sexta-feira, 29 de novembro de 2013

"Bouvard e Pécuchet", de Gustave Flaubert

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Quando estavam cansados de um órgão, passavam a outro - assim estudando e abandonando sucessivamente o coração, o estômago, o ouvido, os intestinos; porque o homenzinho de cartão os aborrecia, apesar dos seus esforços por se interessarem por ele.
Donde concluíram que a Fisiologia é (segundo uma velha frase) o romance da medicina. Como não conseguiram compreende-la, não acreditavam nela. (in Bouvard e Pécuchet)
Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, é um livro bastante peculiar; pese embora o caráter repetitivo ou cíclico da história, em momento nenhum o humor flaubertiano se torna cansativo. Quando há uns bons anos atrás o li pela primeira vez, fiquei com uma impressão muito positiva; esta releitura confirmou plenamente a primeira apreciação: agradam-me a história, os personagens, o tipo de humor, a escrita fluída, as referências culturais (o autor terá consultado centenas de obras durante a escrita deste livro) e o modo como brinca com elas...
Publicado em 1881, um ano após a morte do autor, Bouvard e Pécuchet retrata a amizade de dois funcionários que, sendo ambos livres e gozando da herança recebida por um deles, decidem quebrar com a sua vida rotineira (e até certo ponto monótona) indo viver para o campo e despender o seu tempo a desenvolver-se intelectualmente. Entusiasticamente, Bouvard e Pécuchet lançam-se na prática da agricultura, investindo no estudo e recorrendo às últimas técnicas, métodos, instrumentos; porém, as coisas não correm exatamente como esperado... E assim, perante o fracasso, passam a apostar na arboricultura, e depois na jardinagem, e posteriormente na conservação de alimentos...
Ao longo dos anos, os protagonistas vão saltando pelas várias áreas do saber: pela química, apesar de se enredarem nos seus conceitos por vezes complexos e abstratos; pela anatomia e pela medicina, fazendo experiências nem sempre conclusivas; pela geologia e pela arqueológica, cedendo à febre do colecionismo sem qualquer critério objetivo, e desiludindo-se com a existência de múltiplas interpretações na história; pela literatura, experimentando os vários géneros, sem no entanto atingirem a satisfação com qualquer um deles; pela política, ainda que isso lhes traga inimizades; pelo amor, tropeçando nas suas vicissitudes; pelo desporto, tendo o esforço sido maior que o possível e desejável; pelo esoterismo (e nomeadamente pelo - então na moda - magnetismo) e pela filosofia (metafísica e lógica), caminhos sapientais percorridos de forma trôpega e que, quase inevitavelmente, os levam a ficar encurralados pela abstração e pela impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto, indubitável; pela religião, enveredando numa busca da simplicidade, da pureza interior, de um sentido para a vida, não encontrando, de novo, um resposta definitiva e absoluta para os seus anseios; pela educação, procurando formar duas crianças, filhas de um criminoso; e por outras áreas mais.
Em suma, Bouvard e Pécuchet é uma obra satírica que brinca com o excesso de confiança (tão tipicamente oitocentista - tão positivista, portanto) no progresso contínuo, na inovação, no conhecimento científico e tecnológico. Os personagens que dão nome à obra, apesar da sua curiosidade e vontade de aprender e de estudar, não deixam de ser dois diletantes (que mutuamente se incentivam): no seu esforço, nunca há uma aplicação suficientemente estruturada e consistente; perante as contrariedades levantadas por um tema, os nossos heróis sentem-se frustrados e cansados, passando a uma nova matéria (não apostando, assim, no aperfeiçoamento). Por vezes, aplicam-se em certos estudos por motivos idealistas ou simplesmente pelo seu caráter pitoresco; noutras vezes, investem em matérias que estão bem fora do seu alcance intelectual... Em alguns momentos, não conseguem, ainda assim, deixar de sentir um certo desprezo pelos outros (quer pela sua perplexidade antes as sua investidas, quer pela sua ignorância e interesses divergentes). A obra culmina de um modo bastante curioso, justificando o caráter circular da mesma.
Concluo este breve texto destacando o excelente trabalho de tradução de Pedro Tamen; esta obra tem um vocabulário rico, fazendo por vezes lembrar - ainda que sejam escritas muito diferentes - a finura do nosso Eça...

terça-feira, 19 de novembro de 2013

"Jogos da Noite", de Stig Dagerman

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Desaparecido aos 31 anos, Stig Dagerman deixou-nos uma obra bastante interessante, constituída por quatro romances (dos quais apenas ainda não li As sete pragas do Casamento), uma reportagem (Outono Alemão), peças teatrais, curtos textos ensaísticos e poemas.
Jogos da Noite é uma coletânea de contos de valor e interesse desigual. Pessoalmente, considero que dois textos se destacavam dos restantes: "Onde está a minha camisola islandesa?" (a história mais longa do livro, onde melhor se notam os dotes literários do autor) e "As memórias de uma criança" (texto de pendor autobiográfico, que relata a infância passada com os avós numa aldeia).
Persistentes neste conjunto de histórias são a infância (na maioria das história o protagonista é uma criança), a solidão e a desilusão; o consumo de álcool, a embriaguez ou mesmo o alcoolismo são igualmente recorrentes, ao ponto de um anterior leitor deste volume (requisitado na biblioteca local) ter escrito a lápis na página 100: «Pode dar-se que se bebe mais nos países nórdicos pelo frio?» (não pude deixar de sorrir ao ler este "pensamento" alheio).

