quinta-feira, 14 de maio de 2015

"Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas", de Bocage

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Bocage é um nome caricato no panorama da poesia portuguesa: conhecido por ser um versejador fácil, um repentista de cariz popular, mas também um mestre do soneto. Foi precisamente pelos seus sonetos que, há uns anos atrás, comecei a desbravar a obra bocagiana, ficando à época com uma ideia muito favorável da sua poesia (estilisticamente rica, culta - com múltiplas referências à cultura clássica, por exemplo -, com uma notório domínio linguístico). Julgo que não muito longe dessa leitura, pude ver com muito agrado na televisão pública uma série dedicada a este autor, a qual retratava, entre outros aspetos, o seu lado mais popular, mais brejeiro. Eis que, anos corridos, "tropecei" neste pequeno volume (quase de graça, como se diz no poema do Cesariny "Rua da Bica Duarte Belo") das Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas numa grande superfície comercial, enquanto me abastecia de um conjunto diversificado de consumíveis (na altura pareceu-me haver algo de irónico entre o local de compra e o livro-produto). O prefácio da ex-ministra e professora universitária Isabel Pires de Lima, por dar (pensei eu) alguma credibilidade à edição, motivou-me à compra.
De um modo geral, a linguagem de Bocage neste conjunto de poemas é desbragada, brejeira, explícita, entrando - bem ao gosto popular - nas temáticas sexual e escatológica (visível por exemplo neste epitáfio: «Aqui dorme Bocage, o putanheiro; / Passou vida folgada, e milagrosa; / Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»). É manifesta também a sua faceta mais irónica, sarcástica ou mesmo cáustica: quando, por exemplo, Bocage mostra o seu anticlericalismo, acusando a hipocrisia de alguns clérigos concupiscentes e devassos que pregavam fanaticamente a moralidade; ou quando acusa a mediocridade (que significa apenas falta de originalidade, mas, segundo Bocage, do mais elementar talento) de autores da moda, muitas vezes académicos.
Em "Ribeirada", o poeta sadino (isto é, de Setúbal) canta "em tom grosseiro" (com o mesmo assume) sobre os dotes do avantajado "preto Ribeiro"; já em "A Manteigui", relata-se a história de uma mulher lasciva que se apaixona por um abonado negro (porém, o seu caráter insaciável leva à fuga do amante!). A veia cómica de Bocage é bem visível em "Décimas a um tabelião velho, que casou com uma moça nova" (em que descreve um velho impotente que, incapacitado de consumar o matrimónio, acaba por ser uma fraude e assim frustrar a sua jovem mulher) ou "Elegia à morte de uma famosa alcoviteira" (em que se alude à dona de um prostíbulo). Em alguns poemas, Bocage mostra o seu caráter marialvo: em "Diálogo entre o poeta e o Tejo", por exemplo, confessa-se "infernal" por "encornar" os fidalgos.
Se em "O Ciúme do Inferno" critica a crença no inferno, em "Epístola a Marília" Bocage revela abertamente o seu (já referido) anticlericalismo. Assim, critica o fanatismo do clero ("negros enxames") por pintar Deus com as cores mais negras (castigador, opressivo, vingador, inflexível), estratégia para gerar medo e submissão: «Ei-lo, em santo furor todo abrasado, / Hirto o cabelo, os olhos cor de fogo, / A maldição na boca, o fel, a espuma, / Ei-lo, cheio de um Deus tão mau como ele.»; acusa tal fanatismo de ser contrário à Natureza e, numa alusão à Inquisição, de causar dores e sofrimentos, quando não a morte. Por sua vez, defende um Deus da paz, da piedade, um Deus que considera o amor (inclusive o físico, e daí o convite a Marília para se entregar às "venais delícias") como sendo natural: «Amar é um dever, além de um gosto, / Uma necessidade, não um crime.» O fim é claramente provocatório: «Céus não existem, não existe inferno, / O prémio da virtude é a virtude, / É castigo do vício o próprio vício.»
Enquadrado pelas ideias iluministas (na crença na Razão, na existência de leis naturais, etc.), Bocage ataca, para além do fanatismo, o obscurantismo e a intolerância da religião. Tal posicionamento é bem visível em "Cartas de Olinda a Alzira" (poema constituído por uma troca de "epístolas" entre uma freira e uma mulher casada), em que se apoda de fraudulentos certos dogmas e preconceitos relativos, por exemplo, ao amor físico (tido, de novo, por natural). De caráter marcadamente erótico, por descrever de forma bastante gráfica as alterações ocorridas no corpo feminino durante o crescimento, o despontar do desejo e as "delícias do amor", este poema acusa a educação das mulheres de obscurantista - ao fecha-las em casa para as manter puras, ao tornar como valor incontestável a castidade, ao condenar o Amor. Assim, o medo e a insistência no pecado e na culpa funcionariam como uma forma de poder, de repressão sobre os ignorantes.
Curioso o remoque às "rondas" ordenadas pelo Intendente Pina Manique em "A empresa noturna" (poema que que se relata uma ida ao encontro de Nise, marcada por um prévio e animalesco "ataque" à criada): «Dormia tudo; e a ronda do Intendente / Que o grão Torquato rege, o pai das putas, / Esbirro-mor, Mecenas das tabernas (...)».
Os sonetos presentes nesta coletânea tocam os vários assuntos focados, sendo que alguns (pela comicidade mas seguramente também pela concisão da forma) são bastante populares - é o caso do seu autorretrato «Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés, meão na altura, / Triste de faixa, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio, e não pequeno: / (...) / Eis Bocage, em quem luz algum talento, / Saíram dele mesmo estas verdades / Num dia em que se achou cagando ao vento.»
Finalizo referindo-me à edição. Editar obras livres de direitos de autor pode acarretar (e tantas vezes acarreta) alguns perigos. Um deles, relativamente frequente na poesia, é o desrespeito pela fidelidade ao texto original (omitindo ou acrescentando-se pontuação, quebras de estrofe, etc.). Neste caso, a edição ("quase de graça") acabou por sair cara, dado o excessivo número de gralhas - que, estou certo, em alguns casos me terão passado despercebidos e feito perder o sentido original. A meu ver, tais falhas seriam facilmente dispensáveis se os responsáveis pela edição tivessem feito um simples revisão (isto é, uma simples leitura como a que fiz).

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