segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"A Vida e Opiniões de Tristram Shandy", de Laurence Sterne

Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt
Este livro é praticamente o exemplo da descoberta espetacular antes de acontecer - eu sempre soube (não consigo explicar como) que este livro iria entrar na minha "lista" de livros fundamentais ou preferidos. Mas quem sou eu (ainda que não pretenda ser mais que o anónimo leitor, amante de bons - e havia tanto para dizer sobre tal adjetivo... - livros) para escrever sobre uma obra como A Vida e Opiniões de Tristram Shandy? O que poderei eu acrescentar ao que sobre ela já tantos escreveram?
Este livro, que vejo frequentemente nas seleções de obras fundamentais da literatura de figuras inteligentes e cultas, merece o título de obra-prima, embora - afirmo-o de antemão - talvez nem todos os leitores mereçam lê-lo. É um livro simultaneamente leve (tão leve quanto pode ser o diletantismo, a chalaça espontânea, o - perdoem-me os estrangeirismos - fait-divers e a blague) e denso (por abraçar frontalmente o caos, por privilegiar a escrita e a meta-escrita ao narrativo).
Este livro, que Machado de Assis aponta como uma das suas "fontes" em Memórias Póstumas de Brás Cubas, liga-se umbilicalmente (Sterne nunca o esconde, bem pelo contrário) a Rabelais e ao Cervante de Dom Quixote; por minha parte, não consigo deixar de o relacionar também com Jacques, o Fatalista, de Diderot (pelo seu caráter digressivo, pelos cortes, desvios e interrupções, ainda que Jacques seja mais "conservador" no aspeto narrativo), com o experimentalismo de Joyce (ainda que as "experiências" de Sterne sejam muito mais folgazonas, menos intelectuais, se se quiser), com os constantes arabescos bibliográficos de Borges (ainda que o autor inglês seja, julgo, mais irónico no uso que faz dos livros citados, plagiados, inventados, etc.), com essa procura de uma outra literatura - não necessariamente confortável ao leitor - de Vila-Matas...
Este livro chegou ao meu conhecimento há uma dúzia de anos por vias travessas: uma estudiosa (brasileira?) de fortificações militares setecentistas, num colóquio dedicado a Manuel de Azevedo Fortes, citou - e de uma forma tão apaixonada que conseguiu gravar Tristram Shandy na minha memória - a paixão do tio Toby Shandy: este soldado aposentado constantemente relacionava aspetos da vida civil com elementos da arquitetura e vida militar.
Este livro, publicado entre 1759 e 1967, dividido em nove volumes (quatro dos quais dedicados ao nascimento do protagonista), é um exemplo de conjugação inteligente de humor, originalidade, enciclopedismo, referências literárias e culturais, entre muitos outros aspetos. É, pois, uma obra universal, clássica, completa - mesmo que seja uma obra em aberto, que se poderia estender por mais nove volumes, por mais umas quantas digressões, variações e fugas. Da mesma forma que tem um capítulo sobre capítulos (vol. IV, cap. X), que o narrador (T. Shandy) considera mesmo o melhor do livro, apesar de nada dizer (nem pretender dizer) de concreto ou sentencioso, poderia haver um capítulo - igualmente não sentencioso - dedicado à frase, ao suspiro ou, quem sabe, ao diospiro, ou ainda ao pulgão do diospiro!... Capítulos em branco - ainda que mais tarde retomados - há dois.
Este livro tem constantemente um tom coloquial, sendo permanente o diálogo com o leitor; por outro lado, o mundo da escrita (isto é, do processo de criação, da edição, da crítica literária, dos autores consagrados - e não consagrados -, do comércio literário, do escrever para ganhar a vida, etc.) invade a cada passo a narração, como se o processo de construção da obra fosse mais importante do que aquilo que se constrói. As curiosidades/experiências tipográficas também abundam: as famosas páginas preta e colorida, o uso de caracteres góticos, o singular uso de asteriscos, pontos, hífens (de variados tamanhos), sinais.
Este livro, por fim, gerou - durante a sua leitura - uma quase instantânea vontade de o reler. O que poderia ser melhor? Em jeito de conclusão, de novo a  dúvida: o que poderia este texto acrescentar sobre esta obra simplesmente fabulosa? Nada... Então para que é que o escrevi? Para nada acrescentar, tendo-o escrito... Mas fica a informação: o texto que prefacia o volume, da autoria do tradutor Manuel Portela, certamente muito poderá acrescentar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

"KL - A História dos Campos de Concentração Nazis", de Nikolaus Wachsmann


Visite-nos em https://www.facebook.com/leiturasmil.blogspot.pt

Em tempos de escassez de tempo (passe a repetição), demorei cerca de um mês a ler este KL - A História dos Campos de Concentração Nazis - sendo certo que fui fazendo outras leituras, à data ainda não concluídas. (À custa disso, e de forma inédita nos últimos anos, acabei por não terminar qualquer livro no mês de Janeiro - não que a leitura seja uma competição com o objetivo de ler em quantidade; quem acompanha este blogue, certamente perceberá que esse não é o meu fito). No final do ano passado, constatei que a obra da autoria do académico Nikolaus Wachsmann foi muito bem recebida, como esforço de síntese que conjuga a diacronia com a sincronia narrativa; daí a minha decisão de ler este KL.
Nesta história do sistema concentracionário nazi, Wachsmann proporciona aos leitores um olhar sobre a sua evolução desde a chegada dos nazis ao poder, em 1933, até à sua derrota na guerra, em 1945 (e mesmo, no epílogo e de forma muito abreviada por fugir ao tema, um pouco para além desse acontecimento). Uma tal empreitada, muito bem estruturada e escrita (e traduzida com muita correção, pelo que pude avaliar), permite ao leitor comum ultrapassar a imagem algo estática que existe dos campos. Este livro é bastante explícito nas diferentes fases vividas pelo sistema - a nível administrativo e burocrático, das práticas (desde o germe do terror concentracionário, até à violência extrema, passando por muitos tons intermédios), das vítimas mas também dos perpetradores, etc. Momentos houve (sobretudo na década de 1930) em que houve libertações de prisioneiros e em que o exercício do terror e da violência não era tão sanguinário; Wachsmann consegue de forma exímia mostrar como os campos se transformam consoante o regime nazi se radicaliza (com a entrada na guerra expansionista - que resulta em massas de prisioneiros -, com as primeiras derrotas militares - que levam a uma atitude assassina de retaliação -, com a decisão genocida para a então denominada "questão judaica" - a "Solução Final" segue e desenvolve, aliás, os procedimentos que vinham a ser implementados para os casos dos deficientes mentais, doentes terminais, etc.).
Em vários momentos, este livro é duro, sobretudo em certas descrições e relatos (mesmo que o autor até seja relativamente comedido em tais passagens); consegue caracterizar muito bem o cinismo, a  completa falta de humanismo, o fanatismo radical dos criminosos, mas também os permanentes (e frequentemente armadilhados) dilemas e as grandes dificuldades (privações, doença, violência, seleções) que eram enfrentados diariamente pelas vítimas.
Ainda que seja um livro muito equilibrado, pessoalmente considerei particularmente aliciantes os últimos capítulos, pelas diferentes perspetivas consideradas: a questão moral (da justiça) torna-se então o motor subjacente à abordagem da derrocada do regime nazi e dos meses e anos que se lhe seguiram. Mas essa é outra história, que este livro, se nela toca, não desenvolve.
Futuramente, se oportunidade tiver (isto é, acesso ao livro), gostaria de ler o também recente Terra Negra. O Holocausto como história e aviso, de Timothy Snyder (autor de Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline).