domingo, 31 de maio de 2015

"Pantaleão e as Visitadoras", de Mario Vargas Llosa

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Não escondo que sou fã da obra de Mario Vargas Llosa. Cada novo livro que dele leio (não necessariamente os mais recentes - o caso presente foi publicado há mais de quarenta anos) solidifica a convicção da qualidade da escrita e da imaginação romanesca de Llosa.
Na badana do exemplar lido fui informado que Pantaleão e as Visitadoras é um dos romances mais populares de Vargas Llosa. É compreensível: trata-se de um livro bastante acessível, tanto ao nível da linguagem como da densidade narrativa, e apelativo, pelo caráter humorístico e irónico da história (a organização, por parte do capitão Pantaleão Pantoja, de um serviço de prostitutas - eufemisticamente designadas "visitadoras" - dirigido aos militares das forças armadas peruanas da Amazónia, serviço esse que começa a crescer descontroladamente). Tenho para mim que este livro é tão convidativo como Tia Júlia e o Escrevedor e Travessuras da Menina Má.
Talvez o ponto mais original e curioso do livro (ou o ponto que mais me impressionou) seja o aspeto formal, uma vez que o romance constrói-se de diferentes estilos narrativos: há capítulos em que os diálogos intercalados dominam (capítulos onde várias personagens, situações e tempos de ação se misturam); outros erigidos de relatórios, isto é, escritos minuciosos em linguagem própria (impessoal) do funcionarismo administrativo (pese embora - e daí resulta um efeito cómico - os assuntos tratados: avaliação física de candidatas a visitadoras, considerações sobre depravações e fantasias sexuais, etc.); de quando em quando há exemplos de escrita epistolar, sendo que a linguagem (e a correção gramatical e ortográfica) se altera consoante os intervenientes; interessantes são também os capítulos em que Llosa mimetiza as linguagens próprias de um programa de rádio (de feições populares) e de um jornal (notícia, crónica, etc.).
Um belíssimo livro, em suma, fácil de recomendar, verdadeiramente saboroso.

domingo, 24 de maio de 2015

"O Pequeno Livro do Grande Terramoto", de Rui Tavares

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Eis um livro que me fugiu durante uns anos: O Pequeno Livro do Grande Terramoto, de Rui Tavares, originalmente editado no ano em que se assinalaram os 250 anos sobre o terramoto de Lisboa de 1755. Por sorte, encontrei-o recentemente na biblioteca municipal e assim, apesar do "atraso" (se é certo que em História muitas vezes os interesses editoriais colam-se, compreensivelmente, às efemérides, tal não significa que os nossos interesses pessoais devam andar ao sabor destes ventos e destas modas), surgindo desta forma a possibilidade de lê-lo.
Se o assunto é sobejamente conhecido, e na referida efeméride foram múltiplos os estudos, documentários, reportagens, notícias sobre a catástrofe setecentista, já a forma escolhida por Rui Tavares pareceu-me bastante original. Antes de mais, o autor assume o caráter de divulgação da sua obra (assim se entende - não exatamente pela extensão, pelo número de páginas ou de referências bibliográficas - a expressão "pequeno livro" constante no título) - um trabalho, a meu ver, muito feliz, na medida em que destaca os pontos mais importantes (os acontecimentos daquele dia 1 de Novembro, a reconstrução, o papel do Marquês de Pombal, o impacto do acontecido, etc.) com o exigível rigor e alguma acuidade analítica. A escrita do autor é, por outro lado, um ponto forte a favor da obra, uma vez que conjuga inteligentemente descrição, análise e suposição (pense-se no interessante exercício de história contra factual contante num dos primeiros capítulos: como seria Lisboa se o terramoto não tivesse destruído a zona baixa da cidade), e é enriquecida por toques de humor e alguns efeitos literários.
A obra inicia-se com uma reflexão sobre o impacto mental e cultural de certos "dias mercantes" (aqueles dias que pela sua singularidade mudam as nossas vidas, que têm um antes e um depois, que constituem um trauma), fazendo o paralelismo do dia do terramoto com o 11 de Setembro. Isto porque o terramoto de Lisboa gerou vários debates (sobre o papel de Deus e/ou da Natureza nas catástrofes), refletidos em obras de grandes autores (os iluministas Voltaire - que aproveita o acontecimento nefasto para atacar a filosofia de Leibnitz -, Kant ou Rosseau debruçaram-se sobre o terramoto), difundidos em gazetas, correspondência, relatos, sermões, poemas, folhetins, e representada em gravuras. É precisamente neste impacto mental e cultural, com que se encerra o livro, que a meu ver assenta o seu maior mérito.
O livro de Rui Tavares, mais do que um livro de História, é um exemplo positivo de ensaio histórico - está lá a História, mas esta é tratada e apresentada de forma mais livre e pessoal, o que, no presente caso, acaba por resultar bastante bem.

