quinta-feira, 20 de outubro de 2016

"Tatuagem", de Manuel Vázquez Montalbán

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Apostado em ler, entre outras leituras, uns policiais, e estando a seguir o trilho de Simenon e Montalbán, eis que chegou a vez deste Tatuagem.
Desta vez, Pepe Carvalho, investigador privado insólito, é contratado para descobrir a identidade de um cadáver que dá à costa com a enigmática tatuagem "Nasci para revolucionar o inferno", personagem que rapidamente é associado a atividades ilícitas e a redes que operam na Holanda. Alguns personagens repetem-se de outros livros recentemente lidos: Charo, a prostituta-amante de Pepe, ou Teresa Marsé (de Os Pássaros de Banguecoque), na sua primeira aparição.
A escrita de Montalbán é fundamentalmente direta, mas pontuada por um humor muito próprio, que mistura ironia com uma certa rudeza («Contemplou com palermice de turista o palácio do Tribunal Internacional. Um animal de grandes intestinos cagava sobre a relva que precedia a a porta gradeada.»). Aliás, essa rudeza liga com com a personalidade do detetive, um dos atrativos - a meu ver - dos policiais de Montalbán.
Pepe Carvalho conjuga, pois, um passado algo nubloso (enquanto agente da CIA), uma adivinhada cultura literária (ainda que vá eliminando os volumes da sua biblioteca), um apurado gosto pelo bom comer e beber (mais uma vez, repetem-se os episódios em que se fazem apreciações gastronómicas, em que se descrevem minuciosamente os pratos apreciados em restaurantes ou até em que se avançam receitas), uma certa brutalidade no agir e no pensar. Carvalho não é, assim, muito dado a meditações filosóficas (a existirem, estas aparecem associadas à comida: «A inevitável filosofia da sobremesa ofuscava a mente de Carvalho.»); prefere viver num certo primitivismo intelectual, talvez renegando o que já fora («Repugnava-lhe qualquer tempo perdido na análise do mundo em que vivia, e já há muito decidira estar de passagem entre a infância e a velhice de um destino pessoal e intransmissível, de um vida que, mais ou menos, melhor ou pior, ninguém viveria por ele. Os outros que fossem levar no cu. Limitara a sua capacidade de emoção abstrata à que lhe pudesse transmitir a paisagem. As suas restantes emoções eram-lhe proporcionadas pela pele.»).

domingo, 16 de outubro de 2016

"O Ruído do Tempo", de Julian Barnes

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Julian Barnes é autor de O Papagaio de Flaubert, livro que muito prazer me deu descobrir, e que é um dos meus primeiros contactos com aquele tipo de literatura que, sem timidez, se funde com o ensaio. Esse é, para mim, um livro brilhante (brilha na minha "mitobibliografia"), que me marcou imenso, que reli umas quantas vezes (e conto outras tantas reler) para reencontrar (e de facto reencontrei sempre) o imenso prazer de o estar relendo. Acontece, porém, que já não leio um livro de Julian Barnes há uns tempos; e mais: o bom conceito que tenho do autor, assenta - com o livro agora lido - em apenas três livros (o que é manifestamente pouco e só me incentiva a procurar descobrir os que ainda não pude ler).
O Ruído do Tempo, o último livro do autor, despertou, desde que tomei conhecimento da sua existência, a minha curiosidade. Li umas quantas palavras convidativas na imprensa e na Internet (mas que podem tais palavras significar, quando quase sempre estão presas à mera promoção?), folheei o volume numa livraria e, depois da boa impressão com que fiquei, decidi-me finalmente a lê-lo. O tema do livro ajudou bastante: Barnes dedica este livro a Dmitri Shostakovich (ou Chostakovich), compositor russo que está ligado ao meu percurso como apreciador de música.
Evidentemente que, ao entrar na biografia de um autor que procurou ser omisso ou esquivo nos seus pensamentos (e daí haver tanta celeuma em torno deles; discute-se, por exemplo, a questão do seu - sincero?, coagido? - alinhamento com o regime), Barnes opta por "uma certa" interpretação (nem de outro modo poderia ser); porém, o que encontrei nesta obra coincide, grosso modo, com o que conheço do percurso de compositor russo - o que, evidentemente, me fez gostar ainda mais dela.
«Só sabia que este era o pior tempo de todos.» Desta forma abre Barnes os três capítulos que compõem O Ruído do Tempo. O livro parte do modo como a sua ópera "Lady Macbeth de Mtsensk" pôs, em virtude de um artigo arrasador no Pravda denominado "Chinfrim em vez de música" (possivelmente saído do punho de Estaline), a carreira e a vida de Shostakovich em risco - passou de compositor amado e reputado a inimigo do povo. A segunda parte retrata a ida (a mando de Estaline, que lhe telefonou pessoalmente) do compositor aos Estados Unidos da América, em 1949, em representação da URSS num congresso em prol da paz; aí, de forma humilhante, teve que ler um discurso preparado pelo Poder e condenar publicamente a música de Stravinski, compositor que muito admirava, como "formalista" (o pior vício que a arte podia revelar na União Soviética estalinista). Por fim, a última parte mostra-nos um Shostakovich, já no período de Krushchev, humilhado com a sua coagida adesão ao partido. De um modo geral, Barnes subscreve - a meu ver de uma forma muito plausível - a tese que defende que as "conivências" de Shostakovich com o Poder foram uma mera questão de sobrevivência, em especialmente nos tempos de "canibalismo" homicida de Estaline. O medo foi permanente na vida do compositor, contribuindo assim para o tom tenso, ansioso da sua música.
Os episódios revisitados pelo escritor inglês são relativamente conhecidos por todos os que amam a obra do compositor russo; porém, é na maneira de os contar que reside o brilho (talvez este passe a brilhar igualmente na minha "mitobibliografia") de O Ruído do Tempo. A escrita de Barnes é belíssima, a opção pela sucessão de "fragmentos" dá graça ao enredo.
Fecho dizendo que, mal acabei o livro, fiquei com vontade de o reler a breve trecho - talvez ainda este ano, quem sabe.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

"Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai", de Gonçalo M. Tavares

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Consigo reconhecer neste Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai as características que me fazem apreciar a escrita e o universo imaginário de Gonçalo M. Tavares, e que acabam por rebater a impressão menos positiva do livro lido há uns meses (Os Velhos Também Querem Viver).
A história desenvolve-se em torno de dois personagens: Hanna, uma menina com trissomia 21 que diz andar à procura do pai, e Marcus, um indivíduo que, embora andando em fuga (do seu passado?), encontra uma espécie de rumo na busca de Hanna. Na sua dupla demanda (busca/fuga), estas duas figuras cruzam-se com um conjunto de seres caricatos, cada um com um modo particular (igualmente insólito) de ver a vida e o mundo: um revolucionário que cola cartazes em ruas secundárias, um antiquário que, seguindo uma tradição familiar, se dedica a escrever números pares, ou um artista de arte microscópica.
Se li este livro com bastante agrado, achei o desfecho pouco satisfatório do romance - como se o mesmo concluísse à falta de conclusão, apagando-se no vazio. Poder-se-á legitimamente defender que mais nada haveria a contar, que mais nada se podia fazer daqueles dois personagens; porém, considerando o modo como o autor fechou os romances de "O Reino", acredito que este Uma Menina está Perdida no seu Século à Procura do Pai, mesmo sem trazer respostas, poderia ter sido fechado de um modo menos inócuo.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

"O Tambor de Lata", de Günter Grass

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Quando se parte para uma obra com expectativas, correm-se riscos, sendo a desilusão (já nem refiro a sensação de perda de tempo) o mais significativo. Ao partir para este O Tambor de Lata, do "nobelitado" Günter Grass, não pensei estar a fazer uma jogada arriscada; afinal, além de um certo estatuto subjacente ao prestigiado (mas nem assim tão linear) prémio literário, já havia recolhido alguns ecos positivos acerca das suas obras mais importantes. Até ao momento, apenas lera um curto ensaio intitulado Escrever depois de Auschwitz, que, de resto, achei bastante inócuo - mas sempre parti do pressuposto (continuo a partir, apesar de tudo) que tal texto não fazia justiça à escrita do autor.
O Tambor de Lata, publicado em 1959, é considerado um romance importante no âmbito da literatura alemã contemporânea, e isto, ao que parece, deve-se em grande parte ao facto de o autor ter (muito timidamente, a meu ver) tocado no tema do nazismo e da guerra. O narrador e protagonista, Oskar Matzerath, internado num asilo de alienados, revisita a sua história familiar e pessoal (e, por arrasto a da cidade de Danzig e a do povo alemão), desde finais do século XIX a meados do século XX. No centro do seu percurso há alguns aspetos que se assumem como centrais: o seu nanismo, o seu (conexo) comportamento infantilizado e a omnipresença dos tambores de lata ao longo da sua vida (presença essa de, segundo o narrador, tons quase metafísicos, pois Oskar pretende reconstituir o passado com a ajuda do tambor). De permeio há ainda a sua capacidade de partir vidros com a voz e a sua ambígua responsabilidade no fim de vários dos seus entes queridos. No fundo - muito no fundo -, é possível antever alguns aspetos da Alemanha dos anos 30 (os comícios nazis, o enquadramento da juventude, o destino trágico dos judeus).
A escrita de Grass, através do relato acriançado e/ou algo louco de Oskas, intenta ser irónica (ou mesmo cínica) e cómica. Porém, pessoalmente, não consegui simpatizar com o humor de Grass (acontece-me o mesmo, de certa forma, com o humor do português José Saramago). Ao longo do livro fiquei com a sensação de que o autor apontava para o "patético" (o "patético", isto é, a busca do caricato, do sensacional, do inaudito, pode ser literariamente brilhante - basta pensar em Gogol); porém, entendo que o autor alemão chegou apenas ao "pateta". Para mim, as mil e uma peripécias vividas pelo protagonista são mais "engraçadinhas" do que propriamente engraçadas. Outro aspeto que não me encantou (embora este aspeto em sim mesmo não seja um defeito) é a linearidade cronológica do enredo: certo, trata-se do relato de uma vida - mas a mera sucessão de episódios, sem qualquer profundidade subjacente, acabaram por matar-me o interesse.
Terminei as quase setecentas páginas do livro, mas tenho que confessar que penei um pouco nas últimas duzentas. Comecei gradualmente a desconfiar que a pobreza (filosófica, se quisermos) do livro iria estender-se até à última página; suspeitei que o autor não iria entrar, após quinhentas páginas de episódios mais ou menos rasteirinhos, em grandes elucubrações. E isso veio a confirmar-se, infelizmente. Talvez a culpa esteja neste leitor, mas a cinquenta páginas do fim, após um ou dois dias a ganhar coragem para retomar a leitura, só pensava no que ler a seguir.