segunda-feira, 22 de julho de 2013

"A Queda de Roma e o Fim da Civilização", de Bryan Ward-Perkins

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Existe inevitavelmente uma estreita relação entre a forma como vemos o nosso mundo e a forma como interpretamos o passado. Por exemplo, existe por certo uma ligação entre as interpretações dos invasores germânicos como principalmente pacíficos e o sucesso notável (e merecido) que a Alemanha moderna alcançou na construção de uma identidade nova e positiva no seio da Europa, depois dos anos desastrosos do nazismo. As imagens dos povos germânicos do século V e da sua ocupação do Império do Ocidente mudaram drasticamente desde a Segunda Guerra Mundial, tal como se alteraram as ideias sobre os alemães modernos e o seu papel na nova Europa. (in B. Ward-Perkins, A Queda de Roma e o Fim da Civilização)
Nova releitura: desta vez "A Queda de Roma e o Fim da Civilização", de Bryan Ward-Perkins, livro que comprei quando saiu, por tratar um tema que me interessa bastante - o fim do Império Romano do Ocidente.
A perspetiva do autor choca com a visão atenuada ou suavizada das invasões germânicas (ou "bárbaras" - repare-se que a exclusão deste termo, por encerrar em si uma certa conotação negativa, já significa uma amenização) ocorridas no século V, visão essa que vem sendo sustentada por vários estudiosos nas últimas décadas.
Ward-Perkins defende que, ao cair Roma, desapareceu uma civilização (apesar de admitir que tal termo possa encerrar um sentido de "superioridade moral", o autor prefere utilizar este a outros mais neutros, é certos, mas talvez por isso mesmo menos expressivos); é, pois, contrário à perspetiva que postula uma mera "transformação do mundo romano" (uma evolução, sem rutura), isto é, um processo gradual de integração dos povos germânicos, ou - no fundo - apenas uma migração de povos que implicou várias trocas culturais (visão "politicamente correta", eventualmente mais neutra e confortável para certos países europeus).
As invasões germânicas, segundo o autor, foram inegavelmente violentas e, por isso mesmo, tiveram um forte impacto nas populações que viviam no império; a fixação dos povos invasores, longe de ter sido somente uma "acomodação", implicou a perda de terra pelos povos invadidos e acarretou um conjunto vasto de consequências, tais como o desaparecimento do conforto (por exemplo, a telha deixou de ser utilizada nos telhados dos edifícios pós-romanos; pense-se também no desaparecimento dos esgotos nas cidades), da sofisticação (a cerâmica estandardizada de alta qualidade passou a ser um exceção - e não, como antes, comum; por outro lado, a utilização da moeda perdeu importância nas trocas), da distribuição (se antes existia uma eficaz rede de distribuição que ligava vários pontos do império, tornando um vasto conjunto de produtos acessível aos consumidores humildes, esta - com as invasões - deixou de ser melhorada e reparada), e de indústrias inteiras.
Com estes indícios, Ward-Perkins julga poder falar-se com propriedade em declínio ou mesmo fim da civilização romana. Os argumentos parecem-me, de facto, bastante válidos.