"Martin Eden", de Jack London

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Já anteriormente escrevi o quanto Jack London marcou a minha juventude (A Peste Escarlate). Recentemente, durante a leitura deste Martin Eden, dei por mim a colocar alguns dos livros deste autor de lado para uma releitura a médio prazo. Reencontrei nas páginas desta obra, que desde logo assumo não ser nenhuma obra maior da literatura, as características que me fazem apreciar a escrita simples, material ou terra a terra, por vezes até algo grosseira (no sentido de não polida). A narrativa deste romance, um dos mais carismáticos do autor (em parte por ser o mais marcadamente autobiográfico, mas também por tratar do impulso para a escrita e na perseverança em vencer no mundo viciado das Letras), não é particularmente sofisticada ou inovadora; mas, ainda que seja pessimista, contém aquela espécie de romantismo popular (aventureiro, destemido, resiliente) que me agrada em Jack London.
De uma forma sintética, Martin Eden retrata o crescimento intelectual (o esforço individual para se cultivar) e a luta de um escritor pela sobrevivência e pelo reconhecimento, bem como a sua desilusão com os valores e artifícios da sociedade e, por fim, com o próprio sucesso. Talvez o aspeto mais diretamente inspirador é a luta pela sobrevivência de Martin quando se decide a ser escritor, nomeadamente a sua perseverança perante as constantes rejeições e dificuldades. Já os debates intelectuais (rudimentarmente tratados) que pontuam o livro soam um pouco datados.
Ainda assim, é uma leitura interessante, leve - e, acima de tudo, convidativa.

sábado, 23 de maio de 2015

"Poemas Canhotos", de Herberto Helder

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Já aqui tenho escrito que, apesar de ser um leitor frequente de poesia, sinto dificuldades em expressar-me sobre as minhas leituras poéticas. Após ler estes Poemas Canhotos, o último livro do recentemente falecido Herberto Helder, receio bem cair em banalidade e generalidades sem grande sumo.
Começo este texto fazendo uma breve (e vaga, não concretizada) referência ao numeroso conjunto de artigos (incluindo os meus próprios, pobres e incipientes - mas também despretensiosos) que nos últimos dois anos se têm escrito sobre a poesia de Herberto Helder, sobre os seus últimos livros, sobre a sua pessoa, sobre o "mito" construído (poeta obscuro, fechado em si mesmo, que recusa entrevistas, etc.): morto o Poeta fica a Obra, tal como eventualmente o próprio desejaria; vai-se o folclore (os debates, visões hagiográficas), mesmo que fiquem as ideias feitas (matéria-prima para novos debates, a ocorrer não tanto nos jornais como nas universidades); inicia-se o comércio das relíquias, o debate em torno dos poemas esquecidos num qualquer baú para jubilosa (e espantada) descoberta, publicação e autópsia nos anos vindouros, os colóquios e saraus, eventualmente as placas e batismos de ruas e escolas...
Certo, concordo que o poeta ao chamar "canhotos" a estes poemas está a sublinhar o seu caráter imperfeito, não elevado, raso até (foram os poemas possíveis ao octogenário poeta?). Depois de uma poesia jubilosa, o fecho faz-se com um poesia que nos remete para a imperfeição do próprio Homem - frágil e mortal. Tal como em A Morte sem Mestre, o poema toca os temas da morte e da poesia, tornando estes Poemas Canhotos numa espécie de prolongamento do livro anterior (outros escreveram o mesmo, e eu não posso deixar de concordar). Como corpus é igualmente algo desequilibrado, contribuindo (não se perca, porém, de vista o título) para uma assumida fragilidade. Se não é o ponto mais alto da poesia de Herberto Helder - havendo mesmo quem o considere o seu ponto mais baixo (uma espécie de saída pela porta dos fundos) -, para mim existem no conjunto alguns bons poemas que justificam a leitura, e não constituem desprimor para o seu "Poema Contínuo"...

