segunda-feira, 27 de julho de 2015

"Ilíada", de Homero

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Depois de reler a Odisseia, obra que está entre as que mais estimo, era forçoso descobrir a Ilíada, o relato da Guerra de Troia entre gregos (reunidos sobre o comando de Agamémnon) e troianos (entre os quais Páris, o jovem que raptara Helena, mulher de Menelau, violando a hospitalidade que lhe havia sido dada pelo marido daquela). Escuso-me a entrar em considerações sobre a historicidade deste confronto ou sobre a localização de Ílion (ou Troia), ou ainda sobre a autoria e a forma de composição (oral ou escrita) - aspetos que têm fascinado gerações de estudiosos. O prazer da leitura não exige entrar em tais dificuldades.
Como é evidente, parti para a obra com várias ideias feitas - sobre o enredo (os motivos da guerra, já acima tocados, ou o desfecho final), sobre os principais heróis, sobre a ambiência guerreira, etc.; a leitura, no entanto, conseguiu surpreender-me tremendamente. É que, tal como a Odisseia, este é um texto absolutamente fascinante (a Ilíada é uma daquelas obras completas, universais, absolutas), em muitos momentos belo (e julgo que é justo chamar a atenção para a excelente tradução em verso de Frederico Lourenço - que, aliás, também assina uma notável introdução, que consegue ser muito motivadora), e também fresco e inovador (a sua não linearidade feita de analepses - o passado vai sendo evocado para explicar o presente - e prolepses, por exemplo).
Na Ilíada há figuras absolutamente marcantes, heróis valentes que se batem para obter nome e glória mas também despojos. Atente-se aos heróis do lado grego: desde logo temos Aquiles, o herói que inicialmente se zanga com o chefe da expedição (por se considerar desconsiderado) e até ao canto XIX (dos 24 existente) renuncia ao combate (só retoma o combate para vingar, com uma fúria sanguinária, a morte do seu amado companheiro Pátroclo); depois, os irmãos Agamémnon e Menelau (este último marido da raptada Helena); também figuram os valorosos dois Ajax (os Ajantes), o ardiloso Ulisses e - talvez um dos meu prediletos - Diomedes, de tal forma destemido que chega a enfrentar um deus! Do lado troiano destaca-se Heitor (herói admirável, ainda que muito do seu arrojo resulte de ajuda divina) e, ainda que com menos proeminência, Eneias; Páris, quando aparece, é retratado como um ser frívolo e não exatamente valente... Participantes na ação narrada são, por fim, os vários deuses (uns favoráveis aos gregos, outros aos troianos), que chegam a intervir diretamente nos combates - afastando armas (e assim a morte), incutindo coragem, iludindo e defraudando, etc.
Ao longo deste épico relato, as descrições bélicas são bastante vívidas e emocionantes, mas também bastante violentas. Eis dois ou três exemplos retirados (sem grande esforço de seleção) do vigésimo canto: «(...) e todo o crânio se partiu em dois» (v. 386); «(...) penetrou a ponta [da lança] e estilhaçou o osso. Os miolos por dentro / ficaram todos borrifados» (vv. 399-400); «(...) e ao tombar segurava os intestinos nas mãos» (v. 418). Cabeças decepadas, corpos desmembrados, escalpes arrancados, olhos que saltam para fora das órbitas, sangue e ossos partidos vão-se sucedendo nas cenas de luta; de acordo com o que nos informa Frederico Lourenço na sua introdução à obra, morrem ou são feridos apenas cerca de 230 personagens liderantes - mas ficam subentendidas as mortes (muito mais numerosas) de anónimos soldados. Memoráveis são também alguns momentos de intensa emotividade e humanidade, tais como a despedida de Heitor da sua esposa e filho - que, quando o herói o tenta abraçar, se assusta com o seu aspeto agressivamente bélico; a dor (e furiosa vontade de vingança) de Aquiles pela morte de Pátroclo; ou, no final do relato, da desumanidade de Aquiles (no modo como profana o cadáver de Heitor).
Desconhecido para mim era o facto de a narrativa desta obra não se fechar totalmente: a Ilíada termina com a morte de Heitor, as cerimónias fúnebres a Pátroclo e a restituição do cadáver do herói troiano a seu pai. A guerra não se encerra: depois do período de trégua prometido por Aquiles a Príamo, para que este possa proceder às últimas homenagens a Heitor, adivinha-se o continuar da guerra, num momento em que os troianos estão confinados ao interior das muralhas, privados dos seus principais e mais fortes guerreiros, Sabemos também que Aquiles morrerá (fora-lhe augurada a celebridade mas também a morte), e que a cidade será tomada (através de uma artimanha montada por Ulisses - o famoso "cavalo de Troia" - relatada na Odisseia).
Ainda que considere a Odisseia uma obra mais apelativa (talvez por ser mais diversificada na ação), não posso negar o igual valor e interesse da Ilíada. São duas obras fundamentais da cultura.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

