segunda-feira, 30 de junho de 2014

"O Velho que Lia Romances de Amor", de Luis Sepúlveda

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Quando li O Velho que Lia Romances de Amor pela primeira vez, há já uns bons anos atrás, este era, por assim dizer, um livro da moda: toda a gente lera ou, se não tanto, pelo menos conhecia. Tratava-se, pois, de um bestseller, e cá em Portugal ia conhecendo repetida edições. Na altura foi-me recomendado, e eu - um leitor ainda em formação, sem meu próprio gosto - li-o com agrado apesar de não ter ficado marcado por ele. Andei estes anos todos afastado do livro, que entretanto se tornou objeto de recomendação a jovens e adultos em formação, bem como do autor, que entretanto continuou a publicar outras obras (talvez nenhuma, ao que julgo, com tanto impacto como O Velho...).
Regresso agora a este livro graças a uma conversa - uma das conversas sobre livros que mais me marcou, desde que sou leitor. De um modo apaixonado, foram-me recordados os contornos da história e simplicidade, limpidez e sensibilidade da escrita. E eu, mais do que sintetizar a história ou tentar descrever-lhe as características, confirmo apenas estas impressão: trata-se realmente de um bom livro, simpático, muito bem escrito e, sim, sensível. Não merecerá, por estes atributos, a leitura?

quinta-feira, 26 de junho de 2014

"O viajante do século", de Andrés Neuman

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Embora este O Viajante do Século não seja nenhuma obra maior, é ainda assim um livro que se lê com muito agrado. Andrés Neuman revela-nos neste livro um bom contador de histórias; a sua escrita, por outro lado, é bastante fluída mas com uma certa graça (em certas passagens consegue ser quase poética - ou não estivesse a história também ligada à poesia e à tarefa / necessidade / dificuldade de traduzi-la para outra língua). A tradução de Vasco Gato é muito boa - e quase consigo imaginar o prazer do tradutor a traduzir as páginas que se desenrolam em torno da tradução...
A ação do livro passa-se na cidade imaginária (e de geografia incerta, instável) de Wandernburgo, algures na Alemanha. A este local chega Hans, um tradutor em trânsito que acaba por ficar - contra os seus planos iniciais - ao se relacionar com algumas figuras, como é o caso do tocador de realejo (há aqui, claramente, uma ligação ao ciclo de canções de Schubert, "A Viagem de Inverno", com poemas de Wilhelm Müller), o espanhol Álvaro e Sophie, por quem se apaixona.
É profundamente (e, ao que julgo, propositadamente) anacrónico este romance: os personagens, apesar de se moverem nas primeiras décadas século XIX, têm atitudes, modos de pensar, preocupações muito contemporâneas. Algumas das discussões (políticas, filosóficas, estéticas) ocorridas no salão de Sophie Gottlieb permitem duplas leituras, sendo que uma dela nos transporta para a atualidade (a reflexão, por exemplo, sobre a identidade da Europa - cultural, política, etc. - e a aparente falta de rumo).

sábado, 21 de junho de 2014

"Todas as Palavras. Poesia reunida", de Manuel António Pina

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Há uns bons anos atrás (uma década?), sendo eu então um leitor de poesia menos "viajado", li parte do volume então publicado com a poesia reunida de Manuel António Pina. O poeta era-me conhecido de nome, mas o confronto com a sua poesia não me entusiasmou - desisti da leitura e segui o meu caminho. Entretanto, ao longo dos anos fui lendo, aqui e ali, vários poemas do autor (além de seguir com alguma frequência as suas crónicas no Jornal de Notícias) e o interesse cresceu. Cheguei talvez um pouco tarde à sua poesia, mas o que interessa (neste como noutros casos) é que cheguei.
Durante uns bons meses fui lendo entusiasmado os poemas deste seu último livro. Vários foram os poemas que me impressionaram, especialmente aqueles em que a componente humana (biográfica) é mais vincada - são os casos, por exemplo, dos poemas "Farewell Happy Fields" ou "Cuidados Intensivos". Não pude deixar de me deslumbrar igualmente com os versos que o autor dedicou à poesia, ao amor pelos livros ou mesmo aos gatos.
A meu ver, a poesia de Manuel António Pina é singular e merece, assim, a visita frequente.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