quinta-feira, 14 de maio de 2015

"Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas", de Bocage

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Bocage é um nome caricato no panorama da poesia portuguesa: conhecido por ser um versejador fácil, um repentista de cariz popular, mas também um mestre do soneto. Foi precisamente pelos seus sonetos que, há uns anos atrás, comecei a desbravar a obra bocagiana, ficando à época com uma ideia muito favorável da sua poesia (estilisticamente rica, culta - com múltiplas referências à cultura clássica, por exemplo -, com uma notório domínio linguístico). Julgo que não muito longe dessa leitura, pude ver com muito agrado na televisão pública uma série dedicada a este autor, a qual retratava, entre outros aspetos, o seu lado mais popular, mais brejeiro. Eis que, anos corridos, "tropecei" neste pequeno volume (quase de graça, como se diz no poema do Cesariny "Rua da Bica Duarte Belo") das Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas numa grande superfície comercial, enquanto me abastecia de um conjunto diversificado de consumíveis (na altura pareceu-me haver algo de irónico entre o local de compra e o livro-produto). O prefácio da ex-ministra e professora universitária Isabel Pires de Lima, por dar (pensei eu) alguma credibilidade à edição, motivou-me à compra.
De um modo geral, a linguagem de Bocage neste conjunto de poemas é desbragada, brejeira, explícita, entrando - bem ao gosto popular - nas temáticas sexual e escatológica (visível por exemplo neste epitáfio: «Aqui dorme Bocage, o putanheiro; / Passou vida folgada, e milagrosa; / Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»). É manifesta também a sua faceta mais irónica, sarcástica ou mesmo cáustica: quando, por exemplo, Bocage mostra o seu anticlericalismo, acusando a hipocrisia de alguns clérigos concupiscentes e devassos que pregavam fanaticamente a moralidade; ou quando acusa a mediocridade (que significa apenas falta de originalidade, mas, segundo Bocage, do mais elementar talento) de autores da moda, muitas vezes académicos.
Em "Ribeirada", o poeta sadino (isto é, de Setúbal) canta "em tom grosseiro" (com o mesmo assume) sobre os dotes do avantajado "preto Ribeiro"; já em "A Manteigui", relata-se a história de uma mulher lasciva que se apaixona por um abonado negro (porém, o seu caráter insaciável leva à fuga do amante!). A veia cómica de Bocage é bem visível em "Décimas a um tabelião velho, que casou com uma moça nova" (em que descreve um velho impotente que, incapacitado de consumar o matrimónio, acaba por ser uma fraude e assim frustrar a sua jovem mulher) ou "Elegia à morte de uma famosa alcoviteira" (em que se alude à dona de um prostíbulo). Em alguns poemas, Bocage mostra o seu caráter marialvo: em "Diálogo entre o poeta e o Tejo", por exemplo, confessa-se "infernal" por "encornar" os fidalgos.
