quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

"Auto de Fé", de Elias Canetti

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Honestamente, já não sei como cheguei a este Auto de Fé e ao seu autor, Elias Canetti. Sei que há cerca de um ano procurei este livro, que o encontrei numa biblioteca familiar e o trouxe para casa, onde o juntei à pilha de livros para ler a breve ou médio prazo. Sei também que vi o livro Massa e Poder, editado não há muito no nosso país, nos escaparates das livrarias após este meu contacto. Teria chegado a Canetti através de uma qualquer referência num dos livros lidos o ano transato? A verdade é que não sei. Canetti não é, seguramente, dos autores mais referidos da literatura, pese embora ter sido galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1981 - quarenta e seis anos depois da publicação do seu primeiro romance, Auto de Fé.
No centro do livro está, utilizando as palavras de Canetti (retiradas de um excerto de um ensaio seu, que serve de posfácio ao volume), um homem-livro, isto é, um ser quase sem traços humanos para além da sua devoção aos livros. Kien, o personagem principal, é um importante sinólogo, com uma memória prodigiosa e uma cultura imensa, cuja vida se confunde com o estudo no seio da sua rica biblioteca; porém, o percurso deste mal humorado e misantropo ser, praticamente associal (uma vez que procura limitar ao mínimo o seu contacto com os outros), vai alterar-se substancialmente quando decide casar-se com a sua inculta governanta (Teresa), por ter reparado, ao fim de vários anos de distante convívio, que ela cuidava bem dos seus livros. Rapidamente esta assume o seu estatuto de mulher e de senhora da casa (renunciando assim à mera condição de doméstica) e mostra o seu caráter materialista e ambicioso, fazendo cada vez mais exigências - a que Kien vai acedendo para poder ter o silêncio e a solidão que lhe são fundamentais para o seu estudo. Teresa vai açabarcando o espaço e os bens de Kien, até o expulsar totalmente de casa... Aqui começa a jornada do nosso protagonista (qual D. Quixote) pelo mundo real (não literário), durante a qual vai conhecer figuras verdadeiramente grotescas e sórdidas - como é o caso do corcunda Fischerle, um embusteiro e vigarista apaixonado por xadrez, que se vai tornar (qual Sancho Pança) criado do sinólogo...
A escrita de Canetti, bastante original ainda que porventura algo esquemática, revela um caráter potencialmente expressionista, visível num certo histrionismo, na presença do delírio, da loucura e da diluição da identidade individual, na tendência para o caricatural. É inegável o caráter irreal e fantástico de Auto de Fé, como é visível no seguinte excerto (Canetti procura a cumplicidade do leitor, ao convidá-lo a entrar na inverosimilhança): «- Agora ajude-me a descarregar os livros, por favor - disse-lhe Kien sem mais preâmbulos, assombrado com a sua própria ousadia. Para evitar qualquer pergunta capciosa, tirou da sua própria cabeça uma pilha de livros e passou-a ao anão. Este recebeu-a destramente entre os seus compridos braços e exclamou: - Ena tantos! Onde quer que os ponha?» 
Termino. Ao longo da leitura desta obra lembrei-me frequentemente da pintura Rua de Praga, de Otto Dix, de 1920; não exatamente pela presença de incapacitados (vítimas da Primeira Guerra Mundial na pintura), ainda que se possa ver em Fischerle uma espécie de incapacitado; a lembrança prende-se com o ambiente de decadência, de ruína, e até de imoralidade. Na pintura uma mão enluvada dá uma esmola (um selo) ao destroço humano, sem pernas, sem o braço esquerdo e com os olhos fundos, que pedincha em frente a uma loja de próteses; em Auto de Fé, há um mendigo cego atormentado pela maldade de quem, em vez de moedas, lhe deixa botões... E à direita, uma volumosa saia faz lembrar a saia azul de Teresa...

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