"A Morte sem Mestre", de Herberto Helder

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Eu gosto da poesia de Herberto Helder. Dito isto, posso dizer que abomino o folclore em torno dos seus livros; julgo, porém, que ao autor agradará esta abominação (expectável, aliás), caso contrário não repetia - ou deixava repetir - a graça pela terceira vez: publicitação do livro apenas com uma semana de antecedência, edição única (e com um preço pouco acessível - pelo menos para alguns), número limitado de exemplares (limitado pela dimensão da entusiástica procura, porque no nosso país é uma anormalidade haver uma edição de poesia limitada a cinco, sete ou dez mil exemplares), corrida louca para apanhar um livinho (ou dois ou três, porque há quem compre a pensar exclusivamente na revenda imediata, a preços imoralmente inflacionados), reais interessados na obra do poeta que ficam de mãos a abanar... Herberto Helder é colocado (e eu mesmo lá coloco flores algumas vezes - mea culpa, mea culpa) num altar muito próprio, como se se tratasse de uma qualquer impoluta divindade poética; não retirando valor à sua poesia (que, como comecei por dizer, admiro), dou por mim a imaginar - especialmente após a leitura deste livro - um riso de escárnio vindo lá do "último andar esquerdo".
Tal como acontecera com Servidões, este livro conseguiu surpreender-me (e repare-se que desta vez até estava preparado). Pessoalmente acho A Morte sem Mestre um livro mais desigual, menos equilibrado, mas tem poemas arrebatadores, com um toque de acidez muito próprio... E mais não ouso dizer.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

"Guarda-me contigo entre as papoilas", de Carlos Lopes Pires

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Por vezes, o destino toma certas liberdades poéticas. Este livro é, de certa forma, uma dessas liberdades poéticas, na medida em que me foi gentilmente ofertado pelo autor num momento em que o tom dos poemas ali constantes se aproximavam das vivências deste leitor.
Como já tenho dito, não tenho muita facilidade em expressar-me sobre poesia - gosto de ler, sei o que gosto de ler, estou consciente das razões das minhas preferências; dizer mais do que isto é sempre arriscado. Porém, ainda assim, escreverei duas ou três linhas sobre este Guarda-me contigo entre as papoilas, de Carlos Lopes Pires.
Um dos aspetos que apreciei neste conjunto de poemas é a sensibilidade expressiva do autor. Há ao longo das páginas um núcleo de palavras que se vão repetindo, a começar pelas papoilas (que estão não somente no título, como também na bonita ilustração da capa - mas há também as cerejas, os muros, os pássaros, etc.), e que remetem para um tempo passado, para a infância e pelo convívio com a natureza e com o mundo rural (seus lugares, objetos, ritmos). A família (os pais, desde logo - o livro é dedicado à mãe autor), as memórias (de tempos mais simples, inocentes, inconsequentes), o envelhecimento, a perda (e a ausência, a  saudade, a falta), envolvidos numa vivência assumidamente cristã, são os vértices - a meu ver - deste livro.
À sensibilidade da expressão poética, termino, junta-se a simpatia do autor. Não que isto seja importante na estrita apreciação do livro, mas não podia deixar de o expressar, reconhecidamente.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

"O Retrato do Sr. W.H.", de Oscar Wilde

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«Nenhum homem morre por algo que sabe ser verdade. Os homens morrem por aquilo que pretendem ser verdadeiro, pelo que o terror nos seus corações lhes diz não ser verdade.» (in O Retrato do Sr. W.H.)
Neste O Retrato do Sr. W.H, Oscar Wilde mistura, com uma inegável mestria, ficção e ensaio. Pouco tempo depois de ter lido O Crime de Lorde Arthur Savile, de características muito diferentes (nomeadamente no tipo de escrita), consegui encontrar nesta novela mais razões para apreciar este autor.
A história deste livro constrói-se em torno de uma teoria literária - neste caso, uma mera construção intelectual - sobre o misterioso dedicatário (Sr. W.H.) dos sonetos de William Shakespeare... Para mim, o interesse deste livro reside, mais do que as questões relativas à interpretação dos sonetos shakespeareanos (que Wilde trata pormenorizadamente, detendo-se, por exemplo, em extensas citações dos sonetos no segundo capítulo), no modo como Wilde reflete sobre as ideias de falsificação - o tal retrato forjado de um deduzido jovem ator chamado Willie Hughes - e de teorização. Neste caso, o tratamento feito por Oscar Wilde da questão referida fez-me refletir sobre o modo como se edificam as chamadas "teorias da conspiração" e outras similares, que - à falta de provas concretas, racionais, sólidas, verificáveis - se servem de argumentos como "a falta de provas é em si mesma uma prova" (!), forçam a informação (omitindo certos factos, sublinhando aspetos acessórios, etc.) ou forjam dados (quando se chega a este patamar estamos perante o caráter fundamentalista, por vezes fanático, de tais "teses")... Outros aspetos que apreciei foram os câmbios entre crença e descrença dos dois personagens principais (o narrador e o seu amigo Erskine), e o modo como se levaram as conjeturas teóricas até ao limite do aceitável, do verosímil, do sensato e racional...