Se em "O Ciúme do Inferno" critica a crença no inferno, em "Epístola a Marília" Bocage revela abertamente o seu (já referido) anticlericalismo. Assim, critica o fanatismo do clero ("negros enxames") por pintar Deus com as cores mais negras (castigador, opressivo, vingador, inflexível), estratégia para gerar medo e submissão: «Ei-lo, em santo furor todo abrasado, / Hirto o cabelo, os olhos cor de fogo, / A maldição na boca, o fel, a espuma, / Ei-lo, cheio de um Deus tão mau como ele.»; acusa tal fanatismo de ser contrário à Natureza e, numa alusão à Inquisição, de causar dores e sofrimentos, quando não a morte. Por sua vez, defende um Deus da paz, da piedade, um Deus que considera o amor (inclusive o físico, e daí o convite a Marília para se entregar às "venais delícias") como sendo natural: «Amar é um dever, além de um gosto, / Uma necessidade, não um crime.» O fim é claramente provocatório: «Céus não existem, não existe inferno, / O prémio da virtude é a virtude, / É castigo do vício o próprio vício.»
Enquadrado pelas ideias iluministas (na crença na Razão, na existência de leis naturais, etc.), Bocage ataca, para além do fanatismo, o obscurantismo e a intolerância da religião. Tal posicionamento é bem visível em "Cartas de Olinda a Alzira" (poema constituído por uma troca de "epístolas" entre uma freira e uma mulher casada), em que se apoda de fraudulentos certos dogmas e preconceitos relativos, por exemplo, ao amor físico (tido, de novo, por natural). De caráter marcadamente erótico, por descrever de forma bastante gráfica as alterações ocorridas no corpo feminino durante o crescimento, o despontar do desejo e as "delícias do amor", este poema acusa a educação das mulheres de obscurantista - ao fecha-las em casa para as manter puras, ao tornar como valor incontestável a castidade, ao condenar o Amor. Assim, o medo e a insistência no pecado e na culpa funcionariam como uma forma de poder, de repressão sobre os ignorantes.
Curioso o remoque às "rondas" ordenadas pelo Intendente Pina Manique em "A empresa noturna" (poema que que se relata uma ida ao encontro de Nise, marcada por um prévio e animalesco "ataque" à criada): «Dormia tudo; e a ronda do Intendente / Que o grão Torquato rege, o pai das putas, / Esbirro-mor, Mecenas das tabernas (...)».
Os sonetos presentes nesta coletânea tocam os vários assuntos focados, sendo que alguns (pela comicidade mas seguramente também pela concisão da forma) são bastante populares - é o caso do seu autorretrato «Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés, meão na altura, / Triste de faixa, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio, e não pequeno: / (...) / Eis Bocage, em quem luz algum talento, / Saíram dele mesmo estas verdades / Num dia em que se achou cagando ao vento.»
Finalizo referindo-me à edição. Editar obras livres de direitos de autor pode acarretar (e tantas vezes acarreta) alguns perigos. Um deles, relativamente frequente na poesia, é o desrespeito pela fidelidade ao texto original (omitindo ou acrescentando-se pontuação, quebras de estrofe, etc.). Neste caso, a edição ("quase de graça") acabou por sair cara, dado o excessivo número de gralhas - que, estou certo, em alguns casos me terão passado despercebidos e feito perder o sentido original. A meu ver, tais falhas seriam facilmente dispensáveis se os responsáveis pela edição tivessem feito um simples revisão (isto é, uma simples leitura como a que fiz).

