quarta-feira, 30 de outubro de 2013

"Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline", de Timothy Snyder

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Uma coisa é gostar de ler livros de história, outra completamente diferente é ler bons livros de história. Se é certo que da maioria das obras historiográficas que vou lendo consigo retirar algum proveito, nem sempre a sua leitura é tão cativante (pese embora a densidade do tema) e recomendável como Terra Sangrenta. A Europa entre Hitler e Estaline, de Timothy Snyder.
O tema é, por si mesmo, bastante intenso (uma vez que trata de violência - mas também de ética, no seu sentido mais profundamente humano), o que pode justificar o interesse de muitos leitores; porém, mais do que isso, é um livro bem escrito, organizado e fundamentado, com opções claras e argumentos sólidos, utilizando e cruzando um vasto manancial informativo. Julgo que a historiografia anglo-saxónica tem, saudavelmente, a preocupação de ser interessante e relevante para o leitor comum, isto é, para o não especialista (para os estudiosos existem publicações próprias, nomeadamente as de âmbito académico, em que se discutem aspetos metodológicos, esquemas interpretativos, por vezes apenas questões de pormenor que não pesam no quadro geral, etc. - aspetos provavelmente fastidiosos para a maioria do público leitor).
Nesta obra Snyder trata das políticas de homicídios em massa deliberados dos regimes nazi e soviético, num período que vai dos inícios da década de 1930 até à morte de Estaline, em 1953. Assim, refere-se à política soviética que privou de alimentos e matou milhões de pessoas na Ucrânia, em 1932-33; ao fuzilamento pelos soviéticos de centenas de milhares de pessoas no Grande Terror, em 1937-38; ao assassinato de muitos milhares de polacos (sobretudo a elite cultura e política, bem como militares) por alemães e soviéticos aquando da ocupação da Polónia, em 1939-41; à privação de alimentos a (e consequente morte de) milhões de soviéticos pelas forças alemãs, em 1941-45; à eliminação (por fuzilamento ou gazeamento) de milhões de judeus pelos nazis, em 1941-45; ao assassinato de centenas de milhares de civis pelas forças alemãs em represálias várias.
Tendo lido recentemente outras obras do mesmo âmbito temático (*), achei particularmente interessante - aspeto que me é mais desconhecido - a abordagem dos assassínios em massa perpetrados pelo regime soviético. Ao ler sobre o modo como na URSS a informação era manipulada e totalmente desvirtuada para ir de encontro à "visão" de Estaline (o mesmo, não esqueçamos, ocorreu na Alemanha nazi), não pude deixar de me lembrar da obra de George Orwell, 1984 (**). O zelo (aterrorizante mas também aterrorizado) dos agentes do poder soviético na supressão daqueles que eram apodados de potenciais envolvidos em atos conspirativos ou de resistência à coletivização é arrepiante; o cinismo das acusações feitas aos camponeses famintos (a sua fome - provocada, sublinhe-se, pelo regime através da nacionalização da produção - foi vista por Estaline como uma "conspiração" para descredibilizar o regime!) é de uma imoralidade inaudita...
Terra Sangrenta é, não admiravelmente, um relato extremamente duro; algumas das suas descrições são perturbadoras, e mostram-nos até onde pode ir a crueldade e o sadismo, o desprezo e o ódio pelo outro (pela vida), a irracionalidade e, no fundo, a estupidez. Perturbadores, ainda que de modo diferente, são os números colossais de vítimas apresentados - a certo momento, quase se tornam abstratos (daí o alerta final do autor, referindo que cada número apresentado corresponde à sua multiplicação por um - referindo-se esse "um" a indivíduos singulares, com as suas histórias próprias, cujos percursos de foram vida interrompidos pela violência das políticas soviética e nazi). Em suma, dois regimes obcessivamente assassinos, com motivações e alvos algo diferentes, mas procedimentos igualmente brutais.
Termino esta apreciação apontando um ponto negativo (algo grosseiro, diga-se) deste livro: refiro-me à qualidade dos mapas, que podiam (deviam) incluir orientação (se bem que a sua ausência não constitua dificuldade de maior) e escala (a sua inexistência retira-lhes leitura).

