ser demasiado descritiva  (senti falta de mais espírito de síntese e de análise), talvez por seguir muito de perto uma fonte também ela descritiva - as gazetas (constantemente citadas e transcritas). Deste modo, relatam-se (por vezes com excessiva minúcia) cerimónias públicas várias, certos elementos decorativos, reflexos de acontecimentos nacionais no Rio de Janeiro, etc.; o anedótico (nem sempre referente a D. João V), o pormenor meramente ilustrativo e o puramente periférico abundam nestas páginas, e há mesmo um capítulo caracteristicamente generalista intitulado "Como se divertia a nobreza". A terceira parte ("Administração e Funcionamento das Instituições") consegue ser um pouco mais interessante, na medida em que se pretende mostrar como o rei tomava as suas decisões. A última parte, refere-se às "Políticas Régias", dando-se, como já se disse, um enorme destaque aos assuntos coloniais.
Concluo esta breve apreciação com uma última nota: compreendo que certos reis sejam complicados de estudar (ou porque aparecem de fugida nas escassas fontes, ou porque demasiado disfarçados na "regra" - isto é, numa imagem pública intencionalmente manipulada -, etc.), mas tenho mais dificuldade em entender quando os aspetos contextuais se sobrepõem de uma forma esmagadora ao biografado. Bem sei - já o notara noutros textos desta coleção - que alguns autores entendem a biografia de um rei quase exclusivamente como a "biografia de um reinado", mas do meu ponto de vista isso, de certo modo, acaba por afastar os leitores não académicos...

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

"Noites Brancas - romance sentimental das memórias de um sonhador", de Fedor Dostoievski

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Eis uma obra que marcou uma certa fase da minha vida: Noites Brancas, "romance sentimental". Se não estou em erro, li esta novela (conjuntamente com O Jogador) antes de me lançar na descoberta das obras maiores de Dostoievski (antes também, portanto, de colocar este autor no meu "panteão" literário).
De que trata esta curta obra, escrita por Dostoievski antes de atingir os 30 anos? Trata do "sonhador", encarnado pelo narrador e personagem principal, um solitário com bom coração que ama deambular pela sua São Petersburgo enquanto observa os outros e lhes adivinha as vidas; um jovem excessivamente delicado, bastante ingénuo, sem qualquer sentido de ridículo, pouco adaptado à urbanidade pragmática das relações sociais; um caráter exageradamente honesto e sincero, propenso a descarregar o coração, em partilhar os seus sentimentos sem proceder a qualquer filtragem («Quando o meu coração fala, não sei calar-me»), disposto a sacrificar-se pelo outro; em suma: um ser "genuíno" (mas também, por isso mesmo, um ser exótico, inadaptado).
O encontro com Nástenka, uma jovem de dezassete anos, vai funcionar como o culminar da vida do nosso herói (esse encontro era há muito sonhado, desejado, esperado), mas igualmente como o abrir de novas perspetivas (anteriormente insuspeitadas ou tidas por impossíveis)... O destino dos dois personagens principais é baralhado - ainda que de formas díspares - pela presença do amor...
Dostoievski não é um autor romântico (no sentido literário e/ou estético do termo), mas em Noites Brancas o autor emprega magistralmente todos os tiques do sentimentalismo romântico (pense-se por exemplo no discurso expressivo e carregado de emotividade do narrador que, como nota Nástenka, fala de forma bela, "como quem lê um livro em voz alta"...); em certas passagens, porém, parece ridicularizar o exagero lamechas dos românticos («Vou sonhar contigo toda a noite, toda a semana, um ano inteiro»)...
Um livro que, mesmo se menor dentro do conjunto da obra do autor russo, ainda me encanta...

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

"Uma Agulha no Palheiro", de J. D. Salinger

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"Uma Agulha no Palheiro", de J. D. Salinger, é um livro que, sem ser nenhuma maravilha literária, se lê muito bem. A escrita é acessível e agradável (porque concreta e centrada na ação, pontuada por frases curtas e muitos diálogos), e coaduna-se bem com as características do narrador-personagem principal.
Acabado de ser excluído do colégio onde era interno, Holden Cauldfield, jovem de dezassete anos, passa três dias deambulando por Nova Iorque. Se com isto adia o reencontro com os pais, Holden não gosta de estar só, procurando o contacto com conhecidos e desconhecidos. A juventude, a confusão e uma certa imaturidade são notórias no discurso do personagem - às vozes "sensatas" dos adultos (relativamente ao seu percurso escolar, ao seu futuro), Holden contrapõe a sua visão descentrada de qualquer propósito ou objetivo e até, por vezes, amarga, desencantada...

