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Em Espanha, tende a relativizar-se a importância do escritor irlandês e até se converteu num monstruoso lugar-comum vangloriar-se de não ter lido Ulysses e, ainda por cima, dizer que é um livro incompreensível e aborrecido. (in E. Vila-Matas, Dublinesca)Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? (in J. Joyce, Ulisses)
Descobrir a
pólvora. Utilizamos esta expressão quando queremos frisar que uma qualquer
descoberta é, afinal, uma não descoberta (por se tratar de uma coisa perfeitamente
conhecida ou óbvia). Ainda assim, vou deixar escrito (“- Verba volant, scripta manent”) que “Ulisses”, de James Joyce, foi
uma das grandes descobertas literárias da minha vida - não que me fosse
desconhecido esse livro, de resto, tão célebre, mas só agora o li. Célebre
porquê? Pelas piores razões: por ser um livro sem história, extremamente
difícil, intragável ou talvez mesmo impossível de ler, que alguns acusam de
intelectual em excesso, pretensioso, fraudulento… Ou, enfim, maçador,
desagradável, detestável (mas até a má publicidade pode servir positivamente
aquilo que publicita – neste caso, gerar curiosidade, interesse).
Ora eu gostei
de “Ulisses”. Gostei? Mais do que isso: adorei (“- Gostos não se discutem”; “- Muito pelo contrário, meu caro, senhor, muito
pelo contrário…”; “- Afinal o que importa não é a literatura, nem
a crítica de arte, nem a câmara escura”; “- Bem sei, bem sei… Não será mais importante conhecer o porquê de se
gostar daquilo de que se gosta?”; etc., etc.). Caso raro: ao chegar às suas
últimas páginas já pensava em releitura (nota
para mim mesmo: ler uma tradução alternativa – mas acerca de traduções se fala
mais abaixo). Consegui entender (assim o julgo) porque é considerado uma
obra-prima da literatura (porque de facto é
uma obra-prima); mas também entendi porque tantos não o conseguem compreender,
e até o rejeitam apresentando mil e uma razões (João César Monteiro reagindo às
críticas feitas ao seu filme, "Branca de Neve”, durante a sua estreia: “-Queriam novela?”).
Ler esta obra é
um desafio. A proclamada exigência do livro estimulou-me a tentar vencer o obstáculo (qual Ulisses? – i.e., o livro
proporciona ao leitor desempenhar, por umas centenas de páginas, o papel de
herói). É inegavelmente um livro exigente que, para além da sua linguagem cheia
de trocadilhos, termos aglutinados e neologismos (ex: contransmagnificandjudeibumbatancialidade), conta com um capítulo
(o terceiro, ainda que na minha edição não haja qualquer separação entre
capítulos) que pode servir – pela sua subjetividade e abstração, pela
deambulação no interior dos pensamentos de Stephen Dedalus – como um
desincentivo à continuação (e quem desiste entretanto não chega a conhecer essa
tão interessante figura que é Leopold Bloom, o nosso herói-Ulisses). Não
esmorecer: o livro reserva-nos imensas surpresas (e algum humor) nas páginas
subsequentes.
Uma infinidade
de referências (históricas, geográficas, literárias) caracteriza “Ulisses”. Tal
riqueza constitui uma das dificuldades do livro: é impossível (a não ser que se
lesse uma edição crítica – mas até que ponto é que o academismo de tal edição
não obstaculizaria o prazer da leitura?) seguir todas as referências presentes
nas suas páginas; mesmo quem decifra muitas dessas referências, dificilmente decifrará
todas (isso equivaleria a reproduzir o que se passou no interior da cabeça de
James Joyce, enquanto a obra era concebida). Será necessário entender tudo?
Bem, julgo que não; julgo mesmo que a intenção do autor era impossibilitar essa
pretensão de totalidade (só Joyce, repito, possuiria todas as chaves – Xaves?), criando assim uma obra-mais-que-todas-as-outras
múltipla (pela multiplicidade de compreensões – e incompreensões - possíveis).
Outro aspeto
que pode atrapalhar o leitor é a diversidade expressiva: cada capítulo é
estilisticamente diferente (há, por exemplo, um capítulo escrito como se fosse
uma peça de teatro, de coloração onírica, surrealista, talvez até psicótica;
outro capítulo é construído pela alternância entre perguntas e respostas, como
os antigos manuais de civilidade). Mas parte da riqueza e extrema originalidade
desta obra não assentará nesta diversidade (mesmo que esta possa ter algo de
fanfarronice ou blague)?
A tradução que
segui, de António Houaiss, é considerada “clássica”. Porém, na minha
perspetiva, a sua leitura pelos leitores portugueses pode acarretar um manancial
acrescido de dificuldades – dou como exemplo a existência de uma série de
termos e expressões que, no Português de Portugal, são desconhecidas ou têm um
sentido diferente. Sendo sem dúvida uma obra muito árdua de traduzir (Joyce
utiliza frequentemente trocadilhos e jogos de palavras, quase impossíveis de fazer
funcionar noutra língua que não a original), Houaiss tomou as suas opções sem
as explicar (talvez para não carregar o livro com notas de rodapé), o que nem
sempre joga a favor do leitor (mantido assim às escuras). Futuramente, até para
poder comparar, conto reler o livro na tradução de João Palma-Ferreira (que eu
saiba a única existente em português europeu).
Quanto à
história, podemos sintetizá-la numa frase: trata das peripécias vividas por Leopold
Bloom (a par de uma imensidade de outros personagens) no dia 16 de Junho de
1904 (note-se que o livro do autor irlandês é tão paradigmático, que nesse país
se instituiu um feriado em sua homenagem – o Bloomsday, comemorado no citado
dia), desde que sai de casa pela manhã até ao seu regresso. Claro que o livro é
muito, mas mesmo muito, mais do que isto. Joyce conseguiu condensar em menos de
vinte e quatro horas todo um mundo.
Uma obra-prima.
Um livro ímpar, de uma originalidade única. Apenas um livro escrito para os
críticos, como o acusam alguns, e não para os leitores comuns? (Mas o que raio
são os leitores comuns? Ou querem fazer-me crer que os leitores comuns
equivalem a pessoas com uma inultrapassável modorra intelectual, incapazes de
experimentar coisas diferentes ou de ser surpreendidos?). Antes sim um livro
escrito para todos nós, humanos, seres mais ou menos profundos e quase
totalmente insondáveis, diferentes, falsamente “campeões em tudo” (cft. “Nunca
conheci quem tivesse levado porrada”) ou mesmo frágeis. Uma odisseia que (nunca
com outro livro tal me acontecera) me fez pesquisar para ver mais longe – não tanto
para entender ou dissecar a obra, mas para medir até que ponto é que as minhas
impressões tinham fundamento. Um livro que me ajuda a explicar a mim mesmo a
razão de gostar tanto de ler.
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