"Três Homens de Bicicleta", de J. K. Jerome

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Este Três Homens de Bicicleta, do britânico J. K. Jerome, é a continuação de Três Homens num Bote, lido não há muito. Desta vez, os três amigos (o narrador, Harris e George) decidem empreender uma digressão pela Alemanha com a finalidade de fugir à rotina (que, se pelo menos no caso dos primeiros dois amigos citados, se confunde um pouco com a vida doméstica, entre mulher e filhos). Tal como no relato anterior, este livro tem um caráter digressivo, sendo constituído por uma sucessão de peripécias e historietas de comicidade moderada (muito moderada até). É certo que o humor britânico está presente nas páginas deste livro, naquilo que tem de contenção, mas também de patético ou de non sense; porém, julgo que lhe falta a frescura (talvez a originalidade) do outro esforço do autor.
O aspeto que considerei mais interessante (mesmo que - de novo - apenas moderadamente interessante) são as várias considerações que vão sendo feitas (de um modo caricatural) ao caráter do povo alemão: a sua ultracivilização (que no limite lhe faz procurar dar ordem à própria Natureza), o seu doentio sentido de dever e excessivo zelo no cumprimento estrito da Lei (todos os aspetos da vida alemã, segundo o narrador, estavam devidamente legislados, com suas muitas proibições e multas), a sua faceta eminentemente militarista e cultora da cega obediência, e mesmo a sua falta de humor. Estas apreciações - e neste ponto termino -, num livro publicado originalmente em 1900, fizeram-me pensar um pouco no papel da Alemanha e do seu povo na história europeia da primeira metade do século XX: não querendo nem podendo cair em generalizações e juízos de valor bacocos, é impossível não encontrar nestas "ideias feitas" alguns dos elementos que, de uma forma ou de outra, se manifestaram nesse período da história alemã.

