terça-feira, 24 de março de 2015

"Na Rua das Lojas Escuras", de Patrick Modiano

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Quando descubro um autor (por "descobrir" pretendo significar "ler pela primeira vez"), e sou surpreendido pela obra lida, geralmente procuro ler outros livros do mesmo. Assim se passou, desde que li e muito apreciei Dora Bruder, com o francês Patrick Modiano, recentemente distinguido com o Prémio Nobel da Literatura. Foi, pois, com curiosidade que me lancei na leitura de outras obras do autor, primeiramente com Domingos de Agosto, que não deixou de me agradar, e agora com Na Rua das Lojas Escuras.
O que posso dizer deste livro? Antes de mais sublinho o que tem de comum com os dois anteriormente lidos: a persistência no problema da recuperação da memória. Tal como em Dora Bruder, este romance constrói-se em torno do esforço investigativo do personagem principal para resgatar a memória de um passado, neste caso o seu próprio passado (e com isso a sua própria identidade), que havia sido perdido de forma inexplicavelmente amnésica. Porém, ao contrário desse outro livro, em que o narrador não está diretamente vinculado a essa memória a recuperar, em Na Rua das Lojas Escuras o narrador age não só ativamente como interessadamente. E aqui é que as coisas perdem um pouco o encanto (já para não dizer a verosimilhança): o encadeamento das "pistas" é demasiado fácil e linear (uma informação leva a outra, a qual resulta graciosamente numa nova informação, e assim sucessivamente), sem grandes becos sem saída; por outro lado, os personagens que o ajudam são demasiada e incongruentemente dóceis e voluntaristas (oferecem-lhe ao primeiro contacto, à primeira troca de impressões, objetos significativos - fotos, livros, etc.).
Talvez o aspeto mais conseguido do livro (especialmente em termos narrativos) é o modo como o autor desenha a construção dessa memória: o caráter fragmentário, difuso dos primeiros passos vai gradualmente transformar-se em algo mais sólido, contribuindo para uma sensação de "degelo" da memória (o narrador começa a recuperar mais e mais elementos impressivos do seu passado).
Numa visão mais global, no entanto, este livro não me encantou. Considero que prometia - pese embora a já referida linearidade que achei um tanto excessiva - mais do que efetivamente concretiza; vago e impreciso, certamente para mimetizar o efeito de recuperação de uma memória olvidada, este romance acabou por me desiludir, não chegando (contrariamente ao que acontecera com Dora Bruder) a lado nenhum - isto porque chegar à Rua das Lojas Escuras foi, para mim, uma experiência demasiado pobre.