quinta-feira, 5 de junho de 2014

"Os Autos das Barcas", de Gil Vicente

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Quando se pensa em Gil Vicente, é inevitável referir-se o seu Auto da Barca do Inferno. Esta é, sem dúvida, uma das obras mais lidas e estudadas do autor, e talvez o seja por ser efetivamente uma das mais conseguidas.
Os três autos do presente volume - Auto da Barca do Inferno (1517; este é, seguramente, o mais cómico dos autos), Auto da Barca do Purgatório (1518; na verdade, nesta obra não existe qualquer barca que leve ao Purgatório) e Auto da Barca da Glória (1519; talvez o auto com um caráter moralizante mais vincado) -, têm um aspeto em comum (aliás frequente, pelo que me é dado conhecer, no teatro vicentino): os vários personagens vão entrando e saindo isoladamente do centro da ação, numa sucessão dos vários tipos sociais; estes interagem com o Diabo e com o Anjo e seguem o seu destino (uns embarcam na barca do Inferno, outros na da Glória, e outros ainda ficam estacionados nas margens do rio purgando os seus pecados - «Digo que andes assim / purgando nessa ribeira / até que o Senhor Deus queira / que te levem para Si / nesta bateira», assim disse o Anjo ao Lavrador).
A temática destas obras, como facilmente se depreende, é a do destino do Homem após a morte. A visão vicentina do além-morte coincide - ainda que com alguma liberdade poética - com a da ortodoxia católica: os pecados graves (soberba, corrupção moral, luxúria, simonia, ganância, blasfémia, roubo, etc.) levam ao Inferno, os mais leves (mudar marcos de delimitação de terrenos, misturar água no leite que se traz à venda, mentir e namoriscar, etc.) ao Purgatório, e a vida santa (apenas Joane, o Parvo - pela sua ingenuidade e falta de malícia - e os quatro cavaleiros que morreram em Guerra por Cristo, se salvam no primeiro dos autos; no segundo, apenas o Menino, ainda inocente; no terceiro auto, espantosamente todos se salvam). Assim, no Auto da Barca do Inferno o estatuto social (a linhagem, a pertença à Corte) ou o estado eclesiástico (o hábito, a pertença a uma ordem religiosa) não garantem salvação: tanto o Fidalgo (por ter sido tirano e explorado os seus inferiores) como o Frade (por ter levado uma vida de luxúria) acabam condenadas ao Inferno; também o dinheiro (no caso do Onzeneiro - que é como quem diz "usurário") e as práticas pias não acompanhadas por uma vida isenta de pecado (é o caso do Sapateiro) não garantiam a salvação...
Apesar de Gil Vicente seguir uma visão do além-morte concordante com a da Igreja, o autor não se inibe de criticar alguns dos abusos dessa instituição. No Auto da Barca do Inferno é colocada perante os olhos do público o caráter dissoluto da vida do Frade, que se faz acompanhar por uma mulher; por sua vez, a Alcoviteira, tentando entrar nas boas graças do Anjo, diz ter criado «(...) as meninas / para os cónegos da Sé»; as figuras eclesiásticas do Auto da Barca da Glória (o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa) mereciam, em bom rigor, tendo em conta os seus pecados graves, as penas infernais: o Diabo acusa-os de imoralidade e luxúria (o Bispo tinha filhos), ambição (nomeadamente do Arcebispo e do Cardeal em ascenderem ao título papal), ganância e soberba, simonia (no caso do Papa) - isto é, Gil Vicente aponta nas altas figuras da hierarquia católica (cuja vida deveria ser exemplar) os vícios mais graves... Porém, no final do Auto da Barca da Glória há uma clara concessão: estas altas dignidades (que, afinal, faziam parte do público cortesão que assistia às representações vicentinas) acabam por ser salvas, graças a uma intervenção divina... Também os Grandes (o Conde, o Duque, o Rei e o Imperador) são criticados neste auto (são acusados de ganância e soberba, injustiça - especialmente dirigida contra os mais fracos -, crueldade, tirania, etc.), mas acabam igualmente por se salvar...
Um aspeto interessante em Gil Vicente é o carinho demonstrado pelos elementos do povo. A vida dura e exploração dos populares (caracterizados como rústicos, simples, por vezes ingénuos) é bem demonstrada nas seguintes falas do Lavrador, no Auto da Barca do Purgatório: «Sempre é morto quem do arado / há-de viver. / Nós somos vida das gentes / e morte de nossas vidas.»
Findo este périplo por algumas das obras de Gil Vicente, posso com mais segurança reconhecer o valor daquele que é considerado o "pai" do teatro português...