terça-feira, 7 de julho de 2015

"D. Sancho II. Tragédia", de Hermenegildo Fernandes

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Porque tenho vindo a acompanhar (que é como quem diz: a ler) os volumes que integram a coleção "Reis de Portugal", já tive mais do que uma vez a oportunidade de sinalizar o desigual interesse (para este leitor em particular, sublinhe-se) das diversas biografias (bem como os métodos, abordagens, etc.). Esta, começo por esclarecer, foi uma das que menos me agradou: apesar de lhe reconhecer vários (e sólidos) méritos, não pude ficar indiferente aos seus pontos menos apelativos.
O percurso de D. Sancho II, pelo que se pode perceber através da leitura da obra de Hermenegildo Fernandes, é um mais sombrios, no sentido que para certos períodos a documentação existente é escassa ou, quando existe, é demasiado indireta para apreender a figura do monarca ou os acontecimentos mais significativos do seu reinado; por outro lado, trata-se de um rei deposto (passou a reinar o seu irmão, D. Afonso III), o que exige muito mais fina acuidade na perceção das várias faces e minúcias do contexto de tal queda (a ideia de uma contexto conturbado é que explica o subtítulo "Tragedia"). O biógrafo chega a dizer numa nota prévia ser D. Sancho II «(...) um rei invisível, quase intangível», seja por incapacidade do rei (por uma eventual não ação ou falta de capacidade governativa, em especial em certas fases do seu reinado), seja por escamoteamento propositado da sua memória (o que equivale a dizer a uma posterior seleção dos documentos a preservar e/ou omissão/destruição do que eventualmente se entendeu ser desnecessário ou incómodo); assim, esta não é uma biografia em sentido estrito, mas antes «(...) uma história política com o rei por centro».
Se há algo que encontro nesta obra é uma grande honestidade no apontar das limitações do trabalho historiográfico. O biógrafo separa bem o que é factual das hipóteses, interpretações, construções intelectuais. Muitas vezes, encontrei, dada a escassez informativa que lhe serviu de base, extrema finura nas hipóteses colocadas, normalmente bem fundamentadas (e há muito trabalho dedutivo nesta obra, pelo que mais relevante se torna o modo como este é feito). A minúcia com que a informação é trabalhada (recapitulada, desdobrada, reanalisada) atesta igualmente para o cuidado historiográfico do autor, pese embora imprima uma certa lentidão no ritmo narrativo.
A escrita do autor é, frequentemente, pesada (decorada, cheia de efeitos e volteios evitáveis) ou mesmo fastidiosa, talvez por ser "elevada" em excesso (isto é, a sua escrita é intelectual e complexa - tique que pode facilmente ser confundido com pompa, pedantismo ou pretensiosismo, e prejudica o básico prazer da leitura); com isso, o autor consegue afastar o leitor comum para agradar (é, pelo menos, o que deduzo) ao leitor eminentemente erudito. Não vejo a necessidade para se escrever "Leonor ainda puella", ou então "urbe tagana" para se referir a Toledo (barroquismos que me desagradaram); entendo que dizer por muitas palavras o que se poderia dizer de uma forma mais simples (sem, contudo, sacrificar o sentido ou a profundidade) é contraproducente para o leitor comum, que apenas procura de modo honesto o entendimento. Abundam neste livro frases como «O nódulo central deste sistema de alianças converge para uma figura originária, uma espécie de Eva simbolicamente portadora de uma matriz de ADN mitocondrial, uma mater cuja longa vida abrange três quartos do século XII e que se encontra ainda politicamente ativa cerca de 1200», que, sendo compreensíveis (ainda que exijam uma atenção redobrada), poderiam conhecer formulações mais simples. A erudição, segundo quero crer, não depende da complexidade que se coloca na frase; o autor, sem este excesso retórico que lhe notei, consegue mostrar o rigor do seu trabalho historiográfico, como acima tive oportunidade de apontar.
O volume lido, há também que fazer esta referência, não ajuda o leitor, dados a densa mancha gráfica, a pequenez do tamanho de letra (as linhas tornam-se longas, indo quase até ao limite da folha) e o curto espaçamento entre linhas (julgo serem exageradas as 47 linhas que contei numa página sem notas de rodapé). Como é evidente, e daí chamar a atenção para este ponto, tal aspeto gráfico torna a leitura muito mais incómoda, cansativa (obrigando a descansar os olhos com frequência). Esta característica não é, no entanto, exclusiva desta volume - nesta coleção (na edição da Círculo de Leitores, e não na da associada Temas e Debates) há vários volumes com esta "maleita" (mesmo que perceba a lógica da economia de folhas, dado ser uma volumosa coleção para arrumar, julgo existirem limites de razoabilidade; afinal, pode bem ser uma bela coleção para decorar uma estante, mas antes de tudo deveria servir o propósito de uma leitura confortável).
As dificuldades e os pontos menos compatíveis com este leitor particular, como referi, foram múltiplos. Não fosse o meu objetivo de ler os trinta e quatro volumes desta coleção, certamente teria abandonado a biografia de D. Sancho II.

sábado, 4 de julho de 2015

"A Aldeia de Stepantchikovo e os seus Habitantes", de Fedor Dostoievski

 
Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Mais do que uma vez tenho escrito que Dostoievski é um dos meus autores de referência. Nos meus anos de formação como leitor, passadas as leituras próprias da adolescência e primeira juventude, Dostoievski foi um autor basilar - um daqueles que, pelo seu génio, abriu portas e, consequentemente, deixou profundas marcas. Nestes últimos anos tenho regressado às suas obras (talvez não seja totalmente correto falar em regresso, porque na verdade nunca me distanciei - apenas espacei mais as leituras), repisando desde as suas obras-primas até às suas obras menores.
A Aldeia de Stepantchikovo e os seus Habitantes, não sendo um das suas obras mais marcantes, também não será das suas obras de menor interesse. Julgo que este romance mostra-nos de uma forma aberta a faceta humorística do autor, sendo que o seu humor encerra tonalidades patéticas ou mesmo absurdas. De certa maneira, pesem embora as diferenças, há n'A Aldeia qualquer coisa de gogoliano, combinado com o poder dostoievskiano em montar boas histórias.
No centro do enredo temos Fomá Fomitch, personagem com um vasto conjunto de aspetos negativos. Lacaio subserviente (e humilhado) de um general, Fomá havia-se convertido, após a morte do militar, num figura despótica (insuportavelmente arrogante, manipulador, chantagista, maldoso, caprichoso, birrento) junto da viúva e do seu filho - o bondoso, delicado e fraco Egor Rosstaniov, proprietário de Stepantchikovo e anfitrião de Fomá. O narrador, sobrinho de Egor, relata-nos as violências, exigências e caprichos de Fomá Fomitch, arranjando uma explicação psicológica para o seu comportamento (o ressentimento por ter sido bobo do general degenerara numa índole vingativa e tirânica). Em toda a ação bem como na caracterização dos vários personagens impera um certo exagero (ou, como acima referi, patético), que traz sumo a esta espécie de farsa ocorrida em apenas dois dias.
Marcada pela abundância de diálogos, este é um livro bastante acessível do autor. Ainda assim, julgo que é muito recomendável.