terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"Era Uma Vez O Branco", de Rui Tinoco

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A poesia de Rui Tinoco tem, para mim, qualquer coisa de singular. Ao ler este seu Era Uma Vez O Branco deparei-me com as principais características que já me haviam encantado no seu primeiro livro, intitulado O Segundo Aceno.
Uma palavra há que me ocorre ao ler os seus versos: artifício. Mas artifício no melhor dos sentidos. Acho astucioso (à falta de me ocorrer outro termo melhor), por exemplo, o modo como Rui Tinoco brinca com as ferramentas da língua (logo no seu primeiro poema: uma conversa que se "reproduz" sem utilizar as palavras que a integram, mas apenas a pontuação que a marca). E não consigo deixar de admirar o modo como desconstrói o ato de escrever, evocando ora a página em branco, ora esse diálogo (artificialmente íntimo) entre escritor/poeta e leitor (mas também entre escritor/poeta e os seus personagens)...
Era Uma Vez O Branco, como se percebe, é uma referência a esse tema tão abordado na literatura: a pagina em branco (ou a procura do texto). Tinoco, no poema "mesmo aqui neste branco", refere-se às frases que se sentam em redor do sujeito poético (poeta), «(...) mas se as tento agarrar, / elas desatam aos gritinhos / e a fugir como se fossem / gregas ninfas de alvos seios / palpitantes.» Mas eis que se levanta a questão: será o texto encontrado pelo autor, ou o autor encontrado pelo texto?
Nos versos de Rui Tinoco, o escritor/poeta é frequentemente o objeto do poema.  Afinal «(...) o poeta / é somente um outro personagem / do texto» - é ficcionável, um ficção, e assim a leitura destes poemas tem que ser feita à luz desse artifício. O poeta observa e dialoga com personagens (que fogem ao seu controlo, e até negoceiam a sua inclusão no texto) e leitores - serão necessárias apresentações em tais conversas? O texto vai respondendo ao secreto anseio do branco em tornar-se preto...
Julgo que estes dois polos que destaquei refletem não apenas os anseios de quem escreve (o autor, que é escritor/poeta como o "personagem"/sujeito poético dos seus versos), mas também o fascínio que a escrita exerce sobre outra faceta sua: a de leitor (!). O artifício, que transporta os leitores para o poema, como se fossem personagens, acaba - julgo não ser abusivo escrever tal - por incluir o autor.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Auto da Feira", de Gil Vicente