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

"1984", de George Orwell

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GUERRA É PAZ / LIBERDADE É ESCRAVIDÃO / IGNORÂNCIA É FORÇA (in 1984, G. Orwell)

Publicado em 1949, 1984 é um livro icónico: nele George Orwell captou milimetricamente os principais tiques das sociedade totalitárias suas contemporâneas (não sendo, portanto, de admirar a referência aos casos nazi e soviético): o controlo total da sociedade pelo Partido (detentor absoluto do Poder e da Verdade - e, por consequência, da vida de cada um); a inexistência das liberdades básicas e a de despersonificação total do indivíduo (o pensamento individual e crítico e a sua expressão são condenados; pretende-se que cada um seja submisso e manipulável); a propaganda e o controlo da informação (impossível de verificar pela inexistência de liberdade); a doutrinação dos mais jovens (os mais cegos seguidores do Partido, condicionados desde cedo à observância e defesa dos princípios doutrinários); o fomento do ódio direcionado (contra os "inimigos", mas também contra todo e qualquer - por mínimo que seja - sinal de heterodoxia); etc.
Na realidade concebida por Orwell os ministérios tomam nomes curiosos: os assuntos económicos são da responsabilidade do Ministério da Riqueza (mesmo que a maioria da população seja propositadamente mantida na pobreza); a guerra é controlada pelo Ministério da Paz (!); o Ministério da Verdade trata da propaganda (uma mentira repetida muitas vezes...); o policiamento e a vigilância são tutelados pelo Ministério do Amor (e pela sua Polícia do Pensamento).
Devo dizer que achei particularmente inquietante é a ideia de falsificação e manipulação da história («Quem controla o passado», dizia a palavra de ordem do Partido, «controla o futuro»; quem controla o presente controla o passado»): se o país está agora em guerra com outro, significa que sempre com ele esteve em guerra (pelo que urge "corrigir" todos os documentos em que se diga o contrário). É uma ideia particularmente perturbadora, se tivermos em conta certos episódios da história do século XX (em que se tentou destruir os indícios para impossibilitar ou falsificar a história...). Igualmente inquietante a ideia dos filhos aprenderem a vigiar os pais - e mesmo, pela fragilização dos laços afetivos, a denunciá-los como heterodoxos...
1984 é a mais sistemática e perturbadora de todas as distopias que já li - recordo, por exemplo, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953). Esta obra pode ter uma leitura mais contemporânea (aumentando assim a perturbação): pense-se na facilidade de se forjar falsificações na Internet (seja atribuindo poemas literariamente medíocres e de autoajuda a um poeta como Fernando Pessoa, seja reinventando ou simplificando interpretativamente a história num artigo de uma enciclopédia online, ou inventando as mais fantasiosas teorias da conspiração) ou nas possibilidades de "vigilância" constante a que nos sujeitamos (quer pelo que publicamos nas redes sociais, pelo rasto informático que deixamos, pelas câmaras que nos filmam nos locais mais díspares, etc.)...

