quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"A Construção de Luís XIV", de Peter Burke

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A Construção de Luís XIV, de Peter Burke, não se trata de uma biografia do monarca absoluto que reinou em França de 1643 (a subida ao trono fez-se com 4 anos) a 1715; é antes um estudo sobre a construção da imagem pública do rei, construída ao longo do seu reinado. Refira-se que esta obra conta com quase uma centena de figuras, que não só ilustram como também ajudam a suportar as ideias explanadas.
A imagem régia (a forma como o rei era representado) foi objeto de grande cuidado no reinado de Luís XIV: houve claramente a preocupação em propagandear a figura do rei (de um modo positivo, mostrando a sua glória, esplendor, opulência, grandeza, poder) e, desta forma, manipular a opinião pública (ganhando a sua obediência, o seu respeito, a sua admiração). Procurando evitar anacronismos, Burke não deixa de comparar este cuidado com a propaganda dos políticos contemporâneos (o cuidados com a imagem, a cargo de gabinetes especializados).
O livro aborda, assim, as representações de Luís XIV nas artes plásticas (sobretudo pintura, escultura, arquitetura) e performativas (teatro, bailado, música), na medalhística, na literatura; refere-se também ao cerimonial montado (encenado) em torno da figura do rei. Estes foram os meios utilizados para acrescentar significado simbólico à figura e aos gestos de Luís XIV, procurando criar-se assim uma espécie de "mito": o rei como heroico, invencível, omnisciente, divino, enfim, como "Rei-Sol". A associação (identificação alegórica) a figuras heroicas e/ou ligadas ao passado de França (como Alexandre o Grande, Augusto, Clóvis, Carlos Magno, São Luís - o rei medieval francês Luís IX -, etc.) foi outra das estratégias utilizadas.
Claro que é possível interpretar esta "construção" de várias formas. À partida Burke rejeita a visão cínica (que postula que a glorificação do rei consiste num esforço de tentar convencer os outros de algo em que se não acredita, ou então como a mera expressão de aduladores e oportunistas, que apelava à vaidade ou mesmo megalomania régia), mas também a visão inocente (que defende que as representações do rei serviam o propósito benigno de instruir as pessoas e de encorajá-las a amar o seu soberano); na sua perspetiva, o equilíbrio está na visão intermédia, isto é, em não tomar todas as representações por maquiavelismo ou fraude, nem aceitar a total benevolência dos propósitos régios. Se nas sociedades democráticas atuais há uma tendência a associar o elogio à bajulação ou ao servilismo, no Antigo Regime a pompa (colocada, por exemplo, nos discursos sobre o rei) era considerada elevada (a utilização de imagens da mitologia, o uso de certas metáforas, etc.) e elegante - ou seja, nos séculos XVII e XVIII lisonjear não significava necessariamente mentir, podendo ser antes a obediência a critérios estéticos, de convivialidade e sociabilidade.
Nesta obra o autor não se esquece de evidenciar a existência de imagens depreciativas do rei (pela associação a figuras históricas de conotação negativa, pelo apontar de um sem número de defeitos - ambição, falta de escrúpulos, tirania, vaidade, etc. -, pela paródia, ou pela simples maledicência), imagens essas que obedeceriam a um programa próprio. Usando pseudónimos e permanecendo anónimos, os autores destas imagens (fossem eles naturais de países "inimigos" ou huguenotes que haviam fugido de França aquando da revogação do Édito de Nantes) usam, basicamente, os mesmos meios de comunicação e os mesmos modelos dos autores das representações oficiais.
Talvez o ponto mais frágil do livro (porque de mais difícil resposta, como aliás o reconhece Burke) esteja na tentativa de avaliar a forma como foram recebidas as imagens (positivas e negativas) de Luís XIV. Atendendo que não foram utilizados (dado que ainda não existiam) "meios de comunicação de massas", as representações régias não visavam um qualquer "grande público"; ainda que algumas formas de expressão atingissem muitas pessoas (por exemplo, as esculturas expostas em praças públicas, a encenação das entradas reais, etc.), a imagem do rei era sobretudo veiculada para a posteridade (os vindouros julgariam as ações do rei - e daí a preocupação em utilizar materiais resistentes ou em encontrar historiadores que redigissem a "história oficial"), para as elites cultas (os cortesãos, a nobreza e a burguesia parisiense - isto é, aqueles que assistiam às cerimónias, rituais e espetáculos da corte, aos que sabiam interpretar as inscrições latinas dos monumentos e os símbolos neles presentes) e para os olhares dos estrangeiros (os embaixadores eram presença habitual na corte, pelo que eram recetores da mensagem de grandeza do monarca; além disso, algumas das obras laudatórias eram traduzidas para outras línguas, que não o francês ou o latim). De tudo isto resulta que a avaliação do real impacto das imagens de Luís assenta em testemunhos individuais - logo, parcelares. Ainda assim, é possível constatar que o modelo francês de (auto) representação foi seguido por outras monarquias, o que por si só é significativo.
Em suma, um livro com algum interesse, embora, deva confessar, ficou um tanto aquém das minhas espectativas - é o que dá partir para a leitura com a ideia de se tratar de uma obra "clássica" no domínio da historiografia. Julgo que a abordagem é original, mas o texto acaba por ser um pouco descritivo - esperava ver uma maior profundidade analítica. Um último aspeto não pode ser omitido desta nota de leitura: é inegável que a existência de um número significativo de gralhas, que podiam facilmente ter sido evitadas com um trabalho mais cuidadoso de revisão, perturba a leitura desta obra, facto que é contrabalançado pela clareza da escrita do autor.

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