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Um regresso às origens, ao fim de muito anos. A vontade de revisitar alguns dos principais textos de Gil Vicente foi suscitada pela recente leitura de um artigo de José Mattoso ("O Imaginário do Além em Gil Vicente", da obra Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval).
Considerado o primeiro grande dramaturgo português, a biografia de Gil Vicente é um tanto ao quanto esquiva (por exemplo, tanto as datas de nascimento como de morte permanecem incertas); também um aspeto que nos distancia do autor é o facto de lhe conhecermos as obras por intermédio de um dos filhos, Luís Vicente, que as publicou na Copilaçam, em 1562 (não é fácil avaliar até que ponto existiu intervenção alheia nos textos originais, nomeadamente com o fito de regularizar a métrica ou suprimir versos particularmente críticos). Em todo o caso, aparte essas questões de teor académico, podemos sempre apreciar os textos como nos chegaram.
Na didascália inicial do Auto da Feira pode ler-se que foi representado em Lisboa ao rei D. João III às matinas do Natal de 1527 (alguns estudiosos acham mais provável essa representação ter ocorrido no ano seguinte, mas é uma discussão em aberto). Em todo o caso, reflete um acontecimento marcante da época: o saque da cidade de Roma (e o cerco ao Papa) pelos exércitos do Imperador Carlos V, em Maio do referido ano de 1527 (a edição que li atribui muito peso a tal facto, na medida em que inclui um texto concernente ao mesmo e excertos de documentos coevos ao saque).
Neste texto vicentino (considerado um auto de devoção, de tons morais, ainda que também contenha elementos de comédia ou farsa), o mundo é-nos apresentado como uma feira (erigida por Mercúrio), em que nos tentam vender o Bem (na loja do Tempo e do Serafim vende-se a paz, a consciência, as virtudes) e/ou o Mal (na loja do Diabo os produtos principais são as «artes de enganar / e cousas pera esquecer / o que deviam lembrar», «falsas manhas de viver», hipocrisia, a mentira).
As críticas à Igreja de Roma e ao clero são um tanto violentas, especialmente se tivermos em conta que à data que em foi representado este auto a Inquisição já estava bem implementada em Portugal (aparentemente, aliás, Gil Vicente sofreu alguma forma de perseguição no final da sua vida; por outro lado, numa edição posterior das suas obras, de 1586, foram feitos cortes em alguns dos pontos mais sensíveis...). Segundo o personagem Diabo, os clérigos eram seus clientes habituais; Roma, por sua vez, admite já antes ter comprado mentiras e outras torpezas ao Diabo, procurando desta vez comprar paz (atente-se ao contexto acima mencionado), oferecendo como moeda de troca jubileus e indulgências (!). Serafim lembra a Roma que Deus dá guerra a quem com ele guerreia; e acrescenta que aquela tratava dos pecados dos outros sem, como devia, atacar os seus...
Um dos momentos mais cómicos do texto coincide com a entrada em cena dos dois casais de lavradores. Amândio Vaz confessa ao seu compadre o desejo de vender (barato) a sua mulher, a qual é descrita como sendo irascível, violenta ao ponto de lhe dar pancadas; por sua vez, a mulher de Amândio revela à sua amiga o desejo que o Diabo lhe leve o marido, caracterizado com um inútil, um glutão e beberrão. Chegados à feira, e não compreendendo tratar-se de um feira de virtudes (e vícios), perguntam ao Serafim se vende chapéus, burel ou patos, mostrando completo desinteresse pelos produtos que este comercia.
O gozo que a leitura deste texto me deu é difícil de descrever; no início referia-me a um "regresso às origens" por se tratar de algo que estudei nos bancos da escola (o Auto da Feira, como o Auto da Índia, foi um dos textos estudados). Agora, como então, não consigo deixar de achar a obra vicentina absolutamente deliciosa. E vai daí... já tenho de lado outros livros do autor para reler.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

"A Dama de Espadas", de Alexander Pushkin

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A Dama de Espadas é uma história curta (que, com agrado, se lê num só fôlego) em que o jogo, tal como na novela de Dostoievski O Jogador, desempenha um papel central. Hermann, um jovem oficial de cavalaria, não tem qualquer relutância em atropelar os sentimentos da jovem Lisa para atingir os seus objetivos - ou, posto de outra forma, para alimentar a sua ambição e ganância.
Escrita de uma forma simples mas interessante, esta narrativa tem um fundo de humor (não imediato) e, igualmente, uma tonalidade fantástica, aspetos que, ao que julgo, contribuem para cativar o leitor... Uma agradável surpresa, portanto. (Acrescento ainda, a título de curiosidade, que achei a capa extremamente feliz, tendo em conta a história; pena é que a editora não identifique o autor e título a pintura.)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

"O Aleph", de Jorge Luis Borges

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Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve, serei todos: estarei morto. (excerto do conto "O Imortal", in O Aleph)