(*) Nomeadamente as biografias da autoria de Ian Kershaw, Hitler, e  de Simon Montefiore, Estaline. A Corte do Czar Vermelho; as obras do jornalista e documentarista Laurence Rees, Auschwitz: Os Nazis e a Solução Final e Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente; e o livro de Daniel Jonah Goldhagen, Os Carrascos Voluntários de Hitler. O Povo Alemão e o Holocausto.
(**) O facto de as autoridades soviéticas apelidarem os oficiais e quadros superiores polacos assassinados em 1940 (após a absorção do leste da Polónia pela URSS) de "ex-pessoas" é adotado na obra orweliana.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

"Obras completas de Sherlock Holmes" (6 vols.), de Arthur Conan Doyle

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Todas as emoções, particularmente o amor, incomodavam a sua mentalidade admiravelmente equilibrada e fria. Creio que era a mais perfeita máquina de raciocinar da Criação, mas, como namorado, ficaria numa posição falsa. Nunca falava das emoções sentimentais, a não ser por brincadeira e com desdém. Para um calculista como ele, admitir tais intrusões no seu delicado e ordenado temperamento, seria como admitir um fator de perturbação que poderia criar dúvidas nas suas conclusões. Um grão de areia num instrumento delicado não se tornaria mais deteriorante do que uma emoção forte numa natureza como a sua. (in "Um Escândalo na Boémia", vol. 4)
E eu sou cérebro, Watson. O resto da minha pessoa é um mero apêndice. (in "A Pedra Mazarino", vol. 5)
Se há personagem que me fascina é Sherlock Holmes, o detetive criado por Conan Doyle em finais do século XIX. O fascínio, que vem da adolescência, muito deve à excelente série televisiva dos anos oitenta e noventa (do século XX) protagonizada por Jeremy Brett (devo dizer, aliás, que, para mim, a identificação entre o personagem e o ator britânico é perfeita - nunca vi outra interpretação tão carismática quanto a de Brett). Daí que, de quando em quando, sabe bem regressar ao mundo da dupla Holmes e («- Elementar, meu caro...») Watson.
A obra completa de Sherlock Holmes é composta por quatro histórias longas e cinquenta e seis curtas (organizada em seis volumes na coleção "Vampiro Gigante") - perto de duas mil páginas! Muitas são as histórias memoráveis: "O Ritual Musgrave", "O Cão de Baskerville", "O Intérprete Grego", "O Signo dos Quatro", "Os Seis Napoleões", "O Vale do Terror", "O Detetive Agonizante", "Os Bonecos Bailarinos" - eis algumas das que mais gostei de reler. Mas, como já de certo modo deixei transparecer acima, mais do que os mistérios em si, gosto sobretudo do personagem principal, bem como do mundo descrito (anterior às técnicas policiais modernas - fotografia, impressões digitais, análise ao sangue, ADN, etc.).
Sherlock Holmes afirma-se como um detetive particular consultivo, profissão criada por si para aproveitar as suas superiores faculdades dedutivas. Ao longo dos seus casos, vai prestando auxílio às entidades policiais, mas não em busca de reconhecimento (este acontece posteriormente, por via dos relatos escritos pelo Doutor Watson) - a sua recompensa é o prazer em pôr em prática os seus dons (por outro lado, o seu cérebro revolta-se contra a inação, contra a monotonia rotineira da existência sem enigmas). Nunca se envolve na investigação de um caso por qualquer tipo de sentimentalismo ou empatia, mas apenas pelo desafio da descoberta da verdade através dos seus métodos dedutivos... Além disso, é autor de várias monografias de importância para o seu ofício (sobre tipos de tabaco e suas cinzas, sobre pegadas, sobre criptografia, etc.), bem assim como químico amador e executante de violino... 
O seu caráter, apesar de brilhante em termos intelectuais (ainda que considere supérfluo todo o conhecimento não diretamente ligado ao seu ofício - e daí assumir, com absoluta indiferença, desconhecer o heliocentrismo!), tem também alguns aspetos negativos: é irritável, algo sobranceiro (com bastante confiança nas suas capacidades, ainda que em vários momentos estas provem ser falíveis), por vezes arrogante, contundente em alguns momentos (tanto felicita Watson pelas suas histórias como as critica com acidez), fumador compulsivo (e até consumidor de substâncias psicoativas), um pouco misantropo (as suas relações sociais e pessoais são escassíssimas) e solitário. Num ou noutro caso, Holmes vê-se forçado a recorrer a atos ilegais, ainda que moralmente justificáveis (como é o caso do arrombamento do cofre de um chantagista inflexível para lhe destruir o espólio documental, de grande potencial destrutivo). Longe de lhe retirarem mérito (o que talvez fosse intenção do autor, uma vez que Doyle, autor extremamente prolixo, nem sempre teve uma relação fácil com o personagem que mais fama lhe granjeou), estes aspetos negativos acrescentam-lhe humanismo, aproximando-o mesmo do leitor, sempre pronto a desculpar-lhe as fraquezas e defeitos.
Um aspeto que me surpreendeu na releitura destas histórias foi a escassa presença de Moriarty, o "arqui-inimigo" de Sherlock Holmes e génio do crime. Sendo referido pela primeira vez em "O Vale do Terror", apenas participa como personagem em "O Problema Final" (história na qual Doyle, cansado do seu personagem, o faz morrer numa luta com Moriarty nas Cataratas de Reichenbach; a pressão do público, porém, fez com que o autor ressuscitasse Holmes em "A Casa Vazia", para mais umas quantas histórias); é referenciado em mais quatro narrativas, para além das três mencionadas. O seu irmão Mycroft, por sua vez, aparece apenas em duas histórias e referido noutras duas - pensava igualmente que este personagem aparecia em mais casos...
Apesar de toda a evolução das técnicas e metodologias policiais, esta obra, escrita de uma forma simples e muito direta, com muitos diálogos e bastante ação, ainda consegue encantar o leitor contemporâneo. Talvez por dependermos cada vez mais da tecnologia em todos os domínios da nossa vida, penso que a leitura destas histórias nos ajudam a valorizar o pensamento humano (por si só) e várias faculdades intelectuais (de observar, de interpretar, de especular, de imaginar), que talvez não devêssemos reservar (tão confiada e absolutamente) para os computadores...