"Aprender a Rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares

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Último romance da tetralogia "O Reino" (seguindo-se a Um Homem: Klaus Klump A máquina de Joseph Walser e Jerusalém), este Aprender a Rezar na Era da Técnica é um livro poderoso - Gonçalo M. Tavares no seu melhor. Quando li este livro pela primeira vez fiquei hipnotizado pelo seu intenso poder de atração - qual buraco negro; durante a releitura, pese embora o facto de ter bem presente a história e o estilo despojado da narração, não deixei de ficar absorvido pelo mesmo.
A força desta obra começa pelo título, um dos mais originais que conheço dentro da literatura romanesca. Depois, toda a embriagante (em alguns momentos quase tóxica) ambiência do enredo - negra, perturbadora, por vezes até brutal.
De um modo muito esquemático (o próprio texto de Tavares é um tanto ao quanto esquemático, sem que isso seja necessariamente um defeito; é, no entanto, um pouco mais convencional em termos estruturais e narrativos do que Jerusalém), esta obra trata da ascensão e queda de Lenz Buchmann, um prestigiado e ultracompetente cirurgião que se deixa encantar por uma carreia na política (com as possibilidades conferidas pelo poder: o respeito ou o medo perante a superioridade do poderoso) no seio de um inominado (mas imponente) Partido. O protagonista é bastante sombrio (ou talvez mesmo negro): seguro das suas competências técnicas (enquanto cirurgião), Lenz é um ser totalmente frio em termos humanos (detesta, por exemplo, ver confundida a sua perícia em salvar vidas com bondade), falho de empatia ou compaixão pelos outros (pelos doentes, pelos mais "fracos"), cínico e amargo, marcado pelo rancor e pelo ódio, e com um gosto perverso em humilhar pobres, prostitutas, mulheres (a sua própria mulher).
Ao longo deste livro (como aliás por toda a tetralogia) há uma manifesta preocupação em refletir sobre a moral (sobre a maldade, a crueldade, a manipulação, a hipocrisia, a mentira, a traição, a conivência, a lei do mais forte, etc.), através do posicionamento no mundo e das ações do personagem principal. Há também uma abordagem propositadamente fria e dura sobre a doença (a degradação física, a implacabilidade, etc.); Lenz, outrora cirurgião não empático com os doentes  (não empático ou mesmo indiferente face à agressiva doença mortal de seu irmão mais velho), tornar-se-á ele próprio um doente (o forte torna-se fraco). A descrição pormenorizada do caráter nefasto do protagonista será, porventura, uma tentativa de jogar com os valores morais do leitor - isto é, Tavares despoja os leitores de qualquer simpatia por Lenz e dá-lhes uma justificação moral para por ele não sentirem qualquer compaixão (e de remorso por falta dessa compaixão) no momento em que é devorado pela doença (o leitor é eventualmente convidado a odiar de uma forma higiénica).
Como nos outros livros do autor, podem encontrar-se referências aos outros livros de "O Reino" (vemos, por exemplo, Joseph Walser deambular pelo hospital de Lenz sem um dos dedos da mão) ou, entre outros aspetos, à história recente da Europa (é possível ver no plano de Lenz e Kestner de provocar uma explosão num teatro uma referência ao incêndio do Reichtag alemão em 1933). Pessoalmente, vi no ocaso de Lenz uma reminiscência das danças macabras dos séculos XIV e XV, nas quais os poderosos (papas, imperadores, reis, cardeais, nobres), por muito poder que tenham no mundo terreno (ou na era da técnica) acabam por ser invariavelmente tragados pela morte...
Em conclusão, uma obra que consegue ser desconfortável e perturbante (e que certamente tem as suas limitações), que a meu ver vale bem a leitura (e as releituras).

