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Uma coisa é gostar de ler livros de história, outra completamente diferente é ler bons livros de história. Se é certo que da maioria das obras historiográficas que vou lendo consigo retirar algum proveito, nem sempre a sua leitura é tão cativante (pese embora a densidade do tema) e recomendável como Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline, de Timothy Snyder.
O tema é, por si mesmo, bastante intenso (uma vez que trata de violência - mas também de ética, no seu sentido mais profundamente humano), o que pode justificar o interesse de muitos leitores; porém, mais do que isso, é um livro bem escrito, organizado e fundamentado, com opções claras e argumentos sólidos, utilizando e cruzando um vasto manancial informativo. Julgo que a historiografia anglo-saxónica tem, saudavelmente, a preocupação de ser interessante e relevante para o leitor comum, isto é, para o não especialista (para os estudiosos existem publicações próprias, nomeadamente as de âmbito académico, em que se discutem aspetos metodológicos, esquemas interpretativos, por vezes apenas questões de pormenor que não pesam no quadro geral, etc. - aspetos provavelmente fastidiosos para a maioria do público leitor).
Nesta obra Snyder trata das políticas de homicídios em massa deliberados dos regimes nazi e soviético, num período que vai dos inícios da década de 1930 até à morte de Estaline, em 1953. Assim, refere-se à política soviética que privou de alimentos e matou milhões de pessoas na Ucrânia, em 1932-33; ao fuzilamento pelos soviéticos de centenas de milhares de pessoas no Grande Terror, em 1937-38; ao assassinato de muitos milhares de polacos (sobretudo a elite cultura e política, bem como militares) por alemães e soviéticos aquando da ocupação da Polónia, em 1939-41; à privação de alimentos a (e consequente morte de) milhões de soviéticos pelas forças alemãs, em 1941-45; à eliminação (por fuzilamento ou gazeamento) de milhões de judeus pelos nazis, em 1941-45; ao assassinato de centenas de milhares de civis pelas forças alemãs em represálias várias.
Tendo lido recentemente outras obras do mesmo âmbito temático (*), achei particularmente interessante - aspeto que me é mais desconhecido - a abordagem dos assassínios em massa perpetrados pelo regime soviético. Ao ler sobre o modo como na URSS a informação era manipulada e totalmente desvirtuada para ir de encontro à "visão" de Estaline (o mesmo, não esqueçamos, ocorreu na Alemanha nazi), não pude deixar de me lembrar da obra de George Orwell, 1984 (**). O zelo (aterrorizante mas também aterrorizado) dos agentes do poder soviético na supressão daqueles que eram apodados de potenciais envolvidos em atos conspirativos ou de resistência à coletivização é arrepiante; o cinismo das acusações feitas aos camponeses famintos (a sua fome - provocada, sublinhe-se, pelo regime através da nacionalização da produção - foi vista por Estaline como uma "conspiração" para descredibilizar o regime!) é de uma imoralidade inaudita...
Terra Sangrenta é, não admiravelmente, um relato extremamente duro; algumas das suas descrições são perturbadoras, e mostram-nos até onde pode ir a crueldade e o sadismo, o desprezo e o ódio pelo outro (pela vida), a irracionalidade e, no fundo, a estupidez. Perturbadores, ainda que de modo diferente, são os números colossais de vítimas apresentados - a certo momento, quase se tornam abstratos (daí o alerta final do autor, referindo que cada número apresentado corresponde à sua multiplicação por um - referindo-se esse "um" a indivíduos singulares, com as suas histórias próprias, cujos percursos de foram vida interrompidos pela violência das políticas soviética e nazi). Em suma, dois regimes obcessivamente assassinos, com motivações e alvos algo diferentes, mas procedimentos igualmente brutais.
Termino esta apreciação apontando um ponto negativo (algo grosseiro, diga-se) deste livro: refiro-me à qualidade dos mapas, que podiam (deviam) incluir orientação (se bem que a sua ausência não constitua dificuldade de maior) e escala (a sua inexistência retira-lhes leitura).
(*) Nomeadamente as biografias da autoria de Ian Kershaw, Hitler, e de Simon Montefiore, Estaline. A Corte do Czar Vermelho; as obras do jornalista e documentarista Laurence Rees, Auschwitz: Os Nazis e a Solução Final e Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente; e o livro de Daniel Jonah Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler. O Povo Alemão e o Holocausto.