Não repetindo o que ainda há dia escrevi sobe outra obra de Jorge Luis Borges (Ficções), começo por dizer que a leitura de O Aleph, coletânea de contos publicados originalmente em 1949, não me desiludiu. O estilo inconfundível de Borges, que cruza com tanta mestria o real, o acontecido (o histórico) ou o literário (partindo das mais variadas referências, sejam da literatura greco-romana, dos textos bíblicos, ou de autores cronologicamente mais próximos do autor) com a pura ficção, está bem presente nas dezoito histórias curtas que compõem esta obra. Nelas o autor joga com os conceitos de tempo e imortalidade, de ortodoxia e heresia (conceitos cuja fronteira pode ser bem ténue - cft. "Os Teólogos"), de labirinto (que tanto pode ser literal como alegórico - como acontece no conto "Os dois reis e os dois labirintos", em que o deserto é apresentado como o rei dos labirintos), entre outros.
Todas as histórias têm interesse, ainda que algumas me tenham dado mais prazer que outras. Gostei de "A Casa de Asterion" pelo ângulo de abordagem: recorrendo à mitologia grega, Borges revela-nos a perspetiva do Minotauro, um ser solitário dentro do seu labirinto. Apreciei "A Outra Morte" pelo modo como o autor joga com o tempo (da história, da memória da história, da escrita de um conto), bebendo de um problema teológico - da possibilidade ou impossibilidade de Deus (que tudo pode) fazer com que o passado não tenha sido. "Deutsches Requiem" conta a história de um nazi (diretor de um campo de concentração) condenado à morte após o termo da guerra: este, não podendo aceitar a piedade ou a compaixão como "novo homem" que pretensamente era, destrói um poeta judeu que admirava para dessa forma suprimir uma parte da sua alma... Mas talvez uma das histórias mais conseguidas é aquela que dá nome ao livro: nela Borges relata o relacionamento com um poeta muito particular (poeta esse que, mau grado a mediocridade dos seus versos, se vê como um grande poeta), detentor de um "aleph", um ponto no espaço que contém todos os outros pontos (ponto esse que permite ver tudo o que existe no universo sobre simultaneamente todas as perspetivas)...
Fantástico? Sim, Borges assim pode ser considerado, mas é seguramente também muito imaginativo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

"A Metamorfose", de Franz Kafka

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 «Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto». Assim começa A Metamorfose, uma das obras mais emblemáticas da literatura do século XX, que tive agora o prazer de reler. Franz Kafka foi um autor marcante no início do meu percurso como leitor; na altura, para quem vinha de leituras próprias da juventude, as suas obras constituíram uma revelação, talvez mesmo um abalo. A Metamorfose terá sido a primeira obra que li deste autor, ainda que, segundo me lembro, não tivesse demorado muito a avançar para outras: O Processo (que permanece o meu livro favorito do autor), O Castelo, América, e algumas histórias mais curtas.