segunda-feira, 11 de maio de 2015

"Alexandre O'Neill. Uma biografia literária", de Maria Antónia Oliveira

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«Recolhida toda a informação, cheguei ao momento da escrita com a certeza angustiada de que me falta saber muito sobre ele - que «toda a informação» não existia, e que nunca poderia reconstituir-lhe a vida, mas tão-só reconstruí-la, muito a partir de mim e da minha relação pessoal com o morto. Seria ingénuo pensar que uma biografia pode ser uma narrativa objectiva dos factos. Mas o problema ultrapassa o mero binómio objectividade / subjectividade. A verdade da vida do biografado é múltipla e contraditória. Se não assumir o seu lado quase ficcional, a tarefa do biógrafo arrisca-se a tornar-se um trabalho melancólico, cheio de tribulações e nunca acabado. É claro que ele não pode inventar factos, nem omiti-los. Mas possui a enorme liberdade de lhes dar forma. E a forma, todos o sabemos, é de tal maneira importante que faz com que, numa biografia, duas histórias se entrelacem: a do biografado, e a relação do biógrafo com o biografado.» (in Alexandre O'Neill. Uma biografia literária)
Há uns anos atrás, num contexto bem diferente do atual, escrevi um pequeno e entusiasmado artigo sobre este livro para uma publicação de público restrito. De um modo geral, o que hoje penso deste livro - pesem embora algumas variações - não é muito diferente da minha primeira opinião.
Para um leitor habitual de biografias históricas (isto é, que obedecem a uma metodologia própria da historiografia, assente numa rigorosa seleção e crítica de fontes), esta "biografia literária" dedicada ao poeta Alexandre O'Neill, de Maria Antónia Oliveira, poderia, à partida, conter vários pontos menos positivos; porém, tratando-se da biografia de um literato, e considerando-se que a autora não esconde as limitações do seu próprio trabalho, das suas próprias interpretações e conclusões, não me repugnam as liberdades literárias (quase romanescas, mas sem cair em exageros) que toma. Antes pelo contrário, devo dizer: o discurso da autora - livre (o'neilliano - permita-se-me utilizar este termo sem entrar em definições), com toques de humor, reflexões metabiográficos, confissões e deambulações pessoais - parece-me adequado (ainda que eu não aceitasse tão benevolentemente algumas das opções tomadas numa biografia de cariz historiográfico - considere-se, por exemplo, o que escrevi acerca de A Vida Perdida de Eva Braun, de Angela Lambert), tornando a leitura agradável e escorreita.
Na introdução a autora diz que a sua biografia é feita de samplers, querendo com isto significar que se vão sucedendo ao longo do texto as intervenções (resultantes de entrevistas) de um largo conjunto de pessoas que conviveram com o biografado. Tal mais correto fosse dizer que esta biografia tem bastantes semelhanças com os documentários televisivos, nos quais se vão sucedendo (numa determinada sequência e ordenação lógica) os testemunhos dos entrevistados. Assim sendo, alguns dos aspetos recolhidos nesta biografia, porque somente suportados na visão dos entrevistados, andam no domínio da opinião - a ideia que certos indivíduos fazem de um ou mais aspetos da vida do biografado.
Feitas estas apreciações gerais, não me debruçarei nos aspetos biográficos da biografia; em alternativa, lanço o convite à leitura a quem se cruze por acidente com estas palavras. Alexandre O'Neill, além de um poeta que aprecio (ando a equacionar voltar à sua obra poética), é uma personalidade com bastante interesse.

domingo, 10 de maio de 2015

"Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética", de Paul Celan

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Mais do que A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio (e seguramente mais do que Arte Poética. O Meridiano e outros textos), este Sete Rosas Mais Tarde. Antologia poética mostra de uma forma mais evidente as características da voz poética de Paul Celan - um certo hermetismo, ambiguidade, simbolismo ou mesmo esoterismo (em que a palavra ou o indizível são mistificados), mas também um tom sombrio ou pessimista (sendo que o tema da morte é frequente). As traduções pertencem a João Barrento e Y. K. Centeno, bem como os dois textos introdutórios de apresentação do autor e sua obra.