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"A Construção de Luís XIV", de Peter Burke

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A Construção de Luís XIV, de Peter Burke, não se trata de uma biografia do monarca absoluto que reinou em França de 1643 (a subida ao trono fez-se com 4 anos) a 1715; é antes um estudo sobre a construção da imagem pública do rei, construída ao longo do seu reinado. Refira-se que esta obra conta com quase uma centena de figuras, que não só ilustram como também ajudam a suportar as ideias explanadas.
A imagem régia (a forma como o rei era representado) foi objeto de grande cuidado no reinado de Luís XIV: houve claramente a preocupação em propagandear a figura do rei (de um modo positivo, mostrando a sua glória, esplendor, opulência, grandeza, poder) e, desta forma, manipular a opinião pública (ganhando a sua obediência, o seu respeito, a sua admiração). Procurando evitar anacronismos, Burke não deixa de comparar este cuidado com a propaganda dos políticos contemporâneos (o cuidados com a imagem, a cargo de gabinetes especializados).
O livro aborda, assim, as representações de Luís XIV nas artes plásticas (sobretudo pintura, escultura, arquitetura) e performativas (teatro, bailado, música), na medalhística, na literatura; refere-se também ao cerimonial montado (encenado) em torno da figura do rei. Estes foram os meios utilizados para acrescentar significado simbólico à figura e aos gestos de Luís XIV, procurando criar-se assim uma espécie de "mito": o rei como heroico, invencível, omnisciente, divino, enfim, como "Rei-Sol". A associação (identificação alegórica) a figuras heroicas e/ou ligadas ao passado de França (como Alexandre o Grande, Augusto, Clóvis, Carlos Magno, São Luís - o rei medieval francês Luís IX -, etc.) foi outra das estratégias utilizadas.
Claro que é possível interpretar esta "construção" de várias formas. À partida Burke rejeita a visão cínica (que postula que a glorificação do rei consiste num esforço de tentar convencer os outros de algo em que se não acredita, ou então como a mera expressão de aduladores e oportunistas, que apelava à vaidade ou mesmo megalomania régia), mas também a visão inocente (que defende que as representações do rei serviam o propósito benigno de instruir as pessoas e de encorajá-las a amar o seu soberano); na sua perspetiva, o equilíbrio está na visão intermédia, isto é, em não tomar todas as representações por maquiavelismo ou fraude, nem aceitar a total benevolência dos propósitos régios. Se nas sociedades democráticas atuais há uma tendência a associar o elogio à bajulação ou ao servilismo, no Antigo Regime a pompa (colocada, por exemplo, nos discursos sobre o rei) era considerada elevada (a utilização de imagens da mitologia, o uso de certas metáforas, etc.) e elegante - ou seja, nos séculos XVII e XVIII lisonjear não significava necessariamente mentir, podendo ser antes a obediência a critérios estéticos, de convivialidade e sociabilidade.
Nesta obra o autor não se esquece de evidenciar a existência de imagens depreciativas do rei (pela associação a figuras históricas de conotação negativa, pelo apontar de um sem número de defeitos - ambição, falta de escrúpulos, tirania, vaidade, etc. -, pela paródia, ou pela simples maledicência), imagens essas que obedeceriam a um programa próprio. Usando pseudónimos e permanecendo anónimos, os autores destas imagens (fossem eles naturais de países "inimigos" ou huguenotes que haviam fugido de França aquando da revogação do Édito de Nantes) usam, basicamente, os mesmos meios de comunicação e os mesmos modelos dos autores das representações oficiais.
Talvez o ponto mais frágil do livro (porque de mais difícil resposta, como aliás o reconhece Burke) esteja na tentativa de avaliar a forma como foram recebidas as imagens (positivas e negativas) de Luís XIV. Atendendo que não foram utilizados (dado que ainda não existiam) "meios de comunicação de massas", as representações régias não visavam um qualquer "grande público"; ainda que algumas formas de expressão atingissem muitas pessoas (por exemplo, as esculturas expostas em praças públicas, a encenação das entradas reais, etc.), a imagem do rei era sobretudo veiculada para a posteridade (os vindouros julgariam as ações do rei - e daí a preocupação em utilizar materiais resistentes ou em encontrar historiadores que redigissem a "história oficial"), para as elites cultas (os cortesãos, a nobreza e a burguesia parisiense - isto é, aqueles que assistiam às cerimónias, rituais e espetáculos da corte, aos que sabiam interpretar as inscrições latinas dos monumentos e os símbolos neles presentes) e para os olhares dos estrangeiros (os embaixadores eram presença habitual na corte, pelo que eram recetores da mensagem de grandeza do monarca; além disso, algumas das obras laudatórias eram traduzidas para outras línguas, que não o francês ou o latim). De tudo isto resulta que a avaliação do real impacto das imagens de Luís assenta em testemunhos individuais - logo, parcelares. Ainda assim, é possível constatar que o modelo francês de (auto) representação foi seguido por outras monarquias, o que por si só é significativo.
Em suma, um livro com algum interesse, embora, deva confessar, ficou um tanto aquém das minhas espectativas - é o que dá partir para a leitura com a ideia de se tratar de uma obra "clássica" no domínio da historiografia. Julgo que a abordagem é original, mas o texto acaba por ser um pouco descritivo - esperava ver uma maior profundidade analítica. Um último aspeto não pode ser omitido desta nota de leitura: é inegável que a existência de um número significativo de gralhas, que podiam facilmente ter sido evitadas com um trabalho mais cuidadoso de revisão, perturba a leitura desta obra, facto que é contrabalançado pela clareza da escrita do autor.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