Como se disse, Gregor dá por si numa situação insólita. Porém, absurdamente, a transformação em inseto parece não afetar gravemente o nosso protagonista (como seria expectável), que tenta adormecer de novo para esquecer a transmutação - ainda que as novas características do seu corpo (um carapaça rígida, múltiplas pernas dançando descoordenadas no ar, etc.) não lhe permitam uma posição confortável... «Isto de levantar cedo (...) estupidifica uma pessoa», pensa Gregor... e chega a ponderar se as alterações no seu corpo não refletirão o prenúncio de um resfriado!...
Um aspeto que sempre me intrigou/perturbou na biografia de Kafka (além da intenção, firmada em testamento, de destruição dos seus escritos) prende-se - ao que sei - com o facto de, ao ler os seus escritos aos amigos, predominar o riso! Os (absurdos e sem dúvida humorados) exemplos anteriormente referidos talvez expliquem um pouco as gargalhadas amigas, mas as obras de Kafka contêm elementos que, pelo contrário, podem suscitar sentimentos de desconforto, angústia, desespero... Os casos de injustiça, de decisões aparentemente arbitrárias e discricionárias, de impotência perante o pesado e impessoal aparelho burocrático, são algumas das situações que caracterizam a obra kafkiana - e que a tornam tão singular e inovadora (Kafka, sublinhe-se, é um dos nomes do "quarteto revolucionário" na prosa das primeiras décadas do século XX - na companhia de Musil, Joyce e Proust).
A Metamorfose, obra de caráter expressionista publicada em 1915, trata fundamentalmente - ainda que de uma forma fantástica ou alegórica - da condição humana. A situação ocorrida a Gregor não pretende ser realista, mas a sua irrealidade consegue falar de forma profunda das questões da autoconsciência (e da autoimagem) e do modo como os outros nos veem. Gregor, além da sua metamorfose física (ele ganha características assustadoras e repelentes para os que o rodeiam), sofre uma outra espécie de metamorfose: de elemento amado e útil da sua família (ele havia sido o sustento da mesma) passa a elemento inútil e a evitar (transforma-se, assim, num estranho, num fardo, num embaraço...). O destino daquela modesta família, como não podia deixar de ser, altera-se: os pais e a irmã de Gregor têm que arranjar empregos, despedir os serviçais, vender joias, aceitar hóspedes (e impertinências destes); à pobreza junta-se a infelicidade, à tolerância face a um Gregor-inseto segue-se o desespero...
Para finalizar, uma coisa que já não recordava (já há uns anos que não pegava em Kafka) e acho que acrescenta qualquer coisa ao todo: a simplicidade e limpeza da escrita. Nesta não há muito espaço para palavras supérfluas ou para grandes adornos, o que me parece condizer com a simplicidade da narrativa (porque esta é, retirando-lhe as interpretações e alegorias, uma história quase infantil). Julgo que a tradução que li (num volume que inclui também as narrativas mais curtas "O novo advogado" e "Um médico de aldeia"), bastante fluída, também ajuda ao efeito geral.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