sábado, 17 de agosto de 2013

"Retrato do Artista Quando Jovem", de James Joyce

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Publicado originalmente entre 1914 e 1915, Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce, trata do percurso de busca e formação de identidade de Stephen (ou Estevão, na tradução lida) Dedalus – personagem que aparecerá na obra maior do autor, Ulisses, recentemente lido.
Assim, ao longo das páginas desta obra acompanhamos a infância, adolescência e a entrada na vida adulta de Stephen, educado em instituições jesuítas. Paralelamente à evolução da escrita de capítulo para capítulo (em crescendo), o leitor é confrontado com o desenvolvimento e amadurecimento do personagem principal, tanto a nível moral como intelectual, tendo como pano de fundo todo o ideário tradicional católico (leiam-se, por exemplo, os excertos extremamente escolásticos sobre as consequências infernais do pecado). À queda do personagem principal segue-se o sentimento de culpa e o medo (fortemente interiorizados ao longo dos anos); à expiação segue-se a consciencialização do caráter artificial (e eventualmente vazio, mecânico) do ritual; por fim, à indiferença segue-se a libertação mas também a descrença (não só na religião, mas em valores com a família ou a nação – num contexto, atente-se, de luta pela independência irlandesa), a desilusão e consequentemente a solidão (do artista).
Retrato do Artista Quando Jovem fez-me lembrar, em certas passagens e por diversos motivos, outros livros – O Jovem Törless, de Robert Musil (pelo ambiente colegial em que a ação decorre); O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz (pela discussão sobre o papel tradicional da religião católica (e seus agentes) na sociedade de finais do século XIX, inícios do século XX); Crime e Castigo, de Fedor Dostoievski (sobretudo em certos momentos de matiz mais psicológica, em que pecado e culpa são os motores da narrativa).
Tendo gostado bastante deste livro, tenho que dizer que, embora bem articulado com os restantes (em termos da lógica da história), achei faltar alguma intensidade ao último capítulo. Ainda assim, o Stephen que vemos formado no último capítulo é congruente com o que acompanhamos em Ulisses.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"Pena Capital", de Mário Cesariny

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"Pena Capital", de Mário Cesariny, para muitos considerado o melhor livro do poeta, reúne textos escritos entre 1948 e 1976 (à exceção de um curto poema de 1942). Não sei avaliar se se trata do melhor livro do autor, mas seguramente é um dos que prefiro.
De novo, tal como em "Nobilíssima Visão", o humor e a ironia (caracterizados pela blague e jogos de palavras), conjugados com um nonsense de tonalidade surrealista, são constantes no conjuntos de poemas deste livro. Notória é também a faceta de polemista de Cesaniny (que talvez chegue a tocar o escárnio e maldizer) de alguns dos seus poemas.
Um livro que, contendo alguns poemas (já) clássicos da poesia portuguesa, se lê com muito agrado - direi mesmo (e que melhor elogio a um livro?) que consegue surpreender o leitor a cada releitura...

domingo, 11 de agosto de 2013

"Na Penúria em Paris e em Londres", de George Orwell

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Em "Na Penúria em Paris e em Londres", George Orwell descreve a pobreza (a luta por um trabalho - mesmo que pesado e mal remunerado -, por alimentos, por um abrigo para passar a noite), conjugando um tom documental com a ficção literária. Certo é que nos anos anteriores à publicação deste livro (1933), o autor britânico contactou com o mundo dos pobres, dos vagabundos, dos miseráveis - pelo que alguns dos episódios descritos possam ter sido efetivamente vivenciados. Talvez isso explique a visão extremamente humanista do relato (que alterna episódios comoventes e momentos de um certo humor), que faz eco das preocupações e anseios diários de quem pouco ou nada de seu possui, sem fazer juízos apressados.
O seu caráter narrativo (que por vezes se aproxima da reportagem ou até do livro de viagens) torna a leitura desta obra bastante simples (talvez até, devo dizê-lo, um pouco simples demais); julgo que, apesar de lhe reconhecer um certo interesse, literariamente não é dos livros mais conseguidos do autor. Em breve, planeio reler "1984".

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

"Pensar o Século XX", de Tony Judt (com Timothy Snyder)

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«Este livro é história, biografia e tratado ético», escreveu Timothy Snyder na primeira linha do prefácio de "Pensar o Século XX".
Na realidade, esta obra reflete uma "longa conversa" ocorrida entre Tony Judt (autor de "Pós-Guerra") e Timothy Snyder. Assim que este se apercebeu que a doença degenerativa de Tony Judt (esclerose lateral amiotrófica) lhe retirara a capacidade de fazer uso das mãos e, portanto, de escrever, lançou-se neste projeto.
Ao longo das suas páginas, os dois historiadores discutem vários temas de história do século XX (os intelectuais, o comunismo e os fascismos, as duas Guerras Mundiais, a Guerra Fria, a social-democracia, etc.) mas também da atualidade (nomeadamente alguns aspetos da política americana), e refletem sobre a história enquanto domínio do saber. Achei bastante interessantes os apontamentos autobiográficos de Tony Judt no início de cada capítulo: aí o autor fala do seu percurso formativo, da sua entrada na vida académica, da evolução do seu pensamento e dos seus interesses historiográficos.
Procurarei, quando me for possível, ler "Pós-Guerra"...