sábado, 9 de maio de 2015

"A História do Corpo Humano. Evolução, saúde e doença", de Daniel E. Lieberman

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A leitura deste livro decorre de uma casualidade: tendo participado num passatempo, ganhei-o como prémio. À primeira vista, um livro com o título A História do Corpo Humano poderia indiciar uma obra historiográfica, à semelhança - por exemplo - da História do Corpo dirigida por Alain Corbin, tratando do modo como o corpo foi sendo visto e compreendido ao longo do tempo (as técnicas da medicina, as práticas higiénicas, a moral e os tabus, o conceito de beleza e o modo de representação nas artes, a alimentação, etc.). Porém, A História do Corpo Humano. Evolução, saúde e doença, de Daniel E. Lieberman, não é um livro de história - como o subtítulo já deixa adivinhar -, mas antes, diria, de "história natural" - no sentido oitocentista de tal designação; o seu autor, esclareça-se, é professor de Biologia Evolutiva na Universidade de Harvard.
À partida esta não é, pois, uma leitura óbvia para mim, mas tendo lido o índice, a informação da badana e da contracapa, decidi espreitar; acabei, lidas algumas páginas, por me decidir avançar por me parecer uma leitura de interesse. De facto, não me enganei: esta foi não apenas uma leitura muito válida, como constituiu uma agradável surpresa.
Esta obra trata, pois, da evolução biológica do corpo, das adaptações do mesmo às inovações introduzidas pelo homem - na sua dieta, atividade física, etc. - e suas consequências na saúde (no aparecimento e/ou maior frequência de certas doenças).
A primeira das três parte do livro ("Homens e Macacos") contém muita informação que é comum à antropologia e mesmo à arqueologia, uma vez que aborda a evolução do Homem até ao Paleolítico Superior (sobretudo na perspetiva fisiológica - nomeadamente a conquista do bipedismo, o aumento do tamanho do cérebro -,ainda que abordando, por ser inevitável, um conjunto de aspetos culturais); a segunda parte detém-se nas alterações que a passagem da condição de caçador-recolector a agricultor trouxeram à vida humana (e respetivos impactos no corpo humano, "preparado", através de um longo processo de evolução, para uma determinada situação), bem como as alterações resultantes da industrialização
«Os últimos 150 anos transformaram profundamente o modo como comemos, trabalhamos, viajamos, combatemos a doença, nos mantemos limpos e até como dormimos. É como se a espécie humana tivesse sofrido uma remodelação total: a nossa vida diária mal seria compreendida pelos antepassados de há apenas algumas gerações, mas basicamente continuamos idênticos a nível genético, anatómico e fisiológico. A mudança tem sido tão rápida que passou muito pouco tempo para ter havido mais do que um mínimo de seleção natural
A terceira e última parte relaciona as (rápidas, abruptas, marcantes) alterações do padrão de vida humana (devidas às evoluções cultural e tecnológica) com um conjunto de doenças ("de incompatibilidade evolutiva" - isto é, incompatíveis com a situação para a qual o nosso corpo está adaptado - no que se refere ao gasto energético ou ao nível de exercício físico, por exemplo -, em resultado da já mencionada evolução); por outro lado, o autor defende que a biologia evolutiva poderá ajudar a compreender o caminho a seguir, de modo promover a saúde e minorar o impacto de certas doenças (como a obesidade, a diabetes de tipo 2, etc.).
«Até que ponto será o paradoxo atual das tendências da saúde humana - mais pessoas que ficam mais velhas, mas que também sofrem com mais frequência e durante maiores períodos de tempo de doenças crónicas e dispendiosas - pura e simplesmente o preço a pagar pelo progresso?»

«Apesar do recente progresso na medicina e no saneamento, muito de nós estão a ficar doentes com uma vasta gama de doenças que costumavam ser raras ou desconhecidas. Cada vez mais, essas doenças apresentam-se como problemas crónicos não contagiosos, muitos dos quais surgidos por termos feitos demasiado progresso
A escrita de Lieberman é clara, simples (sem ser simplista, quero crer), com alguns toques de humor e referências à nossa vida e cultura cosmopolita; as suas explicações e perspetivas pareceram-me bem fundamentadas e lógicas e considero muito feliz a estrutura da obra. Há que admitir, porém, que ao ler esta obra - ainda que a mesma seja acessível (afinal, trata-se de um livro de divulgação científica) - senti dificuldade em avaliar a pertinência ou relevância de certos argumentos e raciocínios (alguns assumidos como hipóteses) aventados pelo autor; a bem da verdade (e da honestidade intelectual) há que acrescentar que o autor vai chamando a atenção para as limitações de algumas das suas conclusões.
«Quer gostemos quer não, somos símios bípedes um pouco anafados e pelados que desejam açúcar, sal, gordura e amido, mas mesmo assim estamos adaptados para o consumo de uma dieta variada de frutos e legumes fibrosos, frutos secos, sementes, tubérculos e carne magra. Apreciamos o descanso e a descontração, mas o nosso corpo continua a ser a de um atleta de resistência que evoluiu para caminhar, e muitas vezes correr, muitos quilómetros por dia, bem como para escavar, trepar e transportar. Adoramos muitos confortos, mas não estamos adaptados para passar o dia no interior, sentados em cadeiras, com calçado com apoio, a olhar para livros ou ecrãs durante horas a fio. Consequentemente, milhares de milhões de pessoas sofrem de doença de abundância, novidade e desuso que costumavam ser raras ou desconhecidas. Tratamos depois os sintomas dessas doenças porque é mais fácil, mais rentável e mais urgente do que tratar as causas, muitas das quais até nem compreendemos. Ao fazê-lo, estamos a perpetuar um ciclo de retroação pernicioso - a desevolução - entre a cultura e a biologia