sábado, 21 de março de 2015

"Porquê Ler os Clássicos?", de Italo Calvino

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«Só resta inventar cada um uma biblioteca ideal dos nossos clássicos; e diria que ela teria de ser constituída metade por livros que já lemos e que foram importantes para nós, e metade por livros que nos propomos ler e pressupomos que sejam importantes. E deixando uma secção de lugares vazios para as surpresas, para as descobertas ocasionais.» (in Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?)
Italo Calvino é um escritor que muito aprecio, conhecendo-lhe relativamente bem a obra romanesca - tanto na sua faceta mais fantástica e (de certo modo) popular (O visconde cortado ao meio, O barão trepador, O cavaleiro inexistente), como na sua faceta mais experimental (As cidades invisíveis, Se numa noite de Inverno um viajante, Palomar). Este Porquê Ler os Clássicos? não é, porém, um romance, mas antes um conjunto de ensaios sobre os "clássicos" de Calvino ao nível da literatura, escritos ao longo da sua vida e reunidos por ordem cronológica de autores.
O primeiro texto, que dá nome ao volume, é um ensaio inteligentíssimo em que se procura definir (sem esgotar o tema - nem há essa pretensão) o que é um "clássico". Daí se podem retirar algumas ideias que, sem nunca as ter formulado, me parecem evidentes: «Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: «Estou a reler...» e nunca «Estou a ler».», «De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.», «De um clássico toda a leitura é na realidade uma releitura.» ou «Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.».
Os restantes trinta e cinco textos abordam obras desde o mundo antigo (greco-romano) à contemporaneidade, passando por algumas obras que, também fazem parte da galeria dos meus clássicos - a monumental Odisseia, de Homero; Cândido, de Voltaire; esse livro absurdamente delicioso chamado Jacques o Fatalista, de Diderot; ou essas singulares Ficções, de J. L. Borges. Outros são livros que tenho registados para leitura futura - é o caso das Metamorfoses, de Ovídio, e de Orlando Furioso, de Aristo. São igualmente tratados (obras de) autores como Xenofonte, Plínio, Galileu, Cyrano de Bergerac, Daniel Dafoe, Stendhal, Balzac, Dickens, Flaubert, Tolstoi, Twain, Henry James, Stevenson, Conrad, Pasternak, Gadda, Montale, Hemingway, Raymond Queneau, para além de contos orientais e de romances de cavalaria, e de autores que desconhecia totalmente como Jerónimo Cerdano, Giammaria Ortes e Francis Ponge. Ainda que estes sejam os autores tratados, a listagem de autores referidos - entre os quais Dante, Shakespeare, Cervantes (Dom Quixote é frequentemente mencionado), Laurence Sterne (nomeadamente o seu Tristran Shandy), Leopardi, Baudelaire, Dostoievski, Potocki, etc, só para citar os que me são mais caros - mostra que o conjunto de "clássicos" de Calvino era bem mais lato.
Então, porquê ler este livro? Muitas vezes gosta-se de algo sem se (procurar) saber porquê. Calvino, de uma forma quase sempre clara, apresenta as suas razões para considerar aqueles autores e obras como clássicos, como indispensáveis na sua biblioteca. Em tempos de efemeridade e de relativismo cultural (em que se não aceitam critérios absolutos para avaliar a bondade do que quer que seja e, simultaneamente, se acha razoável o critério do sucesso de vendas - o que acaba por colocar autores medíocres e superficiais à frente de autores inovadores e com valor literário), ler esta obra de Calvino afigura-se-me uma mais valia. Calvino, para além de nos mostrar a sua paixão pelos livros tratados - os seus "clássicos" -, consegue provocar a nossa curiosidade e vontade de ler. E que vitória maior poderia resultar de tal livro?
Pessoalmente, a leitura deste livro deu-me alento para continuar o meu percurso literário, ainda que consciente que «(...) por mais vastas que possam ser as leituras «de formação» de um indivíduo, fica sempre um enorme número de obras fundamentais que não se leu.»

quarta-feira, 11 de março de 2015

"Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis

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Certo e sabido: este Memórias Póstumas de Brás Cubas é um daqueles romances a que sabe bem voltar. Apesar de ainda guardar na memória os contornos gerais, este romance é soberbo, verdadeiramente delicioso. Não é por acaso que Machado de Assis é muitas vezes comparado a Eça de Queiroz (e/ou vice-versa): não apenas foram contemporâneos, como partilharam a mesma finura no uso do humor, da ironia e do sarcasmo, recursos sobretudo postos ao serviço do olhar social - neste romance, diga-se, a crítica social é constante (as vaidades, as ambições, os limites da moral vigente, as hipocrisias, etc.).
Estas "memórias póstumas" - escritas, portanto, do outro mundo -, contando as aventuras e desventuras, amores e desamores de Brás Cubas, apareceram pela primeira vez no formato de folhetim, em 1880. Talvez isso explique, pelo menos parcialmente, a dimensão relativamente curta (de poucas páginas até meia dúzia de linhas) dos capítulos, iniciados ou encerrados ao sabor da disposição, do ânimo, da paciência do narrador - esta opção resulta muito bem, tremendamente fresca e leve. Além dos aspetos "formais" inovadores (a existência de capítulos como, como exemplo, o CXXXIX, "De como não fui Ministro de Estado" - formado por cinco linhas de reticências), que revelam a (aliás assumida logo no prólogo) influência do Tristram Shandy, de Laurence Sterne (livro que pretendo ler num futuro próximo), achei muito singulares as inúmeras referências cultas do livro (a filósofos, escritores, artistas), mas também os permanentes remoques ao leitor (apelando à sua paciência ou convidando-o a saltar capítulos, se o tema não for do seu agrado) e os comentários metaliterários («E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro.», Cap. IX).
Ao reler este livro pude confirmar o lugar de destaque em que o tenho colocado. Se a primeira leitura havia resultado numa surpresa, esta releitura resulta numa confirmação. Memórias Póstumas de Brás Cubas é, sem qualquer dúvida, um dos meus romances de eleição.

