domingo, 12 de janeiro de 2014

"O Sistema Totalitário" [ou "As Origens do Totalitarismo"], de Hannah Arendt

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Este é um daqueles livros: uma referência incontornável, um marco no pensamento ocidental, por muitos considerado um dos livros mais importantes do século passado. Uma coisa tenho por certa: várias têm sido as obras que tenho lido referentes aos regime totalitários que marcaram a história do século XX; a obra da filósofa de origem alemã naturalizada norte-americana Hannah Arendt, publicada originalmente em 1951 (ainda que tenha sido posteriormente revista, atualizada e aperfeiçoada), é quase invariavelmente citada, comentada, e (mesmo quando criticada e ultrapassada) objeto de admiração. Após ler as cerca de seiscentas páginas de The Origins of Totalitarianism (ou, nesta tradução, O Sistema Totalitário), percebo melhor as razões de tal reverência: escrita a quente, passados muitos poucos anos sobre o fim da Segunda Guerra Mundial e estando ainda vivo o líder soviético José Estaline, e sem dispor de um conjunto de informações que só muito mais tarde seriam divulgados (por exemplo, a realidade específica dos campos de extermínio nazis, diferente dos campos de concentração referidos), Arendt demonstra uma extraordinária acuidade intelectual para compreender os mecanismos próprios do totalitarismo.
Dividida em três partes, intituladas "Antissemitismo", "Imperialismo" e "Totalitarismo", esta obra na sua primeira parte tenta entender os primórdios do antissemitismo (considerando-se os seus pressupostos, preconceitos e mistificações, condicionantes contextuais, etc.) e a sua evolução para expressões de caráter agressivo (propagadas por movimentos políticos e por movimentos violentos); particularmente interessante achei a análise do processo Dreyfus, ocorrido em França em finais do século XIX. Na segunda parte a autora debruça-se sobre a existência de expressões de caráter na Europa, focando também o caso paradigmático da África do Sul (sociedade que se desenvolveu assente no princípio racial); sobre o imperialismo europeu (assente na ideia de superioridade face aos povos administrados, e estruturado numa máquina burocrática independente relativamente aos avanços e inflexões políticas da metrópole); sobre o despontar dos movimentos nacionalistas e de outros movimentos que se diziam acima dos partidos (isto num clima de um certo declínio do sistema partidário na Europa).
A terceira parte, como já se indicou, consiste numa admirável reflexão sobre o totalitarismo, partindo das realidades nazi e soviética (achei particularmente interessantes os capítulos "O movimento totalitário" e "O totalitarismo no poder"). Arendt começa por referir a importância e utilidade para os movimentos totalitários do emprego da força bruta e da propaganda: estes meios terão contribuído para a criação de um certo fanatismo acrítico (fanatismo esse que, evidentemente, minimiza as convicções pessoais, ou consegue mesmo neutralizá-las). Outro aspeto sublinhado é a recusa desses movimentos em discutir com os partidos políticos (tomados como organizações algo estáticas, contrastantes com o caráter dinâmico do conceito "movimento"); os movimentos totalitários optaram por focar diretamente as massas, procurando conquistar a sua adesão, agregá-las, conduzi-las. A polícia política e o campo de concentração são considerados pela autora peças-chave para entender os regimes totalitários; no que se refere ao campo de concentração (e não exatamente ao campo de extermínio, realidade mal estudada à data da publicação deste livro no mundo ocidental - relembre-se que a maioria dos mesmos se situavam a leste da Cortina de Ferro), Hannah Arendt toma-o como um veículo de privação da personalidade jurídica e moral das pessoas (inocentes) lá cativas, num processo de degradação do Homem; antes da aniquilação, os campos de concentração quebravam todos os laços de solidariedade, conseguindo-se a total submissão dos indivíduos (e, assim, o domínio total sobre eles).
O totalitarismo é considerado, pelas suas características próprias e pelos meios de que se serve, uma nova forma de governação, suportada numa ideologia (que se assume como uma "filosofia científica" e se arroga conhecer os mistérios e subtilezas dos processo histórico - explica a História através de uma "lei" qualquer - o triunfo de uma raça ou o fim das classes, por exemplo -, que simultaneamente permite a compreensão total do passado e do presente e a previsão do futuro) e no terror (não apenas dirigido contra os opositores e inimigos "históricos" - sejam eles os judeus, ou os kulaks - , mas que procura quebrar a espontaneidade dos indivíduos, massificando comportamentos); é um tipo de regime que visa o domínio total dos indivíduos, transcendendo fronteiras e nacionalidades, sendo que os habitantes de um país totalitário se veem engolfados num processo em que só podem ser coniventes (carrascos) ou vítimas (nem que seja por duvidar).
Em suma, O Sistema Totalitário é inegavelmente um esforço intelectual de vulto, uma tentativa brilhante para compreender um fenómeno que marcou o século XX, e que, por isso mesmo, merece a leitura.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Obrigado pelo seu contributo. O seu comentário será publicado em breve.