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No centro do livro está, utilizando as palavras de Canetti (retiradas de um excerto de um ensaio seu, que serve de posfácio ao volume), um homem-livro, isto é, um ser quase sem traços humanos para além da sua devoção aos livros. Kien, o personagem principal, é um importante sinólogo, com uma memória prodigiosa e uma cultura imensa, cuja vida se confunde com o estudo no seio da sua rica biblioteca; porém, o percurso deste mal humorado e misantropo ser, praticamente associal (uma vez que procura limitar ao mínimo o seu contacto com os outros), vai alterar-se substancialmente quando decide casar-se com a sua inculta governanta (Teresa), por ter reparado, ao fim de vários anos de distante convívio, que ela cuidava bem dos seus livros. Rapidamente esta assume o seu estatuto de mulher e de senhora da casa (renunciando assim à mera condição de doméstica) e mostra o seu caráter materialista e ambicioso, fazendo cada vez mais exigências - a que Kien vai acedendo para poder ter o silêncio e a solidão que lhe são fundamentais para o seu estudo. Teresa vai açabarcando o espaço e os bens de Kien, até o expulsar totalmente de casa... Aqui começa a jornada do nosso protagonista (qual D. Quixote) pelo mundo real (não literário), durante a qual vai conhecer figuras verdadeiramente grotescas e sórdidas - como é o caso do corcunda Fischerle, um embusteiro e vigarista apaixonado por xadrez, que se vai tornar (qual Sancho Pança) criado do sinólogo...
A escrita de Canetti, bastante original ainda que porventura algo esquemática, revela um caráter potencialmente expressionista, visível num certo histrionismo, na presença do delírio, da loucura e da diluição da identidade individual, na tendência para o caricatural. É inegável o caráter irreal e fantástico de Auto de Fé, como é visível no seguinte excerto (Canetti procura a cumplicidade do leitor, ao convidá-lo a entrar na inverosimilhança): «- Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?»
Termino. Ao longo da leitura desta obra lembrei-me frequentemente da pintura Rua de Praga, de Otto Dix, de 1920; não exatamente pela presença de incapacitados (vítimas da Primeira Guerra Mundial na pintura), ainda que se possa ver em Fischerle uma espécie de incapacitado; a lembrança prende-se com o ambiente de decadência, de ruína, e até de imoralidade. Na pintura uma mão enluvada dá uma esmola (um selo) ao destroço humano, sem pernas, sem o braço esquerdo e com os olhos fundos, que pedincha em frente a uma loja de próteses; em Auto de Fé, há um mendigo cego atormentado pela maldade de quem, em vez de moedas, lhe deixa botões... E à direita, uma volumosa saia faz lembrar a saia azul de Teresa...
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