domingo, 21 de julho de 2013

"Nobilíssima Visão", de Mário Cesariny de Vasconcelos

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"Nobilíssima Visão", de Mário Cesariny, foi um livro marcante no meu percurso de leitor de poesia. Até me iniciar em autores mais contemporâneos (digamos "pós-pessoanos"), andara a descobrir a poesia portuguesa (mais) "clássica" - Camões, Antero, Cesário, Sá-Carneiro, Pessoa & Co., etc. Quando li pela primeira vez este livro, pouco conhecia sobre o autor ou sobre o surrealismo português (e outros movimentos coetâneos). Na altura achei sobretudo graça à linguagem de Cesariny (o uso da ironia e da sátira, da rima patética, de imagens caricatas) na sua crítica à sociedade e ao regime político de meados do século XX.
Decidi há dias regressar à poesia de Cesariny, mas desta vez com um pouco mais de conhecimentos, além de leituras (p.f., não tomar isto como presunção). Foi, pois, com agrado que reencontrei o humor (presente, por exemplo, no poema "Pastelaria") e a mordacidade que já antes apreciara neste autor («De forma que entrar nas tuas pernas / foi como entrar num Tribunal de Contas»).
Os textos reunidos neste livro foram escritos em 1945-46, antes de o autor se render ao surrealismo (relembre-se que o autor foi um dos introdutores deste movimento em Portugal, após a sua passagem por França e contactos com André Breton), pelo que não é de estranhar o pendor social de alguns poemas, próximos mesmo da estética neorrealista (que posteriormente criticou e rejeitou) - neles se evocam os operários e os desfavorecidos, e criticam-se os capitalistas e burgueses. Este livro inclui também "Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (fragmento)", poema que evoca e reinventa o estilo presente nas odes desse heterónimo pessoano (atente-se nos inícios dos anos 40 a Ática iniciou, pelas mãos de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor, a edição sistemática da obra de Fernando Pessoa, o que se traduziu numa melhor compreensão da dimensão do poeta); na nota de autor à primeira edição, Cesariny assume-o, porém, como «coisa em que cada um só deve cair uma vez». "Um Auto para Jerusalém" fecha o volume: trata-se de um texto dramático que critica, com muito humor, o Estado policial da ditadura, a injustiça social existente mas também a apatia dos intelectuais.
Segue-se a redescoberta, nos próximos dias, de "Pena Capital"...

quinta-feira, 18 de julho de 2013

"Ulisses", de James Joyce

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Em Espanha, tende a relativizar-se a importância do escritor irlandês e até se converteu num monstruoso lugar-comum vangloriar-se de não ter lido Ulysses e, ainda por cima, dizer que é um livro incompreensível e aborrecido. (in E. Vila-Matas, Dublinesca)

Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? (in J. Joyce, Ulisses)
Descobrir a pólvora. Utilizamos esta expressão quando queremos frisar que uma qualquer descoberta é, afinal, uma não descoberta (por se tratar de uma coisa perfeitamente conhecida ou óbvia). Ainda assim, vou deixar escrito (“- Verba volant, scripta manent”) que “Ulisses”, de James Joyce, foi uma das grandes descobertas literárias da minha vida - não que me fosse desconhecido esse livro, de resto, tão célebre, mas só agora o li. Célebre porquê? Pelas piores razões: por ser um livro sem história, extremamente difícil, intragável ou talvez mesmo impossível de ler, que alguns acusam de intelectual em excesso, pretensioso, fraudulento… Ou, enfim, maçador, desagradável, detestável (mas até a má publicidade pode servir positivamente aquilo que publicita – neste caso, gerar curiosidade, interesse).
Ora eu gostei de “Ulisses”. Gostei? Mais do que isso: adorei (“- Gostos não se discutem”;  “- Muito pelo contrário, meu caro, senhor, muito pelo contrário…”;  “- Afinal o que importa não é a literatura, nem a crítica de arte, nem a câmara escura”; “- Bem sei, bem sei… Não será mais importante conhecer o porquê de se gostar daquilo de que se gosta?”; etc., etc.). Caso raro: ao chegar às suas últimas páginas já pensava em releitura (nota para mim mesmo: ler uma tradução alternativa – mas acerca de traduções se fala mais abaixo). Consegui entender (assim o julgo) porque é considerado uma obra-prima da literatura (porque de facto é uma obra-prima); mas também entendi porque tantos não o conseguem compreender, e até o rejeitam apresentando mil e uma razões (João César Monteiro reagindo às críticas feitas ao seu filme, "Branca de Neve”, durante a sua estreia: “-Queriam novela?”).
Ler esta obra é um desafio. A proclamada exigência do livro estimulou-me a tentar vencer o obstáculo (qual Ulisses? – i.e., o livro proporciona ao leitor desempenhar, por umas centenas de páginas, o papel de herói). É inegavelmente um livro exigente que, para além da sua linguagem cheia de trocadilhos, termos aglutinados e neologismos (ex: contransmagnificandjudeibumbatancialidade), conta com um capítulo (o terceiro, ainda que na minha edição não haja qualquer separação entre capítulos) que pode servir – pela sua subjetividade e abstração, pela deambulação no interior dos pensamentos de Stephen Dedalus – como um desincentivo à continuação (e quem desiste entretanto não chega a conhecer essa tão interessante figura que é Leopold Bloom, o nosso herói-Ulisses). Não esmorecer: o livro reserva-nos imensas surpresas (e algum humor) nas páginas subsequentes.
Uma infinidade de referências (históricas, geográficas, literárias) caracteriza “Ulisses”. Tal riqueza constitui uma das dificuldades do livro: é impossível (a não ser que se lesse uma edição crítica – mas até que ponto é que o academismo de tal edição não obstaculizaria o prazer da leitura?) seguir todas as referências presentes nas suas páginas; mesmo quem decifra muitas dessas referências, dificilmente decifrará todas (isso equivaleria a reproduzir o que se passou no interior da cabeça de James Joyce, enquanto a obra era concebida). Será necessário entender tudo? Bem, julgo que não; julgo mesmo que a intenção do autor era impossibilitar essa pretensão de totalidade (só Joyce, repito, possuiria todas as chaves – Xaves?), criando assim uma obra-mais-que-todas-as-outras múltipla (pela multiplicidade de compreensões – e incompreensões - possíveis).
Outro aspeto que pode atrapalhar o leitor é a diversidade expressiva: cada capítulo é estilisticamente diferente (há, por exemplo, um capítulo escrito como se fosse uma peça de teatro, de coloração onírica, surrealista, talvez até psicótica; outro capítulo é construído pela alternância entre perguntas e respostas, como os antigos manuais de civilidade). Mas parte da riqueza e extrema originalidade desta obra não assentará nesta diversidade (mesmo que esta possa ter algo de fanfarronice ou blague)?
A tradução que segui, de António Houaiss, é considerada “clássica”. Porém, na minha perspetiva, a sua leitura pelos leitores portugueses pode acarretar um manancial acrescido de dificuldades – dou como exemplo a existência de uma série de termos e expressões que, no Português de Portugal, são desconhecidas ou têm um sentido diferente. Sendo sem dúvida uma obra muito árdua de traduzir (Joyce utiliza frequentemente trocadilhos e jogos de palavras, quase impossíveis de fazer funcionar noutra língua que não a original), Houaiss tomou as suas opções sem as explicar (talvez para não carregar o livro com notas de rodapé), o que nem sempre joga a favor do leitor (mantido assim às escuras). Futuramente, até para poder comparar, conto reler o livro na tradução de João Palma-Ferreira (que eu saiba a única existente em português europeu).
Quanto à história, podemos sintetizá-la numa frase: trata das peripécias vividas por Leopold Bloom (a par de uma imensidade de outros personagens) no dia 16 de Junho de 1904 (note-se que o livro do autor irlandês é tão paradigmático, que nesse país se instituiu um feriado em sua homenagem – o Bloomsday, comemorado no citado dia), desde que sai de casa pela manhã até ao seu regresso. Claro que o livro é muito, mas mesmo muito, mais do que isto. Joyce conseguiu condensar em menos de vinte e quatro horas todo um mundo.
Uma obra-prima. Um livro ímpar, de uma originalidade única. Apenas um livro escrito para os críticos, como o acusam alguns, e não para os leitores comuns? (Mas o que raio são os leitores comuns? Ou querem fazer-me crer que os leitores comuns equivalem a pessoas com uma inultrapassável modorra intelectual, incapazes de experimentar coisas diferentes ou de ser surpreendidos?). Antes sim um livro escrito para todos nós, humanos, seres mais ou menos profundos e quase totalmente insondáveis, diferentes, falsamente “campeões em tudo” (cft. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”) ou mesmo frágeis. Uma odisseia que (nunca com outro livro tal me acontecera) me fez pesquisar para ver mais longe – não tanto para entender ou dissecar a obra, mas para medir até que ponto é que as minhas impressões tinham fundamento. Um livro que me ajuda a explicar a mim mesmo a razão de gostar tanto de ler.

