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Ainda na senda de Gil Vicente, acabo de reler um conjunto de seis obras de cariz satírico, reunidas num mesmo volume: Auto da Índia, Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira, O Juiz da Beira, Farsa dos Almocreves e Romagem dos Agravados. Mais uma vez, tal como escrevi para Auto da Feira, senti bastante prazer na revisitação destes autos e farsas - os "tipos" vicentinos continuam, à luz de alguma (indispensável) contextualização histórica, a respirar frescura... Claro está que gostei mais de umas (impossível não destacar o Auto da Índia - com as infidelidades da Ama - e a Farsa de Inês Pereira) do que de outras, mas em todas estas obras vicentinas está presente o tipo de humor, de mordacidade, mas também de acutilante crítica social que caracterizam o autor ("verdades entre gracejos", como se lhe terá referido o humanista André de Resende).
Os nobres (lembremos que os que viviam na corte assistiam às representações vicentinas, e que alguns personagens pretendiam representar pessoas reais, facilmente reconhecíveis pelo público...) são especialmente satirizados na Farsa dos Almocreves e na Romagem dos Agravados, como soberbos, interesseiros e, de certo modo, ociosos e inúteis. A primeira destas obras retrata um Fidalgo que, não tendo rendas para isso, quer viver acima das suas capacidades (tal como na crítica vicentina aos escudeiros, Gil Vicente brinca com esta tendência para viver das aparências... - ponto que, arriscaria dizer, persiste hoje em dia na mente e no agir de tantos), contando com vários "oficiais" (ourives, capelão) no seu séquito; porém, estes servidores vivem pobremente por não serem pagos pelos seus serviços... e ficam igualmente por pagar as fazendas trazidas pelo almocreve. A pontuar isto, a queixa do Fidalgo: que os seus servidores são uns ladrões e se fazem pagar caro (considerando que servi-lo é já uma honra)! Um dos fidalgos que figura em Romagem dos Agravados queixa-se, por sua vez, da sua falta de rendimentos e do facto do rei não o erigir à dignidade de conde, ainda que das Berlengas!
Figuras especialmente visadas pela sátira vicentina são os escudeiros (presentes em Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira e O Juiz da Beira), figuras algo anacrónicas à época. São retratados como ociosos, fanfarrões, sem nada de seu (condenando à miséria os seus moços), apesar dos seus ares altivos e ambições sociais (de virem a ascender a cavaleiros). Brás da Mata, com o qual se casa Inês Pereira, por exemplo, é pintado como, além de pobre e vivendo de aparências (sabe falar galante e tocar um instrumento), um ser mentiroso (diz-se cortesão), sem escrúpulos, ciumento, tirânico («Se eu disser: "Isto é um novelo", / havei-lo de confirmar. / E mais, quando eu vier / de fora, haveis de tremer; / e coisa que vós digais / não vos há-de valer mais / que aquilo que eu quiser.»; condena mesmo a mulher a uma estrita clausura na sua ausência, não lhe permitindo quaisquer divertimentos), além de covarde (é morto por um pastor mouro em terras africanas)...
A crítica ao clero não está ausente destas páginas (pense-se que este tipo de crítica terá mesmo valido ao autor alguma perseguição nos seus últimos anos de vida - cft. críticas às indulgências no Auto da Feira, questão que à época dividia o mundo cristão): os clérigos aparecem-nos caracterizados como incultos, viciosos, abusivos, hipócritas... Na Romagem dos Agravados Frei Paço pretende representar os clérigos palacianos, pintado como mal sabendo rezar e vivendo sobretudo das aparências, mexeriqueiro, traidor e corrupto; Frei Narciso, por sua vez, está agravado por não ver correspondida a sua ambição em ser bispo... Já na Farsa de Inês Pereira se diz que um clérigo se atirou a uma amiga desta...
Os camponeses são vistos como ingénuos e ignorantes, mas, no fundo, seres de bom coração. Pêro Marques, desde logo, o pretendente recusado por Inês Pereira (mas depois, após a má experiência com o escudeiro Brás da Mata, aceite - "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube", lembre-se, é o mote da farsa), ilustra bem esta caracterização; isto apesar da falta de sensatez das suas sentenças como juiz (chega a citar um burro, objeto em discussão num caso de partilhas!)... Já o camponês que entra na Romagem dos Agravados se queixa de Deus, por não lhe dar tempo propício à agricultura, por lhe matar os seus - blasfémias perdoáveis pela sua simplicidade; mais do que isso, queixa-se (e nisto talvez se sinta alguma solidariedade de Gil Vicente com os camponeses) das duras condições da sua vida...
Além destes "tipos", Gil Vicente inclui também nas suas obras judeus (como casamenteiros algo perversos na Farsa de Inês Pereira, mas caracterizados menos negativamente na figura do sapateiro queixoso de O Juiz da Beira), regateiras e pastoras (queixosas de várias situações amorosas), freiras (apenas se queixam da sua clausura - não há comparação com a crítica, bastante mais incisiva, feita aos clérigos...), entre outros.
Gil Vicente em mais de uma situação se mostra favorável à conformação de cada um com a sua origem social; a ambição de ascensão (dos escudeiros, dos vilãos, etc.) é, assim, objeto de crítica. O autor, por exemplo, debruça-se sobre o excesso de pessoas ligadas à Corte e sobre a ambição de muitos em pertencerem a esse círculo («Cedo não haverá vilãos: / Todos d'El-Rei, todos d'El-Rei!» - Farsa dos Almocreves) - pois se, em função da "prosperidade" advinda dos Descobrimentos, aumentou o número de funcionários ligados às instituições de poder central, também se verificou (e Gil Vicente denuncia-o) algum abandono (ou não desenvolvimento) das atividades agrícola e artesanal, contribuindo para se depender da importação de quase tudo! A administração é, também ela, tocada pela crítica vicentina: «Eles são os presidentes / e os mesmos requerentes» (Romagem dos Agravados)...
