quinta-feira, 5 de junho de 2014

"Os Autos das Barcas", de Gil Vicente

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Quando se pensa em Gil Vicente, é inevitável referir-se o seu Auto da Barca do Inferno. Esta é, sem dúvida, uma das obras mais lidas e estudadas do autor, e talvez o seja por ser efetivamente uma das mais conseguidas.
Os três autos do presente volume - Auto da Barca do Inferno (1517; este é, seguramente, o mais cómico dos autos), Auto da Barca do Purgatório (1518; na verdade, nesta obra não existe qualquer barca que leve ao Purgatório) e Auto da Barca da Glória (1519; talvez o auto com um caráter moralizante mais vincado) -, têm um aspeto em comum (aliás frequente, pelo que me é dado conhecer, no teatro vicentino): os vários personagens vão entrando e saindo isoladamente do centro da ação, numa sucessão dos vários tipos sociais; estes interagem com o Diabo e com o Anjo e seguem o seu destino (uns embarcam na barca do Inferno, outros na da Glória, e outros ainda ficam estacionados nas margens do rio purgando os seus pecados - «Digo que andes assim / purgando nessa ribeira / até que o Senhor Deus queira / que te levem para Si / nesta bateira», assim disse o Anjo ao Lavrador).
A temática destas obras, como facilmente se depreende, é a do destino do Homem após a morte. A visão vicentina do além-morte coincide - ainda que com alguma liberdade poética - com a da ortodoxia católica: os pecados graves (soberba, corrupção moral, luxúria, simonia, ganância, blasfémia, roubo, etc.) levam ao Inferno, os mais leves (mudar marcos de delimitação de terrenos, misturar água no leite que se traz à venda, mentir e namoriscar, etc.) ao Purgatório, e a vida santa (apenas Joane, o Parvo - pela sua ingenuidade e falta de malícia - e os quatro cavaleiros que morreram em Guerra por Cristo, se salvam no primeiro dos autos; no segundo, apenas o Menino, ainda inocente; no terceiro auto, espantosamente todos se salvam). Assim, no Auto da Barca do Inferno o estatuto social (a linhagem, a pertença à Corte) ou o estado eclesiástico (o hábito, a pertença a uma ordem religiosa) não garantem salvação: tanto o Fidalgo (por ter sido tirano e explorado os seus inferiores) como o Frade (por ter levado uma vida de luxúria) acabam condenadas ao Inferno; também o dinheiro (no caso do Onzeneiro - que é como quem diz "usurário") e as práticas pias não acompanhadas por uma vida isenta de pecado (é o caso do Sapateiro) não garantiam a salvação...
Apesar de Gil Vicente seguir uma visão do além-morte concordante com a da Igreja, o autor não se inibe de criticar alguns dos abusos dessa instituição. No Auto da Barca do Inferno é colocada perante os olhos do público o caráter dissoluto da vida do Frade, que se faz acompanhar por uma mulher; por sua vez, a Alcoviteira, tentando entrar nas boas graças do Anjo, diz ter criado «(...) as meninas / para os cónegos da Sé»; as figuras eclesiásticas do Auto da Barca da Glória (o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa) mereciam, em bom rigor, tendo em conta os seus pecados graves, as penas infernais: o Diabo acusa-os de imoralidade e luxúria (o Bispo tinha filhos), ambição (nomeadamente do Arcebispo e do Cardeal em ascenderem ao título papal), ganância e soberba, simonia (no caso do Papa) - isto é, Gil Vicente aponta nas altas figuras da hierarquia católica (cuja vida deveria ser exemplar) os vícios mais graves... Porém, no final do Auto da Barca da Glória há uma clara concessão: estas altas dignidades (que, afinal, faziam parte do público cortesão que assistia às representações vicentinas) acabam por ser salvas, graças a uma intervenção divina... Também os Grandes (o Conde, o Duque, o Rei e o Imperador) são criticados neste auto (são acusados de ganância e soberba, injustiça - especialmente dirigida contra os mais fracos -, crueldade, tirania, etc.), mas acabam igualmente por se salvar...
Um aspeto interessante em Gil Vicente é o carinho demonstrado pelos elementos do povo. A vida dura e exploração dos populares (caracterizados como rústicos, simples, por vezes ingénuos) é bem demonstrada nas seguintes falas do Lavrador, no Auto da Barca do Purgatório: «Sempre é morto quem do arado / há-de viver. / Nós somos vida das gentes / e morte de nossas vidas.»
Findo este périplo por algumas das obras de Gil Vicente, posso com mais segurança reconhecer o valor daquele que é considerado o "pai" do teatro português...

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