domingo, 14 de julho de 2013

"De minha máquina com teu corpo", de João Habitualmente

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Até há pouco tempo desconhecia a poesia de João Habitualmente (quanto mais conheço mais percebo a grandiosidade daquilo que desconheço - Sócrates, o filósofo, o terá dito de uma forma mais bela e simples). A leitura de "De minha máquina com teu corpo" despertou em mim uma imensa curiosidade de continuar a explorar a poesia deste autor.
Uma escrita simples (longe de ser defeito, é tantas vezes virtude - cft. simplicidade das peças de Erik Satie, visto que neste presente momento estou numa de conexões, mesmo que eventualmente desconexas), com interessantes jogos sonoros (presente nas rimas mas também nas onomatopeias), e - o que sobretudo me agradou - um humor muito próprio: o trocadilho anda sempre por perto (o poema "Aquecimento global", depois de uma enumeração catastrofista, encerra com os seguintes versos: «que a mim / nem me aquece nem me arrefece»).
Sem dúvida, um livro interessante, enriquecido pelo curioso trabalho gráfico - a obra é ilustrada pelos desenhos de Mário Vitória.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

"Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdão

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É sempre com um enorme prazer que regresso ao "Elogio da Loucura", de Erasmo. Já o li pelo menos quatro ou cinco vezes, e de cada vez constato que, pese embora ser uma obra de inícios do século XVI, ainda pode falar aos leitores contemporâneos. À loucura é dada a liberdade (da mesma forma que, nas cortes régias, era dada aos bobos) para, jocosamente, apontar (e assim criticar) alguns vícios e costumes decadentes da sociedade europeia. Afinal, ontem como hoje, a sátira é um ótimo caminho para a denúncia...

quinta-feira, 4 de julho de 2013

"Crescente Branco", de Vergílio Alberto Vieira

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O soneto talvez se possa considerar (pelo menos no Ocidente) a forma poética mais elevada, tanto pelo rigor métrico como pela arquitetura das rimas (isto, claro, na sua expressão tradicional). Porém, tenho que admitir (contra mim mesmo falando) que nem sempre aprecio ler sonetos - julgo que, em alguns casos, a estrutura mais ou menos rígida se transforma numa espécie de espartilho ao nível da expressividade para alguns autores (certos poetas que aprecio, quando enveredam por essa forma, tornam-se um pouco barrocos); não esqueço, ainda assim, os sonetos camoniano e bocagianos, para citar apenas dois dos maiores sonetistas de língua portuguesa.
O livro de sonetos de Vergílio Alberto Vieira intitulado "Crescente Branco" conseguiu, apesar do que acima se disse, agradar-me - uns poemas mais do que outros, é certo. E assim, há que continuar a descobrir (esta leitura foi inaugural) a poesia deste autor.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

"Pompeia. O dia-a-dia da mítica cidade romana", de Mary Beard

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Pompeia. É seguramente um local que me fascina há longo tempo e que, ainda que me pareça um pouco improvável, gostaria de visitar. Quando acidentalmente me deparo com documentários televisivos sobre essa cidade romana (que, no ano de 79, sofreu os efeitos da erupção do Vesúvio), não resisto a ver. Esta minha atração pelo tema levou-me, após apenas três anos de o ter lido, a reler o livro da historiadora Mary Beard, intitulado "Pompeia. O dia-a-dia da mítica cidade romana".
Tanto pelo tema, como pela linguagem acessível (o texto não é interrompido pelo aparato crítico, que, de uma forma comentada, é sistematizado na bibliografia), bem assim como pela interessante estrutura (em temas) e pelas múltiplas ilustrações (que muito ajudam o leitor a "viajar" pela cidade tratada), é um livro que me parece muitíssimo recomendável ao simples curioso - podemos considerá-lo uma sólida síntese, um guia, ou um texto de divulgação. Porém, a autora não descura a acuidade científica, interrogando muitas vezes conclusões precipitadas ou não bem fundamentadas, lançando e/ou relativizando hipóteses, desmistificando algumas ideias feitas sobre a vida quotidiana dos romanos (comparando os indícios arqueológicos de Pompeia com os de outros sítios e testemunhos estudados).
A autora guia de forma inteligente o leitor (remetendo para ilustrações e plantas) no desvendar do dia-a-dia dos habitantes de Pompeia; aspetos como o movimento e vida das ruas, a organização das habitações pompeianas, a arte, as atividades económicas, o governo da cidade, os prazeres e as formas de lazer, a prática religiosa são, de uma forma bastante agradável, focados nesta obra, que reputo de muito recomendável.