sábado, 9 de maio de 2015

"A História do Corpo Humano. Evolução, saúde e doença", de Daniel E. Lieberman

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A leitura deste livro decorre de uma casualidade: tendo participado num passatempo, ganhei-o como prémio. À primeira vista, um livro com o título A História do Corpo Humano poderia indiciar uma obra historiográfica, à semelhança - por exemplo - da História do Corpo dirigida por Alain Corbin, tratando do modo como o corpo foi sendo visto e compreendido ao longo do tempo (as técnicas da medicina, as práticas higiénicas, a moral e os tabus, o conceito de beleza e o modo de representação nas artes, a alimentação, etc.). Porém, A História do Corpo Humano. Evolução, saúde e doença, de Daniel E. Lieberman, não é um livro de história - como o subtítulo já deixa adivinhar -, mas antes, diria, de "história natural" - no sentido oitocentista de tal designação; o seu autor, esclareça-se, é professor de Biologia Evolutiva na Universidade de Harvard.
À partida esta não é, pois, uma leitura óbvia para mim, mas tendo lido o índice, a informação da badana e da contracapa, decidi espreitar; acabei, lidas algumas páginas, por me decidir avançar por me parecer uma leitura de interesse. De facto, não me enganei: esta foi não apenas uma leitura muito válida, como constituiu uma agradável surpresa.
Esta obra trata, pois, da evolução biológica do corpo, das adaptações do mesmo às inovações introduzidas pelo homem - na sua dieta, atividade física, etc. - e suas consequências na saúde (no aparecimento e/ou maior frequência de certas doenças).
A primeira das três parte do livro ("Homens e Macacos") contém muita informação que é comum à antropologia e mesmo à arqueologia, uma vez que aborda a evolução do Homem até ao Paleolítico Superior (sobretudo na perspetiva fisiológica - nomeadamente a conquista do bipedismo, o aumento do tamanho do cérebro -,ainda que abordando, por ser inevitável, um conjunto de aspetos culturais); a segunda parte detém-se nas alterações que a passagem da condição de caçador-recolector a agricultor trouxeram à vida humana (e respetivos impactos no corpo humano, "preparado", através de um longo processo de evolução, para uma determinada situação), bem como as alterações resultantes da industrialização
«Os últimos 150 anos transformaram profundamente o modo como comemos, trabalhamos, viajamos, combatemos a doença, nos mantemos limpos e até como dormimos. É como se a espécie humana tivesse sofrido uma remodelação total: a nossa vida diária mal seria compreendida pelos antepassados de há apenas algumas gerações, mas basicamente continuamos idênticos a nível genético, anatómico e fisiológico. A mudança tem sido tão rápida que passou muito pouco tempo para ter havido mais do que um mínimo de seleção natural
A terceira e última parte relaciona as (rápidas, abruptas, marcantes) alterações do padrão de vida humana (devidas às evoluções cultural e tecnológica) com um conjunto de doenças ("de incompatibilidade evolutiva" - isto é, incompatíveis com a situação para a qual o nosso corpo está adaptado - no que se refere ao gasto energético ou ao nível de exercício físico, por exemplo -, em resultado da já mencionada evolução); por outro lado, o autor defende que a biologia evolutiva poderá ajudar a compreender o caminho a seguir, de modo promover a saúde e minorar o impacto de certas doenças (como a obesidade, a diabetes de tipo 2, etc.).
«Até que ponto será o paradoxo atual das tendências da saúde humana - mais pessoas que ficam mais velhas, mas que também sofrem com mais frequência e durante maiores períodos de tempo de doenças crónicas e dispendiosas - pura e simplesmente o preço a pagar pelo progresso?»

«Apesar do recente progresso na medicina e no saneamento, muito de nós estão a ficar doentes com uma vasta gama de doenças que costumavam ser raras ou desconhecidas. Cada vez mais, essas doenças apresentam-se como problemas crónicos não contagiosos, muitos dos quais surgidos por termos feitos demasiado progresso
A escrita de Lieberman é clara, simples (sem ser simplista, quero crer), com alguns toques de humor e referências à nossa vida e cultura cosmopolita; as suas explicações e perspetivas pareceram-me bem fundamentadas e lógicas e considero muito feliz a estrutura da obra. Há que admitir, porém, que ao ler esta obra - ainda que a mesma seja acessível (afinal, trata-se de um livro de divulgação científica) - senti dificuldade em avaliar a pertinência ou relevância de certos argumentos e raciocínios (alguns assumidos como hipóteses) aventados pelo autor; a bem da verdade (e da honestidade intelectual) há que acrescentar que o autor vai chamando a atenção para as limitações de algumas das suas conclusões.
«Quer gostemos quer não, somos símios bípedes um pouco anafados e pelados que desejam açúcar, sal, gordura e amido, mas mesmo assim estamos adaptados para o consumo de uma dieta variada de frutos e legumes fibrosos, frutos secos, sementes, tubérculos e carne magra. Apreciamos o descanso e a descontração, mas o nosso corpo continua a ser a de um atleta de resistência que evoluiu para caminhar, e muitas vezes correr, muitos quilómetros por dia, bem como para escavar, trepar e transportar. Adoramos muitos confortos, mas não estamos adaptados para passar o dia no interior, sentados em cadeiras, com calçado com apoio, a olhar para livros ou ecrãs durante horas a fio. Consequentemente, milhares de milhões de pessoas sofrem de doença de abundância, novidade e desuso que costumavam ser raras ou desconhecidas. Tratamos depois os sintomas dessas doenças porque é mais fácil, mais rentável e mais urgente do que tratar as causas, muitas das quais até nem compreendemos. Ao fazê-lo, estamos a perpetuar um ciclo de retroação pernicioso - a desevolução - entre a cultura e a biologia

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