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Último romance da tetralogia "O Reino" (seguindo-se a Um Homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser e Jerusalém), este Aprender a Rezar na Era da Técnica é um livro poderoso - Gonçalo M. Tavares no seu melhor. Quando li este livro pela primeira vez fiquei hipnotizado pelo seu intenso poder de atração - qual buraco negro; durante a releitura, pese embora o facto de ter bem presente a história e o estilo despojado da narração, não deixei de ficar absorvido pelo mesmo.
A força desta obra começa pelo título, um dos mais originais que conheço dentro da literatura romanesca. Depois, toda a embriagante (em alguns momentos quase tóxica) ambiência do enredo - negra, perturbadora, por vezes até brutal.
De um modo muito esquemático (o próprio texto de Tavares é um tanto ao quanto esquemático, sem que isso seja necessariamente um defeito; é, no entanto, um pouco mais convencional em termos estruturais e narrativos do que Jerusalém), esta obra trata da ascensão e queda de Lenz Buchmann, um prestigiado e ultracompetente cirurgião que se deixa encantar por uma carreia na política (com as possibilidades conferidas pelo poder: o respeito ou o medo perante a superioridade do poderoso) no seio de um inominado (mas imponente) Partido. O protagonista é bastante sombrio (ou talvez mesmo negro): seguro das suas competências técnicas (enquanto cirurgião), Lenz é um ser totalmente frio em termos humanos (detesta, por exemplo, ver confundida a sua perícia em salvar vidas com bondade), falho de empatia ou compaixão pelos outros (pelos doentes, pelos mais "fracos"), cínico e amargo, marcado pelo rancor e pelo ódio, e com um gosto perverso em humilhar pobres, prostitutas, mulheres (a sua própria mulher).
Ao longo deste livro (como aliás por toda a tetralogia) há uma manifesta preocupação em refletir sobre a moral (sobre a maldade, a crueldade, a manipulação, a hipocrisia, a mentira, a traição, a conivência, a lei do mais forte, etc.), através do posicionamento no mundo e das ações do personagem principal. Há também uma abordagem propositadamente fria e dura sobre a doença (a degradação física, a implacabilidade, etc.); Lenz, outrora cirurgião não empático com os doentes (não empático ou mesmo indiferente face à agressiva doença mortal de seu irmão mais velho), tornar-se-á ele próprio um doente (o forte torna-se fraco). A descrição pormenorizada do caráter nefasto do protagonista será, porventura, uma tentativa de jogar com os valores morais do leitor - isto é, Tavares despoja os leitores de qualquer simpatia por Lenz e dá-lhes uma justificação moral para por ele não sentirem qualquer compaixão (e de remorso por falta dessa compaixão) no momento em que é devorado pela doença (o leitor é eventualmente convidado a odiar de uma forma higiénica).
Como nos outros livros do autor, podem encontrar-se referências aos outros livros de "O Reino" (vemos, por exemplo, Joseph Walser deambular pelo hospital de Lenz sem um dos dedos da mão) ou, entre outros aspetos, à história recente da Europa (é possível ver no plano de Lenz e Kestner de provocar uma explosão num teatro uma referência ao incêndio do Reichtag alemão em 1933). Pessoalmente, vi no ocaso de Lenz uma reminiscência das danças macabras dos séculos XIV e XV, nas quais os poderosos (papas, imperadores, reis, cardeais, nobres), por muito poder que tenham no mundo terreno (ou na era da técnica) acabam por ser invariavelmente tragados pela morte...
Em conclusão, uma obra que consegue ser desconfortável e perturbante (e que certamente tem as suas limitações), que a meu ver vale bem a leitura (e as releituras).
A força desta obra começa pelo título, um dos mais originais que conheço dentro da literatura romanesca. Depois, toda a embriagante (em alguns momentos quase tóxica) ambiência do enredo - negra, perturbadora, por vezes até brutal.
De um modo muito esquemático (o próprio texto de Tavares é um tanto ao quanto esquemático, sem que isso seja necessariamente um defeito; é, no entanto, um pouco mais convencional em termos estruturais e narrativos do que Jerusalém), esta obra trata da ascensão e queda de Lenz Buchmann, um prestigiado e ultracompetente cirurgião que se deixa encantar por uma carreia na política (com as possibilidades conferidas pelo poder: o respeito ou o medo perante a superioridade do poderoso) no seio de um inominado (mas imponente) Partido. O protagonista é bastante sombrio (ou talvez mesmo negro): seguro das suas competências técnicas (enquanto cirurgião), Lenz é um ser totalmente frio em termos humanos (detesta, por exemplo, ver confundida a sua perícia em salvar vidas com bondade), falho de empatia ou compaixão pelos outros (pelos doentes, pelos mais "fracos"), cínico e amargo, marcado pelo rancor e pelo ódio, e com um gosto perverso em humilhar pobres, prostitutas, mulheres (a sua própria mulher).
Ao longo deste livro (como aliás por toda a tetralogia) há uma manifesta preocupação em refletir sobre a moral (sobre a maldade, a crueldade, a manipulação, a hipocrisia, a mentira, a traição, a conivência, a lei do mais forte, etc.), através do posicionamento no mundo e das ações do personagem principal. Há também uma abordagem propositadamente fria e dura sobre a doença (a degradação física, a implacabilidade, etc.); Lenz, outrora cirurgião não empático com os doentes (não empático ou mesmo indiferente face à agressiva doença mortal de seu irmão mais velho), tornar-se-á ele próprio um doente (o forte torna-se fraco). A descrição pormenorizada do caráter nefasto do protagonista será, porventura, uma tentativa de jogar com os valores morais do leitor - isto é, Tavares despoja os leitores de qualquer simpatia por Lenz e dá-lhes uma justificação moral para por ele não sentirem qualquer compaixão (e de remorso por falta dessa compaixão) no momento em que é devorado pela doença (o leitor é eventualmente convidado a odiar de uma forma higiénica).
Como nos outros livros do autor, podem encontrar-se referências aos outros livros de "O Reino" (vemos, por exemplo, Joseph Walser deambular pelo hospital de Lenz sem um dos dedos da mão) ou, entre outros aspetos, à história recente da Europa (é possível ver no plano de Lenz e Kestner de provocar uma explosão num teatro uma referência ao incêndio do Reichtag alemão em 1933). Pessoalmente, vi no ocaso de Lenz uma reminiscência das danças macabras dos séculos XIV e XV, nas quais os poderosos (papas, imperadores, reis, cardeais, nobres), por muito poder que tenham no mundo terreno (ou na era da técnica) acabam por ser invariavelmente tragados pela morte...
Em conclusão, uma obra que consegue ser desconfortável e perturbante (e que certamente tem as suas limitações), que a meu ver vale bem a leitura (e as releituras).
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