quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

"O Coração das Trevas", de Joseph Conrad

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Termino o ano com a leitura de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Ao longo das páginas desta curta novela, fui sentindo - com a saudável ingenuidade de quem está a "descobrir" algo (parti, pois, para a leitura sem quaisquer ideias ou informações prévias) - que a história de Conrad se assemelhava bastante à desse clássico do cinema chamado Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (desconhecia, assim, que o realizador americano se inspirara no presente livro).
Em O Coração das Trevas, o narrador - o marinheiro Marlow - relata aos seus companheiros a sua experiência como comandante de uma embarcação fluvial ao serviço de uma companhia colonial no coração de África (para esta história, Conrad ter-se-á inspirado nas suas próprias vivências).
O autor consegue criar com muito sucesso um crescendo de intensidade (angustiante e opressiva, poder-se-ia acrescentar) ao longo do percurso de subida de um rio, por entre uma densa, ameaçadora, hostil e opressiva floresta, em direção a essa carismática mas simultaneamente enigmática figura chamada Kurtz (que corresponde, no filme de Coppola, ao coronel Walter E. Kurtz, personagem magistralmente interpretado por Marlon Brando), que é suposto fazer regressar à "civilização". A violência - a possibilidade (mas simultaneamente a legitimidade) da violência - bem como o medo pairam sobre o ambiente criado por Conrad através da sua escrita psicologicamente penetrante.
Há nesta novela uma clara crítica ao caráter depredatório do colonialismo, ao focar a avidez dos "superiores" e "civilizados" europeus na obtenção (independentemente do custo humano e moral) de marfim das entranhas africanas.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

(2014: balanço de um ano de leituras)

Os finais de ano são pródigos no que diz respeito a listas. Também eu, enquanto dinamizador de um blogue de leituras, faço a minha lista - não dos melhores livros publicados no ano que finda, mas dos livros que li este ano que me merecem destaque.

Assim, na ficção destaco:
1. A Consciência de Zeno, de Italo Svevo (este autor foi uma das minhas descobertas do ano);
2. Ulisses, de James Joyce (releitura... desta obra na excelente tradução de Jorge Vaz de Carvalho);
3. Gente Pobre, de Fedor Dostoievski (um dos autores que nunca desilude);
4. O Espelho que Foge, de Giovanni Papini (outra descoberta recente, absolutamente viciante);
(5. Uma série de obras relidas e redescobertas, da autoria de Thomas Bernhard, Torrente Ballester, Jorge Luis Borges, Gil Vicente, etc..)

No ensaio (incluo aqui as biografias e os volumes de História) refiro:
1. O Sistema Totalitário [ou As Origens do Totalitarismo], de Hannah Arendt;
2. Poderes Invisíveis, de José Mattoso;
3. A Inquisição, de Toby Green;
4. A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm.

Na poesia aponto três livros:
1. A Papoila e o Monge, de José Tolentino Mendonça;
2. A Misericórdia dos Mercados, de Luís Filipe Castro Mendes;
3. Todas as Palavras. Poesia Reunida, de Manuel António Pina;
4. Era uma Vez o Branco, de Rui Tinoco.
 

"O Espelho Que Foge", de Giovanni Papini

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Uma das melhores coisas que me pode acontecer enquanto leitor é tropeçar num livro ou num autor e descobrir algo surpreendente. Eu já conhecia Papini de nome, mas de forma muito vaga, sem qualquer ideia sobre a sua peculiaridade literária. Por isso, quando este livro, O Espelho Que Foge, me chegou às mãos, não sabia o que ia encontrar. Certo: este livro pertence a uma famosa coleção dirigida por Jorge Luis Borges, nome incontornável da literatura do século vinte; mas tal, só por si, não garante nada - afinal, Borges considerou excecional Pedro Páramo, de Juan Rulfo, uma novela que não me encantou especialmente...
Com este O Espelho Que Foge, porém, outra coisa aconteceu: não apenas fiquei fascinado com a intensidade dos contos de Papini, como em certas passagens cheguei a entender o destaque dado pelo autor de Ficções - há qualquer coisa (o quê, não sei bem precisar) em comum entre os dois autores (pesem embora as devidas distâncias).
Os dez contos deste volume partilham uma mesma ambiência (e daí haver, na minha opinião, um certo equilíbrio e congruência entre as várias histórias): não apenas todos são escritos na primeira pessoa (narrador esse que explícita ou implicitamente é um literato), como os temas dominantes se vão repetindo: a passagem do tempo e a decadência (o amadurecimento, o envelhecimento, a aproximação da morte), a desesperança, o tédio e a angústia de viver (há, claramente, em Papini uma perturbadora inquietude existencial), a procura da identidade e a solidão de cada indivíduo, a possibilidade do suicídio como via aceitável e higiénica para sair de cena. O pessimismo é, pois, quase omnipresente neste conjunto de contos; a escrita de Papini, dura e incisiva (frases curtas, sem floreados), acompanha esse tom desolado e sombrio.
Seguramente que regressarei a este livro, uma das descobertas deste ano. Papini, embora só lhe conheça esta obra, passou a ter um ou outro contorno, suficientes para o reconhecer e ambicionar conhecer melhor.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Um Cântico de Natal", de Charles Dickens

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O conto Um Cântico de Natal, de Dickens, faz parte do imaginário natalício. A sua história e o seu personagem principal, o detestável Senhor Scrooge, são-nos familiares à conta das múltiplas vezes que a vimos ser interpretada na televisão, fosse em filmes de animação, telefilmes ou outros géneros. Daí que, apesar de se tratar de Dickens (autor apelativo q.b., e de quem li há não muito tempo Os Cadernos de Pickwick), este pequeno livro haja ficado "esquecido" na minha biblioteca, à espera de um momento mais propício para ser lido.
Quando finalmente decidi pegar nesta obra, fi-lo sem quaisquer especial predisposição natalícia. O conto de Dickens é assumidamente moral (dentro do quadro cristão, evidentemente), funcionando como um inspirador convite à alegria, à humildade, à bondade, à partilha, à amizade, enfim, aos mais elementares laços humanos.
Scrooge é caracterizado como um sujeito ganancioso, avaro, mesquinho, falso, invejoso, cínico, indiferente aos que o rodeiam. Na véspera de Natal, período festivo que Scrooge rejeita como inútil (uma vez que lhe interrompe os negócios) e piegas (com os alegres e ocos votos festivos e com as suas súbitas e questionáveis manifestações de preocupação pelos mais desfavorecidos), este recebe surpreendentemente a visita do fantasma do seu falecido sócio, Marley, que o avisa dos perigos de na vida seguir um caminho focado no egoísmo dos negócios. Após esta primeira aparição fantasmática, Scrooge será visitado pelos três Espíritos Natalícios (do passado, do presente e do futuro), que lhe mostrarão o quanto o espírito natalício alegra os corações que se lhe abrem (mesmo os dos mais humildes). No fim, como expectável, dá-se a redenção do personagem principal - esta é, portanto, uma história com um final feliz.