(**) O facto de as autoridades soviéticas apelidarem os oficiais e quadros superiores polacos assassinados em 1940 (após a absorção do leste da Polónia pela URSS) de "ex-pessoas" é adotado na obra orweliana.
O tema é, por si mesmo, bastante intenso (uma vez que trata de violência - mas também de ética, no seu sentido mais profundamente humano), o que pode justificar o interesse de muitos leitores; porém, mais do que isso, é um livro bem escrito, organizado e fundamentado, com opções claras e argumentos sólidos, utilizando e cruzando um vasto manancial informativo. Julgo que a historiografia anglo-saxónica tem, saudavelmente, a preocupação de ser interessante e relevante para o leitor comum, isto é, para o não especialista (para os estudiosos existem publicações próprias, nomeadamente as de âmbito académico, em que se discutem aspetos metodológicos, esquemas interpretativos, por vezes apenas questões de pormenor que não pesam no quadro geral, etc. - aspetos provavelmente fastidiosos para a maioria do público leitor).
Nesta obra Snyder trata das políticas de homicídios em massa deliberados dos regimes nazi e soviético, num período que vai dos inícios da década de 1930 até à morte de Estaline, em 1953. Assim, refere-se à política soviética que privou de alimentos e matou milhões de pessoas na Ucrânia, em 1932-33; ao fuzilamento pelos soviéticos de centenas de milhares de pessoas no Grande Terror, em 1937-38; ao assassinato de muitos milhares de polacos (sobretudo a elite cultura e política, bem como militares) por alemães e soviéticos aquando da ocupação da Polónia, em 1939-41; à privação de alimentos a (e consequente morte de) milhões de soviéticos pelas forças alemãs, em 1941-45; à eliminação (por fuzilamento ou gazeamento) de milhões de judeus pelos nazis, em 1941-45; ao assassinato de centenas de milhares de civis pelas forças alemãs em represálias várias.
Tendo lido recentemente outras obras do mesmo âmbito temático (*), achei particularmente interessante - aspeto que me é mais desconhecido - a abordagem dos assassínios em massa perpetrados pelo regime soviético. Ao ler sobre o modo como na URSS a informação era manipulada e totalmente desvirtuada para ir de encontro à "visão" de Estaline (o mesmo, não esqueçamos, ocorreu na Alemanha nazi), não pude deixar de me lembrar da obra de George Orwell, 1984 (**). O zelo (aterrorizante mas também aterrorizado) dos agentes do poder soviético na supressão daqueles que eram apodados de potenciais envolvidos em atos conspirativos ou de resistência à coletivização é arrepiante; o cinismo das acusações feitas aos camponeses famintos (a sua fome - provocada, sublinhe-se, pelo regime através da nacionalização da produção - foi vista por Estaline como uma "conspiração" para descredibilizar o regime!) é de uma imoralidade inaudita...
Terra Sangrenta é, não admiravelmente, um relato extremamente duro; algumas das suas descrições são perturbadoras, e mostram-nos até onde pode ir a crueldade e o sadismo, o desprezo e o ódio pelo outro (pela vida), a irracionalidade e, no fundo, a estupidez. Perturbadores, ainda que de modo diferente, são os números colossais de vítimas apresentados - a certo momento, quase se tornam abstratos (daí o alerta final do autor, referindo que cada número apresentado corresponde à sua multiplicação por um - referindo-se esse "um" a indivíduos singulares, com as suas histórias próprias, cujos percursos de foram vida interrompidos pela violência das políticas soviética e nazi). Em suma, dois regimes obcessivamente assassinos, com motivações e alvos algo diferentes, mas procedimentos igualmente brutais.
Termino esta apreciação apontando um ponto negativo (algo grosseiro, diga-se) deste livro: refiro-me à qualidade dos mapas, que podiam (deviam) incluir orientação (se bem que a sua ausência não constitua dificuldade de maior) e escala (a sua inexistência retira-lhes leitura).
(*) Nomeadamente as biografias da autoria de Ian Kershaw, Hitler, e de Simon Montefiore, Estaline. A Corte do Czar Vermelho; as obras do jornalista e documentarista Laurence Rees, Auschwitz: Os Nazis e a Solução Final e Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente; e o livro de Daniel Jonah Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler. O Povo Alemão e o Holocausto.
(**) O facto de as autoridades soviéticas apelidarem os oficiais e quadros superiores polacos assassinados em 1940 (após a absorção do leste da Polónia pela URSS) de "ex-pessoas" é adotado na obra orweliana.
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