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"Artigo 22", de Joseph Heller

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O que posso escrever sobre Artigo 22 (ou Catch 22)? Que o li sem qualquer referência prévia, e, por isso mesmo, sem quaisquer preconceitos. Tanto o autor como este título (assumo a ignorância) me eram desconhecidos até há poucos dias. Se me agradou? Inicialmente sim; porém, aos poucos, o interesse foi-se diluindo...
Artigo 22, constituído por constantes avanços e recuos, repetições e mudanças de perspetiva, retrata um esquadrão de bombardeiros da Força Aérea dos Estados Unidos, sediado numa ilha ficcional do Mediterrâneo (Pianosa), durante o avanço aliado em Itália na Segunda Guerra Mundial. Ainda que a narrativa se centre no capitão John Yossarian (que permanentemente procura furtar-se ao perigo das missões aéreas), muitos são os personagens (com personalidades mais ou menos vincadas) que perpassam pelo livro - Milo Minderbinder, Coronel Cathcart, Doutor Daneeka, Capelão Tappman...
Este é um romance humorístico ou satírico, com muito (talvez demasiado) nonsense. Ao longo das suas páginas é clara a crítica ao excessivo formalismo militar (apresentado como sem sentido, ou obedecendo a princípios que nada têm que ver com os objetivos que se propõem servir), à burocracia pouco eficiente, à falta de equidade ou justiça de algumas decisões, à ganância e até imoralidade do capitalismo (personificadas em Milo que, absurdamente, obedecendo a um lógica meramente centrada no lucro, não se coíbe em fazer negócios com o inimigo). A questão da sanidade mental (ou a falta dela - ou ainda a insanidade inerente à própria guerra) anda sempre presente.
O que menos me agradou no livro, e que explica a minha perda de interesse ao longo do avanço no mesmo, é precisamente o tipo de humor, ou melhor,  o seu tom exagerado, patético, ou tendente à "piadinha" (por exemplo, o facto de Milo ser presidente de câmara de Palermo, califa de Bagdad, entre outras coisas... - em vez de acrescentar piada, a meu ver, retira-a). Outro aspeto que me desagradou prende-se com a evolução da história: esta, ainda que avance, desenvolve-se sempre num mesmo tom, morninho, morninho, sem conhecer um clímax...

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna", coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro

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O segundo volume da coleção "História da Vida Privada em Portugal", dirigida pelo eminente historiador José Mattoso, é coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro e foca a "vida privada" na Idade Moderna (nunca omitindo a dificuldade em distinguir o domínio privado do domínio público no passado - nem sempre o que hoje consideramos privado o foi no passado) . São abordados os principais espaços físicos e humanos da vida familiar, da sexualidade, da higiene, da convivialidade, da espiritualidade ou das práticas de escrita e de leitura.
Esta obra conta com textos de vários historiadores deste período, tais como Nuno Gonçalo Monteiro, António Manuel Hespanha, Joaquim Ramos de Carvalho, Isabel dos Guimarães Sá, Pedro Cardim, Mafalda Soares da Cunha, Fernanda Olival, entre outros.
Sendo esta uma obra coletiva, cada texto reflete as características (perspetivas, interesses e até modo de escrita) do(s) seu(s) autor(es), apresentando, assim, algumas variações; neste caso, porém, devo dizer que, de um modo geral, a obra é bastante equilibrada no que concerne tanto à estrutura como ao interesse de cada texto (mesmo que nem sempre a articulação entre textos seja perfeita, julgo que seria difícil conseguir fazê-lo melhor), pelo que a leitura deste livro se torna agradável tanto para os leitores já familiarizados com os temas históricos abordados como para os mais leigos.
É, pois, um livro que (tal como poderia dizer do primeiro volume da coleção, dedicado à Idade Média) considero muito recomendável.