terça-feira, 6 de agosto de 2013

"A faca não corta o fogo", de Herberto Helder

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Depois do último livro de Herberto Helder, decidi reler-lhe a restante obra. Iniciei essa tarefa pelo início (através de "Ou o Poema Contínuo" - em leitura) mas simultaneamente pelo fim (por via de "A faca não corta o fogo" - hoje terminado). Este último livro, além das dezenas de poemas inéditos, inclui uma "súmula" - uma escolha de poemas do conjunto da obra herbertiana (poemas que, diga-se, valem por eles mesmos, fora dos seus contextos ou sequências originais). Uma obra que, pela força da poesia do autor, vale mesmo a pena ler.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

"A Queda de Roma e o Fim da Civilização", de Bryan Ward-Perkins

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Existe inevitavelmente uma estreita relação entre a forma como vemos o nosso mundo e a forma como interpretamos o passado. Por exemplo, existe por certo uma ligação entre as interpretações dos invasores germânicos como principalmente pacíficos e o sucesso notável (e merecido) que a Alemanha moderna alcançou na construção de uma identidade nova e positiva no seio da Europa, depois dos anos desastrosos do nazismo. As imagens dos povos germânicos do século V e da sua ocupação do Império do Ocidente mudaram drasticamente desde a Segunda Guerra Mundial, tal como se alteraram as ideias sobre os alemães modernos e o seu papel na nova Europa. (in B. Ward-Perkins, A Queda de Roma e o Fim da Civilização)
Nova releitura: desta vez "A Queda de Roma e o Fim da Civilização", de Bryan Ward-Perkins, livro que comprei quando saiu, por tratar um tema que me interessa bastante - o fim do Império Romano do Ocidente.
A perspetiva do autor choca com a visão atenuada ou suavizada das invasões germânicas (ou "bárbaras" - repare-se que a exclusão deste termo, por encerrar em si uma certa conotação negativa, já significa uma amenização) ocorridas no século V, visão essa que vem sendo sustentada por vários estudiosos nas últimas décadas.
Ward-Perkins defende que, ao cair Roma, desapareceu uma civilização (apesar de admitir que tal termo possa encerrar um sentido de "superioridade moral", o autor prefere utilizar este a outros mais neutros, é certos, mas talvez por isso mesmo menos expressivos); é, pois, contrário à perspetiva que postula uma mera "transformação do mundo romano" (uma evolução, sem rutura), isto é, um processo gradual de integração dos povos germânicos, ou - no fundo - apenas uma migração de povos que implicou várias trocas culturais (visão "politicamente correta", eventualmente mais neutra e confortável para certos países europeus).
As invasões germânicas, segundo o autor, foram inegavelmente violentas e, por isso mesmo, tiveram um forte impacto nas populações que viviam no império; a fixação dos povos invasores, longe de ter sido somente uma "acomodação", implicou a perda de terra pelos povos invadidos e acarretou um conjunto vasto de consequências, tais como o desaparecimento do conforto (por exemplo, a telha deixou de ser utilizada nos telhados dos edifícios pós-romanos; pense-se também no desaparecimento dos esgotos nas cidades), da sofisticação (a cerâmica estandardizada de alta qualidade passou a ser um exceção - e não, como antes, comum; por outro lado, a utilização da moeda perdeu importância nas trocas), da distribuição (se antes existia uma eficaz rede de distribuição que ligava vários pontos do império, tornando um vasto conjunto de produtos acessível aos consumidores humildes, esta - com as invasões - deixou de ser melhorada e reparada), e de indústrias inteiras.
Com estes indícios, Ward-Perkins julga poder falar-se com propriedade em declínio ou mesmo fim da civilização romana. Os argumentos parecem-me, de facto, bastante válidos.