Em breve, conto terminar este meu périplo pela obra vicentina revisitando os três autos das barcas...
Os nobres (lembremos que os que viviam na corte assistiam às representações vicentinas, e que alguns personagens pretendiam representar pessoas reais, facilmente reconhecíveis pelo público...) são especialmente satirizados na Farsa dos Almocreves e na Romagem dos Agravados, como soberbos, interesseiros e, de certo modo, ociosos e inúteis. A primeira destas obras retrata um Fidalgo que, não tendo rendas para isso, quer viver acima das suas capacidades (tal como na crítica vicentina aos escudeiros, Gil Vicente brinca com esta tendência para viver das aparências... - ponto que, arriscaria dizer, persiste hoje em dia na mente e no agir de tantos), contando com vários "oficiais" (ourives, capelão) no seu séquito; porém, estes servidores vivem pobremente por não serem pagos pelos seus serviços... e ficam igualmente por pagar as fazendas trazidas pelo almocreve. A pontuar isto, a queixa do Fidalgo: que os seus servidores são uns ladrões e se fazem pagar caro (considerando que servi-lo é já uma honra)! Um dos fidalgos que figura em Romagem dos Agravados queixa-se, por sua vez, da sua falta de rendimentos e do facto do rei não o erigir à dignidade de conde, ainda que das Berlengas!
Figuras especialmente visadas pela sátira vicentina são os escudeiros (presentes em Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira e O Juiz da Beira), figuras algo anacrónicas à época. São retratados como ociosos, fanfarrões, sem nada de seu (condenando à miséria os seus moços), apesar dos seus ares altivos e ambições sociais (de virem a ascender a cavaleiros). Brás da Mata, com o qual se casa Inês Pereira, por exemplo, é pintado como, além de pobre e vivendo de aparências (sabe falar galante e tocar um instrumento), um ser mentiroso (diz-se cortesão), sem escrúpulos, ciumento, tirânico («Se eu disser: "Isto é um novelo", / havei-lo de confirmar. / E mais, quando eu vier / de fora, haveis de tremer; / e coisa que vós digais / não vos há-de valer mais / que aquilo que eu quiser.»; condena mesmo a mulher a uma estrita clausura na sua ausência, não lhe permitindo quaisquer divertimentos), além de covarde (é morto por um pastor mouro em terras africanas)...
A crítica ao clero não está ausente destas páginas (pense-se que este tipo de crítica terá mesmo valido ao autor alguma perseguição nos seus últimos anos de vida - cft. críticas às indulgências no Auto da Feira, questão que à época dividia o mundo cristão): os clérigos aparecem-nos caracterizados como incultos, viciosos, abusivos, hipócritas... Na Romagem dos Agravados Frei Paço pretende representar os clérigos palacianos, pintado como mal sabendo rezar e vivendo sobretudo das aparências, mexeriqueiro, traidor e corrupto; Frei Narciso, por sua vez, está agravado por não ver correspondida a sua ambição em ser bispo... Já na Farsa de Inês Pereira se diz que um clérigo se atirou a uma amiga desta...
Os camponeses são vistos como ingénuos e ignorantes, mas, no fundo, seres de bom coração. Pêro Marques, desde logo, o pretendente recusado por Inês Pereira (mas depois, após a má experiência com o escudeiro Brás da Mata, aceite - "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube", lembre-se, é o mote da farsa), ilustra bem esta caracterização; isto apesar da falta de sensatez das suas sentenças como juiz (chega a citar um burro, objeto em discussão num caso de partilhas!)... Já o camponês que entra na Romagem dos Agravados se queixa de Deus, por não lhe dar tempo propício à agricultura, por lhe matar os seus - blasfémias perdoáveis pela sua simplicidade; mais do que isso, queixa-se (e nisto talvez se sinta alguma solidariedade de Gil Vicente com os camponeses) das duras condições da sua vida...
Além destes "tipos", Gil Vicente inclui também nas suas obras judeus (como casamenteiros algo perversos na Farsa de Inês Pereira, mas caracterizados menos negativamente na figura do sapateiro queixoso de O Juiz da Beira), regateiras e pastoras (queixosas de várias situações amorosas), freiras (apenas se queixam da sua clausura - não há comparação com a crítica, bastante mais incisiva, feita aos clérigos...), entre outros.
Gil Vicente em mais de uma situação se mostra favorável à conformação de cada um com a sua origem social; a ambição de ascensão (dos escudeiros, dos vilãos, etc.) é, assim, objeto de crítica. O autor, por exemplo, debruça-se sobre o excesso de pessoas ligadas à Corte e sobre a ambição de muitos em pertencerem a esse círculo («Cedo não haverá vilãos: / Todos d'El-Rei, todos d'El-Rei!» - Farsa dos Almocreves) - pois se, em função da "prosperidade" advinda dos Descobrimentos, aumentou o número de funcionários ligados às instituições de poder central, também se verificou (e Gil Vicente denuncia-o) algum abandono (ou não desenvolvimento) das atividades agrícola e artesanal, contribuindo para se depender da importação de quase tudo! A administração é, também ela, tocada pela crítica vicentina: «Eles são os presidentes / e os mesmos requerentes» (Romagem dos Agravados)...
Em breve, conto terminar este meu périplo pela obra vicentina revisitando os três autos das barcas...
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