Bocage é um nome caricato no panorama da poesia portuguesa: conhecido por ser um versejador fácil, um repentista de cariz popular, mas também um mestre do soneto. Foi precisamente pelos seus sonetos que, há uns anos atrás, comecei a desbravar a obra bocagiana, ficando à época com uma ideia muito favorável da sua poesia (estilisticamente rica, culta - com múltiplas referências à cultura clássica, por exemplo -, com uma notório domínio linguístico). Julgo que não muito longe dessa leitura, pude ver com muito agrado na televisão pública uma série dedicada a este autor, a qual retratava, entre outros aspetos, o seu lado mais popular, mais brejeiro. Eis que, anos corridos, "tropecei" neste pequeno volume (quase de graça, como se diz no poema do Cesariny "
Rua da Bica Duarte Belo") das
Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas numa grande superfície comercial, enquanto me abastecia de um conjunto diversificado de consumíveis (na altura pareceu-me haver algo de irónico entre o local de compra e o livro-produto). O prefácio da ex-ministra e professora universitária Isabel Pires de Lima, por dar (pensei eu) alguma credibilidade à edição, motivou-me à compra.
De um modo geral, a linguagem de Bocage neste conjunto de poemas é desbragada, brejeira, explícita, entrando - bem ao gosto popular - nas temáticas sexual e escatológica (visível por exemplo neste epitáfio: «
Aqui dorme Bocage, o putanheiro; / Passou vida folgada, e milagrosa; / Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»). É manifesta também a sua faceta mais irónica, sarcástica ou mesmo cáustica: quando, por exemplo, Bocage mostra o seu anticlericalismo, acusando a hipocrisia de alguns clérigos concupiscentes e devassos que pregavam fanaticamente a moralidade; ou quando acusa a mediocridade (que significa apenas falta de originalidade, mas, segundo Bocage, do mais elementar talento) de autores da moda, muitas vezes académicos.
Em "Ribeirada", o poeta sadino (isto é, de Setúbal) canta "em tom grosseiro" (com o mesmo assume) sobre os dotes do avantajado "preto Ribeiro"; já em "A Manteigui", relata-se a história de uma mulher lasciva que se apaixona por um abonado negro (porém, o seu caráter insaciável leva à fuga do amante!). A veia cómica de Bocage é bem visível em "Décimas a um tabelião velho, que casou com uma moça nova" (em que descreve um velho impotente que, incapacitado de consumar o matrimónio, acaba por ser uma fraude e assim frustrar a sua jovem mulher) ou "Elegia à morte de uma famosa alcoviteira" (em que se alude à dona de um prostíbulo). Em alguns poemas, Bocage mostra o seu caráter marialvo: em "Diálogo entre o poeta e o Tejo", por exemplo, confessa-se "infernal" por "encornar" os fidalgos.
Se em "O Ciúme do Inferno" critica a crença no inferno, em "Epístola a Marília" Bocage revela abertamente o seu (já referido) anticlericalismo. Assim, critica o fanatismo do clero ("negros enxames") por pintar Deus com as cores mais negras (castigador, opressivo, vingador, inflexível), estratégia para gerar medo e submissão: «Ei-lo, em santo furor todo abrasado, / Hirto o cabelo, os olhos cor de fogo, / A maldição na boca, o fel, a espuma, / Ei-lo, cheio de um Deus tão mau como ele.»; acusa tal fanatismo de ser contrário à Natureza e, numa alusão à Inquisição, de causar dores e sofrimentos, quando não a morte. Por sua vez, defende um Deus da paz, da piedade, um Deus que considera o amor (inclusive o físico, e daí o convite a Marília para se entregar às "venais delícias") como sendo natural: «Amar é um dever, além de um gosto, / Uma necessidade, não um crime.» O fim é claramente provocatório: «Céus não existem, não existe inferno, / O prémio da virtude é a virtude, / É castigo do vício o próprio vício.»
Enquadrado pelas ideias iluministas (na crença na Razão, na existência de leis naturais, etc.), Bocage ataca, para além do fanatismo, o obscurantismo e a intolerância da religião. Tal posicionamento é bem visível em "Cartas de Olinda a Alzira" (poema constituído por uma troca de "epístolas" entre uma freira e uma mulher casada), em que se apoda de fraudulentos certos dogmas e preconceitos relativos, por exemplo, ao amor físico (tido, de novo, por natural). De caráter marcadamente erótico, por descrever de forma bastante gráfica as alterações ocorridas no corpo feminino durante o crescimento, o despontar do desejo e as "delícias do amor", este poema acusa a educação das mulheres de obscurantista - ao fecha-las em casa para as manter puras, ao tornar como valor incontestável a castidade, ao condenar o Amor. Assim, o medo e a insistência no pecado e na culpa funcionariam como uma forma de poder, de repressão sobre os ignorantes.
Curioso o remoque às "rondas" ordenadas pelo Intendente Pina Manique em "A empresa noturna" (poema que que se relata uma ida ao encontro de Nise, marcada por um prévio e animalesco "ataque" à criada): «Dormia tudo; e a ronda do Intendente / Que o grão Torquato rege, o pai das putas, / Esbirro-mor, Mecenas das tabernas (...)».
Os sonetos presentes nesta coletânea tocam os vários assuntos focados, sendo que alguns (pela comicidade mas seguramente também pela concisão da forma) são bastante populares - é o caso do seu autorretrato «
Magro, de olhos azuis, carão moreno, / Bem servido de pés, meão na altura, / Triste de faixa, o mesmo de figura, / Nariz alto no meio, e não pequeno: / (...) / Eis Bocage, em quem luz algum talento, / Saíram dele mesmo estas verdades / Num dia em que se achou cagando ao vento.»
Finalizo referindo-me à edição. Editar obras livres de direitos de autor pode acarretar (e tantas vezes acarreta) alguns perigos. Um deles, relativamente frequente na poesia, é o desrespeito pela fidelidade ao texto original (omitindo ou acrescentando-se pontuação, quebras de estrofe, etc.). Neste caso, a edição ("quase de graça") acabou por sair cara, dado o excessivo número de gralhas - que, estou certo, em alguns casos me terão passado despercebidos e feito perder o sentido original. A meu ver, tais falhas seriam facilmente dispensáveis se os responsáveis pela edição tivessem feito um simples revisão (isto é, uma simples leitura como a que fiz).