domingo, 21 de julho de 2013

"Nobilíssima Visão", de Mário Cesariny de Vasconcelos

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"Nobilíssima Visão", de Mário Cesariny, foi um livro marcante no meu percurso de leitor de poesia. Até me iniciar em autores mais contemporâneos (digamos "pós-pessoanos"), andara a descobrir a poesia portuguesa (mais) "clássica" - Camões, Antero, Cesário, Sá-Carneiro, Pessoa & Co., etc. Quando li pela primeira vez este livro, pouco conhecia sobre o autor ou sobre o surrealismo português (e outros movimentos coetâneos). Na altura achei sobretudo graça à linguagem de Cesariny (o uso da ironia e da sátira, da rima patética, de imagens caricatas) na sua crítica à sociedade e ao regime político de meados do século XX.
Decidi há dias regressar à poesia de Cesariny, mas desta vez com um pouco mais de conhecimentos, além de leituras (p.f., não tomar isto como presunção). Foi, pois, com agrado que reencontrei o humor (presente, por exemplo, no poema "Pastelaria") e a mordacidade que já antes apreciara neste autor («De forma que entrar nas tuas pernas / foi como entrar num Tribunal de Contas»).
Os textos reunidos neste livro foram escritos em 1945-46, antes de o autor se render ao surrealismo (relembre-se que o autor foi um dos introdutores deste movimento em Portugal, após a sua passagem por França e contactos com André Breton), pelo que não é de estranhar o pendor social de alguns poemas, próximos mesmo da estética neorrealista (que posteriormente criticou e rejeitou) - neles se evocam os operários e os desfavorecidos, e criticam-se os capitalistas e burgueses. Este livro inclui também "Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (fragmento)", poema que evoca e reinventa o estilo presente nas odes desse heterónimo pessoano (atente-se nos inícios dos anos 40 a Ática iniciou, pelas mãos de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor, a edição sistemática da obra de Fernando Pessoa, o que se traduziu numa melhor compreensão da dimensão do poeta); na nota de autor à primeira edição, Cesariny assume-o, porém, como «coisa em que cada um só deve cair uma vez». "Um Auto para Jerusalém" fecha o volume: trata-se de um texto dramático que critica, com muito humor, o Estado policial da ditadura, a injustiça social existente mas também a apatia dos intelectuais.
Segue-se a redescoberta, nos próximos dias, de "Pena Capital"...

quinta-feira, 18 de julho de 2013

"Ulisses", de James Joyce

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Em Espanha, tende a relativizar-se a importância do escritor irlandês e até se converteu num monstruoso lugar-comum vangloriar-se de não ter lido Ulysses e, ainda por cima, dizer que é um livro incompreensível e aborrecido. (in E. Vila-Matas, Dublinesca)

Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? (in J. Joyce, Ulisses)
Descobrir a pólvora. Utilizamos esta expressão quando queremos frisar que uma qualquer descoberta é, afinal, uma não descoberta (por se tratar de uma coisa perfeitamente conhecida ou óbvia). Ainda assim, vou deixar escrito (“- Verba volant, scripta manent”) que “Ulisses”, de James Joyce, foi uma das grandes descobertas literárias da minha vida - não que me fosse desconhecido esse livro, de resto, tão célebre, mas só agora o li. Célebre porquê? Pelas piores razões: por ser um livro sem história, extremamente difícil, intragável ou talvez mesmo impossível de ler, que alguns acusam de intelectual em excesso, pretensioso, fraudulento… Ou, enfim, maçador, desagradável, detestável (mas até a má publicidade pode servir positivamente aquilo que publicita – neste caso, gerar curiosidade, interesse).
Ora eu gostei de “Ulisses”. Gostei? Mais do que isso: adorei (“- Gostos não se discutem”;  “- Muito pelo contrário, meu caro, senhor, muito pelo contrário…”;  “- Afinal o que importa não é a literatura, nem a crítica de arte, nem a câmara escura”; “- Bem sei, bem sei… Não será mais importante conhecer o porquê de se gostar daquilo de que se gosta?”; etc., etc.). Caso raro: ao chegar às suas últimas páginas já pensava em releitura (nota para mim mesmo: ler uma tradução alternativa – mas acerca de traduções se fala mais abaixo). Consegui entender (assim o julgo) porque é considerado uma obra-prima da literatura (porque de facto é uma obra-prima); mas também entendi porque tantos não o conseguem compreender, e até o rejeitam apresentando mil e uma razões (João César Monteiro reagindo às críticas feitas ao seu filme, "Branca de Neve”, durante a sua estreia: “-Queriam novela?”).
Ler esta obra é um desafio. A proclamada exigência do livro estimulou-me a tentar vencer o obstáculo (qual Ulisses? – i.e., o livro proporciona ao leitor desempenhar, por umas centenas de páginas, o papel de herói). É inegavelmente um livro exigente que, para além da sua linguagem cheia de trocadilhos, termos aglutinados e neologismos (ex: contransmagnificandjudeibumbatancialidade), conta com um capítulo (o terceiro, ainda que na minha edição não haja qualquer separação entre capítulos) que pode servir – pela sua subjetividade e abstração, pela deambulação no interior dos pensamentos de Stephen Dedalus – como um desincentivo à continuação (e quem desiste entretanto não chega a conhecer essa tão interessante figura que é Leopold Bloom, o nosso herói-Ulisses). Não esmorecer: o livro reserva-nos imensas surpresas (e algum humor) nas páginas subsequentes.
Uma infinidade de referências (históricas, geográficas, literárias) caracteriza “Ulisses”. Tal riqueza constitui uma das dificuldades do livro: é impossível (a não ser que se lesse uma edição crítica – mas até que ponto é que o academismo de tal edição não obstaculizaria o prazer da leitura?) seguir todas as referências presentes nas suas páginas; mesmo quem decifra muitas dessas referências, dificilmente decifrará todas (isso equivaleria a reproduzir o que se passou no interior da cabeça de James Joyce, enquanto a obra era concebida). Será necessário entender tudo? Bem, julgo que não; julgo mesmo que a intenção do autor era impossibilitar essa pretensão de totalidade (só Joyce, repito, possuiria todas as chaves – Xaves?), criando assim uma obra-mais-que-todas-as-outras múltipla (pela multiplicidade de compreensões – e incompreensões - possíveis).
Outro aspeto que pode atrapalhar o leitor é a diversidade expressiva: cada capítulo é estilisticamente diferente (há, por exemplo, um capítulo escrito como se fosse uma peça de teatro, de coloração onírica, surrealista, talvez até psicótica; outro capítulo é construído pela alternância entre perguntas e respostas, como os antigos manuais de civilidade). Mas parte da riqueza e extrema originalidade desta obra não assentará nesta diversidade (mesmo que esta possa ter algo de fanfarronice ou blague)?
A tradução que segui, de António Houaiss, é considerada “clássica”. Porém, na minha perspetiva, a sua leitura pelos leitores portugueses pode acarretar um manancial acrescido de dificuldades – dou como exemplo a existência de uma série de termos e expressões que, no Português de Portugal, são desconhecidas ou têm um sentido diferente. Sendo sem dúvida uma obra muito árdua de traduzir (Joyce utiliza frequentemente trocadilhos e jogos de palavras, quase impossíveis de fazer funcionar noutra língua que não a original), Houaiss tomou as suas opções sem as explicar (talvez para não carregar o livro com notas de rodapé), o que nem sempre joga a favor do leitor (mantido assim às escuras). Futuramente, até para poder comparar, conto reler o livro na tradução de João Palma-Ferreira (que eu saiba a única existente em português europeu).
Quanto à história, podemos sintetizá-la numa frase: trata das peripécias vividas por Leopold Bloom (a par de uma imensidade de outros personagens) no dia 16 de Junho de 1904 (note-se que o livro do autor irlandês é tão paradigmático, que nesse país se instituiu um feriado em sua homenagem – o Bloomsday, comemorado no citado dia), desde que sai de casa pela manhã até ao seu regresso. Claro que o livro é muito, mas mesmo muito, mais do que isto. Joyce conseguiu condensar em menos de vinte e quatro horas todo um mundo.
Uma obra-prima. Um livro ímpar, de uma originalidade única. Apenas um livro escrito para os críticos, como o acusam alguns, e não para os leitores comuns? (Mas o que raio são os leitores comuns? Ou querem fazer-me crer que os leitores comuns equivalem a pessoas com uma inultrapassável modorra intelectual, incapazes de experimentar coisas diferentes ou de ser surpreendidos?). Antes sim um livro escrito para todos nós, humanos, seres mais ou menos profundos e quase totalmente insondáveis, diferentes, falsamente “campeões em tudo” (cft. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”) ou mesmo frágeis. Uma odisseia que (nunca com outro livro tal me acontecera) me fez pesquisar para ver mais longe – não tanto para entender ou dissecar a obra, mas para medir até que ponto é que as minhas impressões tinham fundamento. Um livro que me ajuda a explicar a mim mesmo a razão de gostar tanto de ler.