sexta-feira, 6 de março de 2015

"Domingos de Agosto", de Patrick Modiano

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Lido o segundo livro de Patrick Modiano, julgo poder dizer que encontro neste autor (na sua escrita) algumas das características que procuro nas minhas leituras. Ainda que Dora Bruder me tenha conseguido surpreender, este Domingos de Agosto, um livro com características bem distintas, também me agradou.
Tal como em Dora Bruder, neste livro Modiano joga com a recuperação de acontecimentos (de contornos nem sempre muito bem definidos) do passado. Este romance desenvolve-se em torno de dois amantes (o narrador e Sylvia) e de um diamante com um sombrio historial...
Em suma, um livro de leitura fácil, convidativo, estimulante.

terça-feira, 3 de março de 2015

"Arte Poética. O Meridiano e outros textos", de Paul Celan

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Neste curto volume reúnem-se praticamente todos os textos em prosa do poeta Paul Celan. De interesses muito diversificados, nestes textos é possível ler a visão do autor no que respeita ao sentido da poesia (e da sua poesia em particular) - e assim se justifica o título do livro: Arte Poética. Destaco dois textos: "Contraluz", um conjunto de aforismos (poéticos), e "Diálogo na montanha", uma curta história em que o Absoluto e o Impronunciável se cruzam num diálogo, marcado por um certo grau de absurdo, entre dois judeus.
Li este livro "por engano" (requisitei-o na biblioteca - conjuntamente com A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio - pensando ser um livro de poesia), mas ainda assim retirei algum proveito, o que já não será mau.

segunda-feira, 2 de março de 2015

"A Desumanização", de Valter Hugo Mãe

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 Quando há mais de uma década tomei conhecimento da existência de Valter Hugo Mãe, este autor ainda não havia editado o seu primeiro romance. Era um jovem poeta, ainda relativamente desconhecido, e um dos responsáveis pela Quasi, um projeto editorial que segui com muita curiosidade até à sua extinção. Entretanto, publicou uns quantos romances, livros para jovens, entre outros, e dinamiza um programa cultural num canal de televisão por cabo. Infelizmente, e apesar de ter continuado a seguir o seu percurso literário, deixei de acompanhar a sua poesia.
Não há muitos anos li o seu romance Filho de Mil Homens, depois de não me ter sentido cativado a abordar os seu "romances das minúsculas" (formalismo trazido da poesia, que nada acrescenta ou retira ao género romanesco, que foi muitas vezes tomado como uma vontade vaidosa mas vazia de mostrar singularidade pelos seus detratores). Para ser franco, não considerei Filho de Mil Homens um romance particularmente interessante, mas abracei a desculpa de que nem sempre é fácil escrever histórias de amor (muito pelo contrário, é muitíssimo difícil não cair na pieguice), e predispus-me a voltar aos romances do autor.
Foi com esta predisposição, bem como com a impressão positiva que guardo da personalidade cultural, que parti para a leitura de A Desumanização, obra que, aliás, recebeu muita atenção dos meios de comunicação social e críticas bastante positivas. Porém, de novo, não consegui ficar "fascinado" pela escrita romanesca de Valter Hugo Mãe. Tal como no romance anterior, a infância (e o crescimento e desenvolvimento da personalidade e do humanismo individual) enquadram a história. Halldora, a narradora de 11-12 anos, luta por sobreviver à perda da sua irmã gémea, e por crescer num contexto familiar devastado pela dor; a ação passa-se na Islândia mas isso, a meu ver, acaba por ser apenas mais um aspeto de contexto, ou mesmo uma marca estética. O cerne do romance está na abordagem da (já referida) dor, da violência, do crescimento, da formação da personalidade num contexto de desequilíbrio. O tom "ternurento" do livro anterior, ainda que se perca em parte, persiste.
Se estilisticamente considero a escrita de Hugo Mãe bastante rica e singular, devo assumir que não sou totalmente fã (será, pois, uma questão de gosto pessoal) de um certo excesso de efeitos metafóricos e apelos à sentimentalidade, à emotividade. Há, talvez, um excesso de sensibilidade na escrita romanesca deste autor que me afasta - com isto quero dizer que um leitor como eu, constantemente "estimulado" pequenas reflexões, imagens poéticas, frases tautológicas nem sempre com grande conteúdo, etc.), se perde da história, cai na distração, deambula indisciplinadamente pelos próprios pensamentos (nem sempre muito relacionados com o que se leu), até - infelizmente - se cair no cansaço. Talvez esse excesso esteja na procura constante do poético, do belo, da vinculação afetiva do leitor à palavra. Talvez seja algo parecido a isto (melhor não sei colocar por escrito) que não resulta a meu contento. O que fazer agora?