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Quando estavam cansados de um órgão, passavam a outro - assim estudando e abandonando sucessivamente o coração, o estômago, o ouvido, os intestinos; porque o homenzinho de cartão os aborrecia, apesar dos seus esforços por se interessarem por ele.
Donde concluíram que a Fisiologia é (segundo uma velha frase) o romance da medicina. Como não conseguiram compreende-la, não acreditavam nela. (in Bouvard e Pécuchet)
Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, é um livro bastante peculiar; pese embora o caráter repetitivo ou cíclico da história, em momento nenhum o humor flaubertiano se torna cansativo. Quando há uns bons anos atrás o li pela primeira vez, fiquei com uma impressão muito positiva; esta releitura confirmou plenamente a primeira apreciação: agradam-me a história, os personagens, o tipo de humor, a escrita fluída, as referências culturais (o autor terá consultado centenas de obras durante a escrita deste livro) e o modo como brinca com elas...
Publicado em 1881, um ano após a morte do autor, Bouvard e Pécuchet retrata a amizade de dois funcionários que, sendo ambos livres e gozando da herança recebida por um deles, decidem quebrar com a sua vida rotineira (e até certo ponto monótona) indo viver para o campo e despender o seu tempo a desenvolver-se intelectualmente. Entusiasticamente, Bouvard e Pécuchet lançam-se na prática da agricultura, investindo no estudo e recorrendo às últimas técnicas, métodos, instrumentos; porém, as coisas não correm exatamente como esperado... E assim, perante o fracasso, passam a apostar na arboricultura, e depois na jardinagem, e posteriormente na conservação de alimentos...
Ao longo dos anos, os protagonistas vão saltando pelas várias áreas do saber: pela química, apesar de se enredarem nos seus conceitos por vezes complexos e abstratos; pela anatomia e pela medicina, fazendo experiências nem sempre conclusivas; pela geologia e pela arqueológica, cedendo à febre do colecionismo sem qualquer critério objetivo, e desiludindo-se com a existência de múltiplas interpretações na história; pela literatura, experimentando os vários géneros, sem no entanto atingirem a satisfação com qualquer um deles; pela política, ainda que isso lhes traga inimizades; pelo amor, tropeçando nas suas vicissitudes; pelo desporto, tendo o esforço sido maior que o possível e desejável; pelo esoterismo (e nomeadamente pelo - então na moda - magnetismo) e pela filosofia (metafísica e lógica), caminhos sapientais percorridos de forma trôpega e que, quase inevitavelmente, os levam a ficar encurralados pela abstração e pela impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto, indubitável; pela religião, enveredando numa busca da simplicidade, da pureza interior, de um sentido para a vida, não encontrando, de novo, um resposta definitiva e absoluta para os seus anseios; pela educação, procurando formar duas crianças, filhas de um criminoso; e por outras áreas mais.
Em suma, Bouvard e Pécuchet é uma obra satírica que brinca com o excesso de confiança (tão tipicamente oitocentista - tão positivista, portanto) no progresso contínuo, na inovação, no conhecimento científico e tecnológico. Os personagens que dão nome à obra, apesar da sua curiosidade e vontade de aprender e de estudar, não deixam de ser dois diletantes (que mutuamente se incentivam): no seu esforço, nunca há uma aplicação suficientemente estruturada e consistente; perante as contrariedades levantadas por um tema, os nossos heróis sentem-se frustrados e cansados, passando a uma nova matéria (não apostando, assim, no aperfeiçoamento). Por vezes, aplicam-se em certos estudos por motivos idealistas ou simplesmente pelo seu caráter pitoresco; noutras vezes, investem em matérias que estão bem fora do seu alcance intelectual... Em alguns momentos, não conseguem, ainda assim, deixar de sentir um certo desprezo pelos outros (quer pela sua perplexidade antes as sua investidas, quer pela sua ignorância e interesses divergentes). A obra culmina de um modo bastante curioso, justificando o caráter circular da mesma.
Concluo este breve texto destacando o excelente trabalho de tradução de Pedro Tamen; esta obra tem um vocabulário rico, fazendo por vezes lembrar - ainda que sejam escritas muito diferentes - a finura do nosso Eça...
Publicado em 1881, um ano após a morte do autor, Bouvard e Pécuchet retrata a amizade de dois funcionários que, sendo ambos livres e gozando da herança recebida por um deles, decidem quebrar com a sua vida rotineira (e até certo ponto monótona) indo viver para o campo e despender o seu tempo a desenvolver-se intelectualmente. Entusiasticamente, Bouvard e Pécuchet lançam-se na prática da agricultura, investindo no estudo e recorrendo às últimas técnicas, métodos, instrumentos; porém, as coisas não correm exatamente como esperado... E assim, perante o fracasso, passam a apostar na arboricultura, e depois na jardinagem, e posteriormente na conservação de alimentos...
Ao longo dos anos, os protagonistas vão saltando pelas várias áreas do saber: pela química, apesar de se enredarem nos seus conceitos por vezes complexos e abstratos; pela anatomia e pela medicina, fazendo experiências nem sempre conclusivas; pela geologia e pela arqueológica, cedendo à febre do colecionismo sem qualquer critério objetivo, e desiludindo-se com a existência de múltiplas interpretações na história; pela literatura, experimentando os vários géneros, sem no entanto atingirem a satisfação com qualquer um deles; pela política, ainda que isso lhes traga inimizades; pelo amor, tropeçando nas suas vicissitudes; pelo desporto, tendo o esforço sido maior que o possível e desejável; pelo esoterismo (e nomeadamente pelo - então na moda - magnetismo) e pela filosofia (metafísica e lógica), caminhos sapientais percorridos de forma trôpega e que, quase inevitavelmente, os levam a ficar encurralados pela abstração e pela impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto, indubitável; pela religião, enveredando numa busca da simplicidade, da pureza interior, de um sentido para a vida, não encontrando, de novo, um resposta definitiva e absoluta para os seus anseios; pela educação, procurando formar duas crianças, filhas de um criminoso; e por outras áreas mais.
Em suma, Bouvard e Pécuchet é uma obra satírica que brinca com o excesso de confiança (tão tipicamente oitocentista - tão positivista, portanto) no progresso contínuo, na inovação, no conhecimento científico e tecnológico. Os personagens que dão nome à obra, apesar da sua curiosidade e vontade de aprender e de estudar, não deixam de ser dois diletantes (que mutuamente se incentivam): no seu esforço, nunca há uma aplicação suficientemente estruturada e consistente; perante as contrariedades levantadas por um tema, os nossos heróis sentem-se frustrados e cansados, passando a uma nova matéria (não apostando, assim, no aperfeiçoamento). Por vezes, aplicam-se em certos estudos por motivos idealistas ou simplesmente pelo seu caráter pitoresco; noutras vezes, investem em matérias que estão bem fora do seu alcance intelectual... Em alguns momentos, não conseguem, ainda assim, deixar de sentir um certo desprezo pelos outros (quer pela sua perplexidade antes as sua investidas, quer pela sua ignorância e interesses divergentes). A obra culmina de um modo bastante curioso, justificando o caráter circular da mesma.
Concluo este breve texto destacando o excelente trabalho de tradução de Pedro Tamen; esta obra tem um vocabulário rico, fazendo por vezes lembrar - ainda que sejam escritas muito diferentes - a finura do nosso Eça...