"O Pequeno Herói", de Fedor Dostoievski

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Dostoievski é, escusado será dizer, um dos nomes maiores da história da literatura (e não se tome esta expressão como sinónimo de um autor importante sobretudo num determinado período histórico, entretanto ultrapassado ou antiquado; a escrita de Dostoievski é tão forte que ainda destila frescura, atualidade, profundidade); "O Pequeno Herói", curta novela que me era desconhecida até há dias, não é das obras mais importantes do autor, mas ainda assim justifica completamente a leitura.
Escrita durante um período em que Dostoievski esteve preso (por ter participado num grupo de cariz revolucionário), esta obra retrata uma paixão juvenil (por uma mulher casada) vivida pelo narrador, quando tinha onze anos; o estilo literário adotado (fluído, imediato, sem muita análise) coaduna-se bem com o personagem principal, um infante que nem sempre compreende os seus sentimentos ou as atitudes dos adultos...

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

"Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval", de José Mattoso

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Refiro-me àquele em que o imaginário se desenvolve sem o suporte dos sentidos, mas estimulado pela ideia de que o homem está sujeito a forças invisíveis muito mais poderosas do que ele próprio. (excerto do "Prefácio à 1ª edição", in Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval)
Admito que ler um livro de artigos académicos pode não ser o tipo de leitura mais apelativo; porém, o tema de Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval, do eminente historiador José Mattoso - as crenças, o imaginário, as práticas medievais relativas à relação dos vivos com os mortos -, é do meu particular interesse. O valor e o interesse dos dezasseis artigos que compõem este livro são variáveis, mas, de uma maneira geral, todos contribuem para a definição do quadro mental vigente no contexto peninsular medieval. No prefácio à primeira edição o autor faz uma excelente apresentação do conjunto de textos, articulando-os à vista de uma mesma preocupação; neste texto procurarei tão somente destacar, de forma descritiva mas panorâmica, os aspetos mais relevantes ou que mais me interessaram dos vários artigos.
Os primeiros artigos refletem sobre as razões que justificam o culto aos mortos (a ideia - patente nas diversas religiões - de que, de alguma forma, os mortos interferem com os vivos, e que é necessário harmonizar essa relação), mas também sobre os rituais (muitas vezes com origens na realidade pagã, ou seja, pré-cristã) que foram sendo institucionalizados na sociedade medieval ocidental: as lamentações fúnebres, a conceção de uma viagem além-túmulo (a necessidade cristã de se dar a  comunhão aos moribundos corresponde à preocupação pagã em fornecer o alimento para suportar essa viagem cheia de perigos e vicissitudes), as orações pelos defuntos, o confronto com a existência de espíritos malignos, etc.
A mudança de mentalidades ocorrida no século XI, resultante de uma visão menos pessimista do mundo (a partir deste século a população europeia começa a aumentar, diminuem os maus anos agrícolas, há um clima mais pacífico, ganham-se novas terras para a agricultura, etc.) mas também parcialmente das práticas desenvolvidas em Cluny, é analisada pelo autor num dos artigos que mais me cativou. No seio dessa ordem instituiu-se o Dia dos Fiéis Defuntos, e desenvolveram-se novas conceções e práticas ligadas ao culto dos mortos; Cluny assumiu-se, assim, como a intercessora privilegiada com os mortos (acumulando com isso poder e rendas). Num outro artigo, igualmente cativante, o autor caracteriza o culto dos mortos em Cister no tempo de S. Bernardo (séc. XII): nesta ordem o ritual, se comparado com o cluniacense, era mais discreto; por outro lado, o conceito de "purgatório" ganha força na doutrina e prática cultivadas pelos monges brancos.
Outro âmbito de interesse de Mattoso, refletido em dois artigos, é a relação entre o poder e a morte. Considerando que a importância que as mortes dos chefes (e, em primeiro lugar, dos reis) têm para uma comunidade, na medida em que podem trazer uma desestabilização cósmica, torna-se fundamental restabelecer a harmonia; assim, ganham relevos os lutos e os prantos como catarse, bem como a ereção de túmulos e monumentos em materiais duráveis (que não apenas evoquem a memória, mas também os valores exemplares que esses defuntos chefes representavam e que se pretendem eternos). Na cronística pré-afonsina a morte dos reis ganhou um outro significado: nestes textos mostra-se que, apesar do desaparecimento daquelas figuras, a vida, a linhagem e o reino continuam. As referências nas crónicas à morte de outros personagens (não régios) têm normalmente um caráter exemplar - exemplos de coragem, santidade ou, pelo contrário, de castigo.
