Uma "comédia", a obra
Antigos Mestres, de Thomas Bernhard? Talvez seja um epíteto exagerado, ainda que, num determinado sentido (cínico?), o possamos compreender (parece, de facto, haver qualquer coisa de trágico-cómico neste romance do autor austríaco). De qualquer forma, uma obra seguramente carregada de ironia, ou de algo (humor?) extremamente ácido e corrosivo...
A escrita de Bernhard, como já se escreveu
noutro texto (o primeiro de caráter apreciativo, aliás, a ser publicado neste blogue), é bastante singular: a sua prosa, isenta de parágrafos ou capítulos (os seus livros são normalmente constituídos por um único parágrafo, aonde se vão sobrepondo vários níveis de ação), é pontuada por sucessivas repetições que quase poderão parecer monótonas ou, no mínimo, obsessivas. Mas nestas repetições, julgo eu, está um dos segredos da escrita do autor: é que com este voltar várias vezes aos mesmos temas, às mesmas ideias (ainda que com fugas, variações e reformulações pelo meio, que ora acrescentam ou pormenorizam, ora corrigem ou mesmo contradizem - daí se poder reconhecer na escrita bernhardiana um ritmo quase musical, sinfónico), o leitor é agarrado (ao fim de umas quantas passagens por uma ideia já lhe reconhece os contornos, ainda que estes sejam fugidios)! Além disso, é uma escrita em que, de uma forma irrepreensível e milimetricamente rigorosa, se vão cruzando várias perspetivas (mesmo que em
Antigos Mestres sigamos a escrita-pensamento do narrador, vamos escutando os ecos das suas conversas com outro personagem).
Tal como acontece em todas as obras que já pude ler do autor, são inúmeras as referências à cultura ocidental; neste livro, os "antigos mestres"
(os ditos "nomes grandes" da pintura) são frequentemente referidos, bem como o são escritores, compositores e suas obras. O mundo da cultura (da "alta cultura", por oposição à cultura popular) é, pois, um dos territórios de eleição de Bernhard - sobretudo para o criticar (o pretensiosismo desse mundo, a falta de gosto de quem o encima, a decadência) ou mesmo amesquinhar...
Em
Antigos Mestres, a narrativa desenvolve-se em pouco mais de uma ou duas horas. Reger (um musicólogo de 82 anos, viúvo, reconhecido internacionalmente - mas não na Áustria - pelos seus artigos no britânico
Times - artigos esses que o próprio considera, nada modestamente, pequenas "obras de arte") havia combinado no dia anterior encontrar-se com Atzbacher (seu amigo de longa data, escritor-filósofo ainda que sem obras publicadas - é ele o narrador desta história) às onze e trinta no Museu de História de Arte de Viena. Atzbacher, no entanto, chega com uma hora de antecedência para poder observar o amigo na sua contemplação de uma tela de Tintoretto (Reger tinha o hábito, há mais de 30 anos, de passar, de dois em dois dias, as manhãs sentado frente aquele quadro: aquele era o seu lugar de produção intelectual, de intenso pensamento); pontualmente (isto
acontece a meio do livro), Atzbacher senta-se ao lado do velho musicólogo e o diálogo da véspera, ou de sempre, é continuado...
Há na escrita de Bernhard - pela voz e pelo pensamento dos seus personagens - um enorme cansaço ou tédio por tudo, uma deceção amarga e um pessimismo ontológico, uma imensa revolta. Em tudo se vê corrupção, falsidade, mediocridade - mesmo nos aparentemente perfeitos e intocáveis "antigos mestres" (estes, afinal, nada mais procuraram que fama ou dinheiro, servindo subservientemente os maiores - ou os piores, mais abjetos - senhores...). Daí que prevaleça uma "estética do exagero": a realidade, longe de ser retratada fielmente, é caricaturizada com as cores mais agressivas; as críticas são levadas ao extrem, à quase aniquilação!
A Áustria é apodada de "horroroso país", onde a «(...)
baixeza geral inimiga do espírito (...)
reina por toda a parte». E mais se diz: «
Na Áustria é preciso mediocridade para se poder falar e ser tomado a sério, é preciso ser um homem de incompetência e doblez provinciana, um homem com uma cabeça inteiramente de pequeno Estado. Um génio ou mesmo um espírito extraordinário é aqui, mais tarde ou mais cedo morto
de uma forma aviltante». O austríaco, por sua vez, é acusado de "hipócrita oportunista nato"; e dos vieneses diz-se que «(...)
está provado cientificamente que o vienense só utiliza uma vez por semana o sabonete, tal como está cientificamente provado que ele só muda de cuecas uma vez por semana.» Os jornais austríacos seriam os mais repugnantes, e os políticos desse país corruptos impunes, com reminiscências católicas ou mesmo nacional-socialistas. Porém, apesar deste azedume todo face à Áustria, o personagem Reger acaba por concluir que os outros países são igualmente (se não mesmo mais) vis, perversos, falsos, mas «(...)
só o nosso país é que nos interessa alguma coisa».
Também os professores são visados: «
Não há nenhum gosto artístico mais medíocre que o dos professores. Os professores estragam logo na escola primária o gosto artístico dos alunos, tiram-lhes logo de início o interesse pela arte, em vez de lhes explicarem a arte e especialmente a música, de modo a que possam constituir um prazer.»; e ainda «
A maior parte dos nossos professores são pobres criaturas, cuja missão na vida parece consistir em trancar a vida aos jovens e torna-la por fim numa horrível deprimência. Também para a profissão de professor são vão as cabeças mesquinhas, perversas e sentimentais, da classe média mais baixa.» Perante isto, a instituição escolar não podia sair incólume: «
Quando ia para a escola, ia para o Estado e como o Estado destrói as pessoas, ia para o estabelecimento de destruição de pessoas».
O mundo das artes, como já se aludiu, também não escapa. Sobre os artistas diz-se que «(...)
são os mais hipócritas, ainda muito mais hipócritas que os políticos»; além disso, são subservientes (colocando-se ao serviço do Estado, do poder) e imperfeitos nas suas obras (quando olhadas com profundidade, todas as "grandes" obras revelam defeitos, ou mesmo aspetos
kitsch). Os maiores artistas austríacos são arrasados por Reger, como acontece com o escritor Adalbert Stifter, e os compositores Anton Bruckner ("compositor miserável") e Gustav Mahler ("compositor mediano", "sobrestimado"; com ele a música austríaca atingiu "o seu ponto mais baixo"); mas também não são esquecidos o filósofo alemão Martin Heidegger ("charlatão filosófico") ou Ludwig van Beethoven ("figura inteiramente repugnante").
Talvez a comédia esteja, então, neste tom (auto)destrutivo, absolutamente cáustico, mas também (à imagem daquele final absolutamente delicioso de
Os Maias, em que há um reconhecimento de se ter falhado a vida) o reconhecimento da derrota perante o estado das coisas - a decadência sem fim...