"Engano", de Philip Roth


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Eu escrevo ficção e dizem-me que é autobiografia, escrevo autobiografia e dizem-me que é ficção, por isso, já que sou tão burro e eles são tão espertos, deixá-los a eles decidir o que é ou não é. (in Philip Roth, Engano)
Inteligente e original, Engano trata de infidelidades. Uma parte da originalidade está, a meu ver, na forma: o livro é composto por fragmentos de diálogos (uns curtos, outros longos, uns vazios - ou nem tanto -, outros bastante significativos) entre amantes; o leitor é, por isso, convidado a reconstituir a narrativa peça a peça (como num puzzle).
O personagem masculino, a viver um caso extraconjugal com uma mulher também ela casada, chama-se significativamente Philip, e é um escritor judeu americano a viver (e escrever) em Londres; alguns dos personagens (Nathan Zuckerman, Sra. Portnoy, etc.) das obras deste ficcional Philip coincidem com os personagens das obras do autor Philip Roth (coincidências?). Há, portanto, neste livro-caleidoscópio uma intenção deliberada de tornar o leitor cúmplice do "engano", ou, dito de outra forma, do entrecruzamento (ficcional, passe a repetição) entre ficção e realidade - ou, talvez ainda, da infidelidade entre verdade e mentira.
O amor, o sexo, o cansaço e as frustrações nos relacionamentos, a separação são alguns dos assuntos recorrentes do livro; mas, para além deles, os personagens dialogam sobre política, antissemitismo e literatura. Talvez a reflexão sobre este último ponto seja, afinal, o que justifica a obra.
Em suma, este é um livro leve (mas nunca "light", ou ligeiro), na medida em que se lê muito bem; mas, como já acima se escreveu, um livro inteligente e com bastante humor.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

"A Festa do Chibo", de Mario Vargas Llosa

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"A Festa do Chibo", de Mario Vargas Llosa, é seguramente um dos melhores livros que já li do autor. Este romance, muito bem construído e belissimamente escrito, foca-se na ditadura de Rafael Leónidas Trujillo, regime que marcou a história da República Dominicana de 1930 a 1961. O modo como o escritor peruano ficciona a partir de uma realidade histórica agradou-me sobremaneira.
A história desenrola-se em torno de diferentes eixos narrativos: as memórias de Urania Cabral (filha de um político de destaque, caído em desgraça nos últimos tempos do regime), que revisita o país muitos anos depois de o abandonar; o assassinato do ditador (pelo olhar dos conspiradores que o organizaram) e a repressão que se lhe seguiu; a ação e pensamento de Trujillo (caracterizado como um homem inteligente, ardiloso, que se soube manter no poder à custa de violências várias e da imposição do medo).
Não será exatamente um livro político, embora também o seja. Neste romance, Llosa descreve magistralmente o exercício do poder e o servilismo dos acólitos do regime (até à abjeção, ao ponto de permitirem que o ditador se servisse sexualmente das mulheres), bem como o caráter assassino da repressão; de certo modo, pode dizer-se que o servilismo bem como a repressão, pesem embora todas as variações de grau e os particularismos, observam quase sempre as mesmas características. Uma das partes mais perturbadoras, ao ponto de causar repulsa, é a descrição das violências e das torturas.
Um livro excecional: eis como posso resumir esta obra. Para um futuro não muito distante reservo Conversa na Catedral.