Debruçando-se sobre a literatura medieval - nomeadamente sobre os prantos fúnebres na poesia trovadoresca galaico-portuguesa e sobre o pranto épico castelhano -, o autor procurou sobretudo proceder à contextualização desses textos; mais que avaliar a sua originalidade ou relevância literária no contexto peninsular e europeu, Mattoso analisou o tom desses prantos à luz dos rituais fúnebres medievais de figuras régias ou de outros chefes, para, assim, avaliar a sua consonância com o quadro mental. O autor também se debruçou sobre o imaginário do além-túmulo nos "exempla" peninsulares medievais (textos, frequentemente utilizados pelos pregadores em virtude do seu caráter apelativo e dramático, que continham um ensinamento moral, espiritual e/ou religioso); nos que se reportam à problemática em questão, constatou que os mesmos confirmavam as crenças tradicionais (almas penadas, espíritos em trânsito), nem sempre refletindo a visão teológica mais ortodoxa...
Um dos artigos que me chamou particularmente a atenção ao folhear pela primeira vez este livro foi "A necromancia na Idade Média". A magia, que gozara de grande popularidade no período clássico, era tida na época medieval como uma possibilidade de contactar a alma dos mortos, ainda que fosse sendo condenada pela patrística e pelos vários concílios. Porém, persistiu (com alguma tolerância) uma "magia branca", cristã, feita de exorcismos, bênçãos, gestos rituais vários, usos de relíquias, etc., usada para repor a já mencionada "harmonia" (especialmente nos casos de óbitos violentos, em que os mortos, não tendo podido preparar-se para a morte, se "tornavam" uma ameaça para os vivos, aterrorizando-os, provocando acidentes, etc.).
O artigo "Satanás, o Acusador" foi um dos textos que mais me agradou, na medida em que aborda o segredo que rodeava os pecados mais graves (heresia, sodomia, incesto, parricídio, etc.). Ao se fazer silêncio sobre certos pecados (a Igreja favorecia esta ocultação), acreditava-se evitar a sua propagação; porém, a partir dos séculos XII e XIII a Igreja lutou por instituir a confissão privada obrigatória (em que o clérigo faz de mediador essencial entre o crente e Deus) - essa instituição queria conhecer os pecados privados e ter papel mais ativo na orientação das consciências. Na literatura medieval está presente esse conceito de "silêncio" aplicados aos pecados mais graves, como forma de proteção da comunidade (lançar boatos sobre esses pecados era perturbar a mesma - era ato próprio de Satanás); gradualmente, porém, os textos vão-se conformando às intenções da ortodoxia, sublinhando mesmo o caráter divinamente positivo da confissão perante um clérigo (era preferível confessar primeiro a Deus, através dos seus representantes, do que poder ser acusado pelo demónio...). Porque os crentes se mostravam receosos da violação do seu segredo pelos clérigos, a Igreja foi instituindo castigos para os membros faltosos do clero.
"Santos portugueses de origem desconhecida" é um texto que aborda o tema dos santos populares medievais portugueses, reconhecidos ou não pela Igreja. Através do estudo de Martirológicos e Hagiológicos (textos de difícil avaliação, tanto ao nível do conhecimento das fontes que lhe serviram de base e/ou dos critérios de recolha da informação), Mattoso chama a atenção para a existência de santos fraudulentos (isto é, forjados, havendo casos em que os autores dessas falsificações criaram/recorreram a documentos falsos, autoridades antigas inexistentes, etc.), invenções que pretendiam lisonjear ou enobrecer a Península Ibérica ou Portugal (uma finalidade que se pode apelidar de nacionalista), ou mesmo uma região ou diocese em particular. As confusões (que por vezes implicavam a fusão) entre santos distintos, ou as situações de duplicação (santos de um lugar que passam a ser de outro, como se se tratasse de uma figura distinta), também são referidas.
Num curto artigo, o autor faz uma reflexão sobre a relação entre amor e morte (dois conceitos aparentemente tão distantes) na Idade Média. A obra termina com um curioso texto intitulado "O imaginário do Além em Gil Vicente", em que se procura encontrar nas obras vicentinas ecos da cultura popular (o entendimento do purgatório, do inferno, do destino das almas, etc.), nem sempre coincidentes com aquilo que, um pouco mais tarde, foi fixado no Concílio de Trento. É possível, por exemplo, ler em Gil Vicente uma posição negativa face às indulgências, questão que, como se sabe, deu origem a uma divisão religiosa na Europa em inícios do século XVI; pelo que sei da ainda mal delimitada biografia vicentina, o autor chegou a sofrer alguma forma de perseguição no fim da sua vida resultante das suas posições algo heterodoxas... Este artigo conseguiu alimentar a minha vontade em revisitar as obras desse autor.
Como se vê, pelo tosco esforço de síntese feito neste texto, Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval trata nos seus artigos vários aspetos de um mesmo problema, de uma forma rigorosa, ainda que por vezes também ensaística (como nos casos em que o autor deambula por campos mais pertencentes à Antropologia do que à História).

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Ficções", de Jorge Luis Borges

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Este é um daqueles livros a que, de quando em quando, tenho de regressar. Não sei dizer exatamente quantas vezes já li as dezassete histórias que compõem este Ficções, de Jorge Luis Borges. Desde que descobri esta curta obra, lia-a pelo menos a cada dois ou três anos. Serve isto para dizer, de antemão, o quanto gosto deste livro.
Borges é - sabe-o bem quem se interessa por literatura - uma referência literária incontornável; a sua originalidade é a vários títulos assombrosa. Nestas pequenas histórias, Borges consegue envolver o leitor (que se deixe, claro está, envolver, iludir, manipular) através da sua linguagem cuidada e elevada, quase académica ou erudita (com real erudição mas também, simultânea e propositadamente, com erudição fictícia); mas também o prende pelo conteúdo ficcional - Borges é um mestre na criação de universos irreais ou fantásticos, estruturados numa lógica por vezes quase matemática (pense-se na história "A Biblioteca de Babel"), teórica ou teoricizante (perdoe-se o neologismo), de enredos algo obscuros com elementos mágico ou esotéricos, ou mesmo metafísicos. Não é difícil reconhecer na prosa deste autor argentino a sua imensa cultura.
As histórias que mais me agradam pertencem à primeira parte deste Ficções, denominada "O Jardim de Caminhos que se Bifurcam" (originalmente publicada em 1941). Em "Pierre Menard, autor de Quixote", Borges apresenta-nos uma espécie de apreciação literária sobre o estranho e quimérico esforço de um autor francês do século XX: este lançara-se na tentativa de escrever o D. Quixote, de forma a que o seu escrito coincidisse com o de Miguel de Cervantes, palavra por palavra e linha por linha e com o espanhol típico do século XVII, sem que, no entanto, se limitasse a ser uma mera cópia ou transcrição... "A Lotaria da Babilónia" é uma metáfora sobre o acaso, o fortuito nas nossas vidas: aquilo que começou por ser um jogo de sorte e azar (apenas para os que nele jogavam) organizado pela toda poderosa Companhia, jogo em que para um certo número de prémios existia também a possibilidade de um castigo, gradualmente tornou-se numa interferência universal e secreta do acaso nos destinos dos indivíduos (e não será isto que acontece nas nossas vidas?); uma história, como facilmente se entende, com contornos de reflexão existencial. Excelente para mim é ainda "Análise da obras de Herbert Quain"; Borges serve-se de novo do artifício da crítica literária (de obras inexistentes, de um autor inexistente) para tecer várias teorizações curiosas sobre o processo de criação ficcional, em que se misturam a falsificação, o erro propositado, a múltipla existência de alternativas a factos do enredo, etc. Por fim, não posso deixar de apontar "A Biblioteca de Babel" como uma das minhas histórias favoritas: é feita a descrição de uma biblioteca praticamente infinita, visto que nos seus livros existem todas as variações possíveis de carateres; assim, nesta biblioteca estão presentes todos os livros possíveis, todas as explicações e suas refutações, mas também uma infinidade de livros não compreensíveis (meras conjugações aleatórias de carateres ou escritos em línguas já esquecidas?) - uma metáfora, afinal, para o papel de decifrador do leitor...
Tenciono em breve ler (pela primeira vez) O Aleph, outra coletânea de história curtas de Jorge Luis Borges...

"Gaveta do fundo", de A. M. Pires Cabral

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A leitura de "Gaveta do Fundo" deu-me um tremendo prazer. Se já conhecia o autor, e dele já lera alguns poemas isolados, este foi o seu primeiro livro que li integralmente, ficando com vontade de explorar mais profundamente a sua poesia.
Neste seu último livro, o autor toca os tema da poesia (a resistência, insistência ou necessidade da poesia), da infância e dos animais, da natureza silvestre (as flores, os rios, as aves, o vento), mas também de um mundo rural ameaçado (desprezado, despovoado): as suas procissões e vivências (as diferentes prioridades - a chuva que tarda em vir, a saúde dos animais, etc.), a lavoura ao abandono, a sua população envelhecida.
Os poemas caracterizam-se por uma linguagem cuidada, sensível, por vezes sarcástica ou magoada, como se pode ler, por exemplo, no poema "Fechou a escola em Grijó", II: «(...) O senhor ministro das Finanças está contente, / porque poupa meia dúzia de euros / com a violenta trasfega das crianças. // Mas está triste Grijó, porque já não ouve / as suas aves da manhã a caminho da escola / - e por isso pode dizer-se que a aldeia encolheu, (...)».